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3. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NAS NARRATIVAS JORNALÍSTICAS

4.2 Análise narrativa da cobertura jornalística

4.2.3 As justificativas de um assassino

Também no dia 3 de janeiro, o jornal Zero Hora divulga mais uma matéria sobre o caso, utilizando o termo Feminicídio pela primeira vez. O texto recebeu o título de “Discurso do autor da chacina em Campinas incentiva o feminicídio, alertam especialistas”. A matéria foi escrita pela repórter de ZH Fernanda da Costa, com o apoio de agências de notícias. A notícia é publicada após a revelação dos áudios e das cartas escritas por Sidnei Araújo, divulgadas com exclusividade pelo Estado de São Paulo. O texto intercala trechos das cartas e áudios com a avaliação de especialistas mulheres sobre o caso.

Antes de matar a ex-esposa, Isamara Filier, 41 anos, o filho João Victor, oito anos, e mais 10 pessoas em Campinas, São Paulo, Sidnei Ramis de Araújo, 46 anos, escreveu cartas e gravou áudios em que expõe ódio às mulheres e incentiva o feminicídio. Conforme especialistas consultados por Zero Hora, trata-se de um discurso machista que precisa ser combatido para reverter os índices alarmantes de violência contra a mulher no país. (grifo nosso).

A narrativa relembra os boletins de ocorrência registrados por Isamara contra o ex- marido e a denúncia de abuso sexual contra o filho. A matéria também apresenta uma declaração – feita ao site UOL - de uma professora do menino, a qual afirma que “Em uma comemoração do dia dos pais na escola, João Victor teria dito a uma professora que não gostava do pai e que iria matá-lo quando crescesse”.

A primeira fonte a ser citada, a promotora de Justiça do Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar do Ministério Público do Estado de São Paulo, Silvia Chakian, ressalta que mesmo com a comoção causada pelo crime, em especial por ter ocorrido em um momento de comemoração como o Réveillon e pelo número de vítimas, as cartas de Sidnei refletem um discurso comum em casos de violência contra a mulher. Ela alerta que o caso é mais um dos inúmeros assassinatos cometidos no país em função do

machismo. A narrativa também apresenta dados do Instituto Patrícia Galvão11, o qual informa que 13 mulheres são assassinadas por dia no país, colocando o Brasil em quinto lugar entre os países com maior número de homicídios de mulheres no mundo.

Essas cartas revelam a raiz estruturante da violência doméstica no Brasil. Parece que é um caso isolado, mas os tribunais do júri estão abarrotados de casos assim. O discurso (do assassino) nos remete aos que vemos diariamente nas redes sociais diante de qualquer sinal de conquista e autonomia feminina – afirma.

Ao afirmar que tinha "raiva das vadias que se proliferam e muito a cada dia se beneficiando da lei vadia da penha", Araújo revela um discurso de ódio e intolerância contra as mulheres que ele entende que não têm um comportamento "adequado”, segundo a promotora. (grifos nossos).

Chakian salienta que casos como o da chacina em Campinas apontam para a necessidade de avanço em medidas para mudar essa cultura, realizando um trabalho “(...) desde a educação infantil, de desconstrução dessa masculinidade onde o homem é o senhor da vida e da morte da mulher, onde o homem não sabe lidar com a perda, com a frustração ou com o sentimento de injustiça”.

A matéria de Zero Hora também apresenta trechos de um artigo de opinião da antropóloga feminista Debora Diniz, publicado originalmente no HuffPost Brasil com o título “A chacina em Campinas e o ódio que se transforma em uma máquina de matar mulheres”. De acordo com a profissional, mesmo que o comportamento de Sidnei Araújo seja considerado como "daquelas figuras que os manuais de psiquiatria descrevem como psicopata”, não justifica “as raízes da fantasia misógina do matador".

Conforme a pesquisadora, as cartas escritas pelo assassino revelam que ele “matou Isamara e sua família porque não suportou a separação, porque não reconheceu a força da lei penal contra seu abuso patriarcal, porque se viu sem o mando doméstico como soberano”. (grifo nosso).

A terceira fonte citada no texto é a vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), Maria Berenice Dias. Ela contesta a frase do atirador, o qual afirma não ser machista e amar as mulheres de boa índole.

