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3. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NAS NARRATIVAS JORNALÍSTICAS

4.2 Análise narrativa da cobertura jornalística

4.2.5 A última matéria e uma nova reflexão

O quinto e último texto divulgado pelo Zero Hora sobre o caso, no dia 13 de janeiro, é o mais original. Na seção de opiniões, a escritora Julia Dantas afirma que "O problema não é dar espaço à carta de Campinas". A autora relata que guarda em seu computador bons exemplos ligados à escrita, nos quais um texto e as palavras podem ter uma influência positiva sobre as pessoas. Porém, essa coleção não possui muitos itens.

Os momentos em que mais acredito na força das palavras são quando penso no caminho oposto: um texto pode fazer muito estrago. Quando foi divulgada a carta do homem que assassinou sua ex-companheira, seu filho e familiares deles em Campinas, muita gente foi contra a publicação. Seus argumentos são válidos. Reproduzir discurso de ódio fortalece o ódio. Dar voz à misoginia nos maiores jornais do país autoriza outros a expressarem sua misoginia e, não bastasse, faz com que a narrativa do assassino seja central. Quando lembrarmos desse caso, quando ele surgir nas retrospectivas de 2017, será a voz do homem que, mais uma vez, terá espaço e força.

Do outro lado desses argumentos, houve quem defendesse a publicação da carta para colocar em pauta a inesgotável violência contra a mulher, denunciando-a em sua covardia. A ideia é de que apenas debatendo as causas desse crime de ódio se pode buscar meios de prevenir outros. A intenção é nobre no papel, mas e sua realização? (grifos nossos)

A escritora faz uma interessante comparação sobre o debate ocorrido no caso das cartas do autor da chacina em Campinas. Ela cita o livro Mein Kampf, de Adolf Hitler. Duas editoras brasileiras revelaram o interesse de publicar a obra. Uma delas - a qual pretendia publicar o livro de forma “seca”, sem análises de especialistas e contextualizações – recebeu

diversas críticas e engavetou o projeto. A segunda editora foi impedida de publicar o livro após decisão judicial barrar a circulação da obra.

Assim como exigiam-se comentários críticos para a publicação de Hitler, era de se esperar que a carta do assassino de Campinas viesse acompanhada de reflexões de sociólogos, antropólogos, feministas e tantos outros que poderiam nos ajudar a compreender como se formou sua mentalidade. O problema não é dar espaço à carta, é dar pouco espaço à carta: se tivesse sido veiculada ao lado de análises sociais e dados estatísticos (por exemplo, o de que ocorrem mais de 10 feminicídios por dia no Brasil), haveria mais chance de cumprir o objetivo de denúncia. Do jeito que foi feito pela maioria dos jornais, ela apenas serviu de acessório de horror ao espetáculo da violência (grifo nosso).

Dantas alerta para a singularidade do Jornalismo ensinado nas faculdades, o qual ensina que a notícia “é quando o homem morde o cachorro e não quando o cachorro morde o homem”. Em casos como o da chacina em Campinas e o discurso de ódio do autor, dizer que a notícia é o que ocorre fora do comum dá ao caso e ao comportamento do autor do crime um aspecto de algo único, de exceção, o que é contestado pelo número de mulheres assassinadas por dia no Brasil. Os próprios comentários do caso acabam refletindo pensamentos que acreditam que a figura do homem ainda deve ser soberana.

Afirmações como essas mostram que o ódio contido na carta não é um fato excepcional, assim como a tragédia não é um caso sem precedentes. O discurso violento daquele homem não é fora da curva, é regra. É o cachorro que – as mulheres sabem bem – nos morde todos os dias (grifo nosso).

A quinta matéria proporciona uma reflexão mais ampla sobre o tema. O foco da narrativa não é o crime, citado repetidas vezes nos textos anteriores, mas a divulgação das cartas de forma descuidada por muitos veículos de comunicação e os impactos causados pela falta de contextualização do tema maior que engloba o crime: o machismo

Figura 6 - Os efeitos da narrativa

Fonte: Zero Hora

Ao salientar que “os momentos em que mais acredito na força das palavras são quando penso no caminho oposto: um texto pode fazer muito estrago” a autora nos remete ao que foi destacado por Motta (2013) sobre o poder hermenêutico da narrativa. Por meio de experiências indiretas, criamos significados sobre significados já existentes para explicar a

realidade em que vivemos e justificar os episódios “fora da curva”, os quais estabelecem o caos na nossa compreensão de mundo. O estrago causado pelas cartas se dá pela forma como a notícia foi tratada. O exercício é de metalinguagem, um texto publicado no jornal para falar sobre o modo problemático como o jornalismo em geral tem tratado o tema.

A chacina foi um episódio que desencadeou o caos, o qual foi justificado pelas cartas e áudios do autor do crime. Elas apresentam significados existentes em nossa sociedade, os quais atribuem às mulheres um papel secundário. Ao se “rebelar” contra o homem, elas se tornam as vilãs, que utilizam de uma lei especial – a Lei Maria da Penha – para se favorecer, ou melhor, prejudicar o homem, a vítima, o que justificaria a ação violenta destes.

