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A imparcialidade possui íntima ligação com o instituto da jurisdição. Esse sistema, que marcou de modo inconfundível a separação de poderes, constitui-se no poder-dever- função do Estado de dizer o direito ou realizá-lo coativamente207. A imparcialidade inclui-se no rol das características da jurisdição e realiza-se pelo ato desinteressado do juiz no exercício de sua função de julgar. Assim, é a sua posição eqüidistante das emoções e dos interesses da demanda que confere legitimidade para mediar a solução de um conflito na esfera judicial. É tanto uma garantia orgânica da magistratura como uma garantia constitucional das partes.

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José Roberto dos Santos Bedaque assevera: “Inadmissível a imposição dessa conseqüência pelo simples descumprimento de determinada forma legal, sem que essa não-observância impeça o ato de atingir o próprio fim. Os princípios da economia e da conservação impõem a desconsideração do vício de forma se atingido o objetivo do ato defeituoso, para evitar a renovação desnecessária de atividade processual, bem como para preserva o direito da parte cuja situação estiver amparada pelo ordenamento jurídico substancial.” (Efetividade

do processo e técnica processual. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 503-504).

205 “Artigo 249 - [...] § 1º - O ato não se repetirá nem se lhe suprirá a falta quando não prejudicar a parte. 206

Nesse sentido: BRASIL JÚNIOR, Samuel Meira. Justiça, direito e processo: a argumentação e o direito processual de resultados justos. São Paulo: Atlas, 2007. p. 30.

207

ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: parte geral. 9. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. v. 1, p. 159.

No entanto, quando se fala em atos produzidos de ofício pelo magistrado, a sua imparcialidade é comumente questionada, pois a eles sempre se relaciona algum tipo de envolvimento subjetivo do juiz capaz de macular a seriedade, credibilidade e legitimidade do pronunciamento judicial.

E o mesmo raciocínio se aplica à iniciativa probatória, uma vez que gera grande desconfiança quanto aos reais interesses do magistrado no deslinde do feito, justamente por estar exercendo função típica das partes.

Contudo, não é assim que deve ser entendida a matéria. Quando se comenta a iniciativa probatória do magistrado no processo, consideram-se os ideais perseguidos não pela pessoa do juiz, mas pelo próprio ordenamento jurídico contemporâneo.

A figura do juiz se enquadra como mero aplicador dos anseios constitucionais. Assim, cabe ao magistrado a busca pela verdade processual, atendendo-se aos parâmetros estabelecidos pelo devido processo legal, seja ele no plano substancial ou formal.

Por outro lado, a atividade jurisdicional possui plena capacidade de utilizar instrumentos eficazes para atingir a referida verdade, caso a parte fique inerte ou seja ineficaz para provar o fato controvertido nos autos e resolver a questão posta em juízo. Nunca é demais lembrar que a iniciativa do juiz nesses casos ocorre após verificar o que as partes podem oferecer ao processo em termos de prova.

Em ocorrendo tal situação, o magistrado  caso não esteja convencido dos elementos de prova até então existentes  deve lançar mão de seus poderes instrutórios, sem que haja qualquer mácula à intenção de sua conduta. Repita-se: a iniciativa de prova pelo magistrado não ocorrerá de forma indiscriminada e aleatória. Ao invés, será posterior à oportunidade processual das partes e através dos meios de prova necessários e proporcionais ao caso concreto, qualitativa e quantitativamente.

Assim, como se observa, nos precisos casos mencionados – insuficiência ou incapacidade probatória , a iniciativa probatória do juiz será exercida como conseqüência natural e lógica de sua própria função de dar impulso ao processo, para se convencer e julgar a lide, sem que isso comprometa a sua imparcialidade na causa. Portanto, é uma postura inerente ao seu próprio ofício jurisdicional.

Sob outro ângulo, o conceito de direito à produção da prova deve ser ampliado, para se considerar que não está relacionado somente ao direito subjetivo da parte na indicação e produção da prova, mas sim ao imperativo constitucional, na efetiva busca da finalidade do processo, através dos meios probatórios aptos a formar a convicção do magistrado acerca da questão controvertida.

Vista a situação dessa forma, ou seja, a de que o direito probatório da parte está relacionado, acima de tudo, com os ideais processuais e constitucionais, independentemente de quem seja a iniciativa208, não seria exagero considerar que a produção pelo juiz de prova capaz de elucidar os fatos afirmados nos autos constitui um dever jurídico inafastável, inerente à sua tarefa jurisdicional e decorrente do interesse público.