11

O instituto, fundado em 2001, é uma organização social que atua nos campos do direito à comunicação e dos direitos das mulheres brasileiras. A organização leva o nome da jornalista e ativista política Patrícia Rehder Galvão, a qual acreditava em um espaço maior para as mulheres na esfera pública. O Instituto Patrícia Galvão busca a igualdade e equidade de gênero por meio de políticas públicas voltadas para as mulheres, apostando na mídia e no jornalismo como oportunidades de promover o debate sobre a questão. Entre as atividades do instituto está a realização de pesquisas de opinião pública, a produção de campanhas publicitárias contra a violência doméstica, a promoção de oficinas de mídia para lideranças sociais e especialistas, e de seminários nacionais. Em 2009, o instituto criou a Agência Patrícia Galvão, a qual produz e divulga informações sobre o direito das mulheres no país. <Disponível em: agenciapatriciagalvao.org.br>

— É uma postura completamente machista, de não aceitar a mulher que não faz o que ele quer, só as "de boa índole". Essas cartas repetem um modelo de machismo que, infelizmente, ainda impera na nossa sociedade, o sentimento de propriedade da mulher, em que os homens se consideram no direito de castigá-las caso não hajam como eles querem — afirma (grifo nosso).

A matéria é concluída com fala da antropóloga Debora Diniz, alertando para a necessidade de discutir a questão de gênero no país. "Para alguns, o ódio permanece nas palavras; para outros, como Sidnei, o ódio é uma arma que mata".

Figura 4 - O ódio que mata

Fonte: Zero Hora

A terceira matéria apresenta um posicionamento do narrador e fornece subsídios para que o leitor veja a notícia de um ângulo diferente. Se antes o crime era visto como um ato desesperado de um homem insano, o terceiro texto mostra que a chacina não ocorreu apenas em função de suposto “desequilíbrio” mental.

A matéria traz para a discussão do crime temas como violência contra a mulher e o feminicídio, deixados em segundo plano devido ao horror causado pelo grande número de vítimas do crime. Muito desta atenção se deve à divulgação das cartas, as quais explicitaram o ódio e a premeditação do autor da chacina.

O jornal Zero Hora teve o cuidado de abordar os trechos das cartas apresentando um olhar mais cuidadoso sobre os efeitos que as palavras poderiam causar no público. O Estado de São Paulo, por exemplo, divulgou trechos das cartas e dos áudios produzidos por Sidnei praticamente na íntegra, excluindo apenas “citações que ele faz de outras pessoas e acusações sem comprovação” e mantendo a grafia do autor. Diferente do ZH, a matéria do Estadão não realiza, na notícia em questão, um balanço do que é dito pelo assassino, divulgando afirmações de ódio como:

Cada um tem o seu jeito de amar. Bom, Deus não crucificou o filho dele por amor aos outros filhos, como é que fala na bíblica. Eu não vou deixar você sofrer na mão dessa vadia mais não filho. Não vou mesmo. (trecho extraído de um dos áudios divulgados). (grifos nossos)

Aproveitando, peço aos amigos que sabem da minha descrença, que não rezem e por mim, se fazerem orações façam por meu filho ele sim irá precisar! Quero ser enterrado com a cabeça para baixo se garante que assim posso ir pro inferno buscar a velha vadia (que era até ministra de comunhão na igreja) que morreu antes da hora (neste trecho, ele se refere a mãe de Isamara). Demorei pra matar ela pq (sic) me apaixonei por um anjo lindo! (trecho extraído de uma das cartas). (grifo nosso) Ela não merece ser chamada de mãe, más (sic) infelizmente muitas vadias fazem de tudo que é errado para distanciar os filhos dos pais e elas conseguem, pois as leis deste paizeco são para os bandidos e bandidas. A justiça brasileira é igual ao lewandowski, (sic) (um marginal que limpou a bunda com a constituição no dia que tirou outra vadia do poder) um lixo!

Se os presidentes do país são bandidos, quem será por nós? (trecho extraído de uma das cartas). (grifos nossos).

Sei que me achava um frouxo em não dar uns tapas na cara dela, más (sic) eu não podia te dizer as minhas pretensões em acabar com ela! Tinha que ser no momento certo. Quero pegar o máximo de vadias da família juntas. A injustiça campineira me condenou por algo que não fiz! Espero que eles sejam punidos de alguma forma. Chega! Ela tem que pagar pelo que fez. (trecho extraído de uma das cartas). (grifos nossos).

A matéria do Estadão com as afirmações possuía, até o dia 10 de junho, 253 comentários. Alguns destacavam o absurdo do crime cometido por Sidnei. Outros se compadeciam da situação do assassino e do ato de “lavar sua honra com sangue”.

Assim, percebemos que a seleção de Zero Hora dos trechos publicados foi diferente e preocupou-se em discutir, apontar os problemas, e não apenas publicar as cartas e, como narrador, reproduzir o discurso de ódio. Abrindo um parêntese sobre a escrita da notícia, o Zero Hora utiliza as palavras “especialistas consultados” no início do texto para se referir às fontes utilizadas, porém as três especialistas são mulheres. Um pequeno equívoco de escrita o

qual passa uma impressão errada ao leitor (que especialistas homens participariam da matéria), e até reforça a ideia de que as “fontes especializadas”, quem “endente do assunto”, são homens. O jornalismo precisa de mais fontes femininas.

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