Mesmo parecendo algo óbvio para muitos, é necessária a contextualização de um tema controverso. Assim como no livro Mein Kampf, no qual as crenças e ideais de Adolf Hitler são apresentados, as cartas e áudios de Sidnei contém apenas seu ponto de vista da história.

O ZH, ainda que não tenha reproduzido na íntegra as cartas e o discurso de ódio, como outros veículos fizeram, e tenha se preocupado em consultar mulheres especialistas na área para abordar o tema - em uma matéria de análise - não se preocupou, na narrativa cotidiana, exemplificada pela primeira e segunda matéria, em apurar as acusações feitas por Isamara. Por exemplo, é confuso afirmar que Sidnei perdeu a guarda do filho devido a uma denúncia de abuso sexual feita pela ex-mulher - acusação que ele nega veementemente em suas cartas - ao mesmo tempo em que ninguém foi ouvido, nenhuma autoridade envolvida no caso ou alguém ligado a Isamara, para dar subsídios ao que foi afirmado por ela. Não é pedida a condenação de Sidnei por este suposto crime anterior, de assédio. Não cabe a nós afirmar se o crime ocorreu ou não, mas sim informações que equilibrem os argumentos dos envolvidos, fornecendo ao leitor subsídios para chegar às próprias conclusões. Da forma que a acusação é citada, a palavra de Isamara é colocada em dúvida, sem ninguém que a defenda, afinal, ela não pode contar a sua versão dos fatos. E o autor do crime, já morto, pode porque deixou cartas, já que o crime foi premeditado. Sua versão ganha força na imprensa nacional e ele parece conseguir cumprir o plano do crime cuidadosamente planejado, inclusive de modo narrativo, deixando sua versão sobre os fatos a diversas pessoas.

Comentando a singularidade da notícia destaca por Genro Filho (1987), o caso aparece na narrativa jornalística de ZH a partir de sua singularidade. Apenas num momento posterior o jornal, ZH, se preocupa em fazer uma relação com o particular e o universal dos crimes de gênero. Infere-se, do último texto do Zero Hora analisado, que essa não foi uma preocupação dos principais veículos da imprensa tradicional, que apenas focaram na singularidade, na versão do assassino, explorando esse aspecto inesperado, das cartas e áudios por ele deixadas.

O jornal Zero Hora foi uma exceção na cobertura realizada no Estado sobre o caso. Em sua versão online, foram destinadas duas notícias que discutiram aspectos diferentes do que apenas o crime. Entretanto, as outras três notícias publicadas sobre o caso ou com referências a ele, não receberam esse tratamento. Porém, isso ocorre com frequência em

outros casos de feminicídioretratados pela mídia brasileira e não se refere apenas a ZH. De

acordo com o português Correia (2009), não discutir questões mais amplas – que saiam do caso singular e vislumbrem o universal – o contexto social em que estão inseridas, é uma questão que o próprio Jornalismo acaba negligenciando ao estabelecer aos profissionais da área uma rotina de casos pontuais.

Tal como quaisquer outros agentes sociais que, na sua relação com a vida de todos os dias, recorrem a uma atitude pragmática e utilitária, o jornalista, desafiado pelo fluxo dos acontecimentos aos quais é obrigado a conferir sentido, também é chamado a aplicar uma lógica do concreto, a agir e a pensar de modo instintivo e decidido, descurando a reflexão ou o recurso ao conceito em detrimento da atenção ao pormenor concreto. Prefere-se um acontecimento cujo princípio, meio e fim sejam susceptíveis de serem narrados do que um “assunto” que implica considerações de natureza analítica e conceptual, eventualmente tidas por abstractas. (Cfr. Phillips, 1993: 329). Assim, as rotinas do trabalho jornalístico “estão mais orientadas para a cobertura e tratamento do que é pontual e episódico, do que para o que se processa ao longo do tempo” (Correia, 1997: 147). Os temas exigem explicações analíticas do mundo quotidiano enquanto experiência socialmente estruturada. Temas como “o racismo ou o “sexismo” implicam uma descrição de processos sociais que envolvem relações entre instituições e problemas sociais enquanto o trabalho jornalístico enfatiza o individual, o acontecimento discreto susceptível de ser descrito em termos de princípio, meio e fim (Cfr. Tuchman, 1978: 134). (CORREIA, 2009, p. 6).

Aliado a essas questões, em casos de feminicídio, é comum serem divulgadas mais informações sobre o assassino do que sobre a vítima. Como se a ação pudesse ser justificada ou até para a construção de um grande antagonista para a narrativa, o autor do crime acaba sendo o foco da notícia, a voz que será lembrada, como bem destaca Julia Dantas, na matéria analisada de ZH. Já quanto à mulher assassinada, ela se torna, primeiro, coadjuvante e depois, estatística. Assim, partimos para a análise das personagens da narrativa.

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