Não obstante, caso o magistrado assim não agisse, a conseqüência da omissão poderia implicar o questionamento recursal de sua decisão, por descumprimento do ofício jurisdicional que lhe é inerente, com possibilidade, inclusive, de alegação de parcialidade. Aqui se estaria diante de um erro de procedimento, pelo fato do julgador não assumir no processo a sua importante missão de busca de uma tutela jurisdicional justa e efetiva.

Ora, o juiz, tal qual as partes, deve estar comprometido com a solução rápida mas eficaz do processo, não podendo se furtar de tal mister, sem que isso represente qualquer ilegalidade, ilicitude ou imparcialidade.

Dessa forma, considerar o poder instrutório do juiz, nos precisos casos elencados, como configurador de sua parcialidade, seria o mesmo que negar autoridade à sua função jurisdicional, desacreditando o próprio Poder Judiciário. Nas palavras de José Roberto Bedaque:

A participação do juiz na formação do conjunto probatório, determinando a realização das provas que entender necessárias ao esclarecimento dos fatos deduzidos pelas partes, de forma alguma afeta a sua imparcialidade. Agindo assim, demonstra o magistrado estar atento aos fins sociais do processo. A visão publicista deste exige um juiz comprometido com a efetivação do direito material. Isto é, o juiz pode, a qualquer momento e de ofício determinar sejam produzidas provas necessárias ao seu convencimento.

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“A iniciativa probatória compromete a sua imparcialidade tanto quanto a sua omissão, mas a busca da verdade constitui um ganho apreciável. Quanto ao conhecimento de fatos que justificam a improcedência do pedido, não se pode generalizar, pois há os examináveis de ofício e os que dependem de iniciativa do réu. Não há porque contrapor os poderes instrutórios do juiz às garantias processuais das partes e ao seu poder de disposição de seus direitos: uns não prejudicam os outros.” (GRECO, Leonardo, Publicismo e privatismo no

Trata-se de atitude não apenas admitida pelo ordenamento, mas desejada por quem concebe o processo como instrumento efetivo de acesso à ordem jurídica justa.209

Interessante posicionamento é o de Marinoni, para quem “o princípio da imparcialidade do juiz não é obstáculo para a participação ativa do julgador na instrução. Ao contrário, supõe-se que parcial é o juiz que, sabendo que uma prova é fundamental para a elucidação da matéria fática, se queda inerte”.210

No mesmo sentido, Leonardo Greco: “Seguramente, quanto menos interventivo for o juiz, maior será aparência da sua imparcialidade, mas me parece que não cabe confundir o ativismo moderado e subsidiário com a perda daquele atributo, essencial à própria jurisdição.”211

Por outro lado, não seria lógico atribuir uma parcialidade à atividade do juiz apenas no momento instrutório212, desvinculando-o das demais fases procedimentais. O juiz não decide ser parcial sem a finalidade de ajudar ou prejudicar uma das partes no decorrer do processo como um todo. Assim, se isso ocorre, se dá em um momento anterior à produção das provas e se estende até o julgamento, quando as provas produzidas serão valoradas, para compor a fundamentação da decisão.

Seria incoerente imaginar que um juiz iria beneficiar ou prejudicar uma parte somente no momento probatório, para atender a um capricho seu ou de um dos litigantes, sem estar vinculado ao resultado do processo.

Nesse passo, o perigo de quebra da imparcialidade pelo juiz está presente ao longo de todo processo, sendo que, se ele quiser ser parcial, o será sem poder imputar a culpa aos seus poderes instrutórios.213

209

BEDAQUE, José Roberto dos Santos, Poderes instrutórios do juiz, cit., p. 110-111.

210

MARINONI, Luiz Guilherme, Teoria geral do processo, cit., p. 415.

211

GRECO, Leonardo, Publicismo e privatismo no processo civil, cit.

212

“A participação ativa do juiz na instrução do processo, determinando a realização das provas que entender necessárias ao esclarecimento dos fatos contidos na causa de pedir, não ofende a sua imparcialidade; antes a evidencia, pois o seu objetivo é atingir a verdade real, dando a quem merece o direito disputado.” (PEREIRA, Rafael Caselli, A compatibilidade do princípio dispositivo e o da imparcialidade com a iniciativa probatória

do juiz, cit.).

213

No mesmo sentido: BARBOSA MOREIRA, José Carlos, Temas de direito processual: quarta série, cit., p. 48.

Dessa forma, o problema da imparcialidade que tanto de se atribui à fase instrutória está, na verdade, relacionado à irregularidade do próprio ofício jurisdicional do magistrado, que não deveria estar atuando no processo desde a fase postulatória, quiçá nas instrutória e decisória. Em outros termos, a eventual atitude tendenciosa do juiz compromete não só a fase instrutória, mas o exercício de sua jurisdição.

É o que ensina Siqueira Castro:

Não resta dúvida, nesse sentido, como já exposto, que o atributo da imparcialidade é ínsito à existência orgânica da Justiça. Ninguém duvida que os julgadores (juízes e tribunais) exercem atividade superpartes e indispensavelmente desinteressada, cujas decisões devem pautar-se em critérios de absoluta independência em face das pessoas e dos interesses em confronto nas lides submetidas à sua cognição e julgamento. O juiz que julga em “causa própria”, ou que julga tendenciosamente em favor de uma das partes, não exerce jurisdição legítima.

[...]

Se jurisdição é sinônimo de imparcialidade, a sentença parcial equivale por certo à denegação de justiça, ou o que é pior, à prestação da injustiça. Nesse caso, o restabelecimento da imparcialidade judicante, que é inafastável exigência do due process of law, impõe a oferta, à parte agravada pelo desvirtuamento da jurisdição independente, dos adequados expedientes recursais e correicionais.214

Assim, atribuir aos poderes instrutórios a responsabilidade pela eventual parcialidade do juiz é fechar os olhos para uma intenção que se inicia antes da etapa de produção de provas, cuja finalidade se posterga até que se atinja o resultado “esperado” no processo, de forma que as provas eventualmente produzidas pelo magistrado serão somente meios de se atingir um fim ilícito, passível de repreensões administrativas e judiciais.

Assumindo o mesmo o entendimento, Daniel Assumpção Neves acrescenta argumentos que reforçam a tese:

Outra barreira a ser vencida constitui em superar a desconfiança daqueles que acreditam que um juiz ativo seria um juiz tendencioso, imparcial. Para certa parte da doutrina, a busca das provas por parte do juiz o faria pender para o litigante ao qual estaria “auxiliando” na produção dessas novas provas e perderia, portanto, sua imparcialidade, condição básica e elementar para a correta atuação jurisdicional. Entendemos que o simples ativismo judicial na coleta da prova não poderá em hipótese alguma ser considerado como motivo de perda da imparcialidade do juiz. Ora, quando o juiz determina ex officio a produção de uma prova não se pode considerar que esteja atuando em favor desse ou daquele litigante. Parte da doutrina entende, a nosso ver erroneamente, que a produção de prova virá beneficiar a parte que supostamente deveria ter requerido sua produção, acarretando a perda da

214

CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da

imparcialidade do juiz. Embora se possa antever até alguma lógica em tal pensamento, impossível admitir-se correta tal conclusão. Somente se poderá conhecer do teor da prova em momento posterior à sua realização, e somente após esse conhecimento se poderá afirmar a que parte a produção da prova veio favorecer. Assim, no exato momento em que determina a produção da prova, o juiz ainda não tem a exata noção da conseqüência de tal produção para a formação de seu convencimento. Seria no mínimo prematuro falar em favorecimento a uma das partes, já que é impossível se determinar qual delas será beneficiada com a produção da prova determinada ex officio.215

Para finalizar, deve ser analisada a questão sob a aplicação dos critérios objetivos de repulsa, para saber em qual deles a imparcialidade se encaixa. De plano, foi observado acima que ela não se relaciona com o direito probatório propriamente dito, mas sim é uma característica da jurisdição, de modo que ausente o critério da coerência, resta prejudicada a avaliação dos demais.

Portanto, a produção de prova pelo juiz constitui apenas mais um dos muitos atos processuais previstos e necessários para o regular desenvolvimento do processo, sendo que a alegação de risco à imparcialidade não deve subsistir como limite à iniciativa probatória do juiz, já que macula o exercício e a legitimidade da própria jurisdição, e não a iniciativa probatória do juiz.