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Feminicídio e imprensa: uma análise narrativa da cobertura jornalística de Zero Hora sobre a chacina em Campinas

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Academic year: 2021

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DO RIO GRANDE DO SUL – UNIJUÍ

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS, CONTÁBEIS, ECONÔMICAS E DA COMUNICAÇÃO – DACEC

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO

LARISSA BATISTA DORNELES

FEMINICÍDIO E IMPRENSA:

UMA ANÁLISE NARRATIVA DA COBERTURA JORNALÍSTICA DE ZERO HORA SOBRE A CHACINA EM CAMPINAS

IJUÍ 2017

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LARISSA BATISTA DORNELES

FEMINICÍDIO E IMPRENSA: UMA ANÁLISE NARRATIVA DA COBERTURA JORNALÍSTICA DE ZERO HORA SOBRE A CHACINA EM CAMPINAS

Monografia apresentada ao Curso de

Comunicação Social – Jornalismo da

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Jornalismo.

Orientadora: Profª. Mª. Lara Nasi

IJUÍ 2017

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UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande Do Sul DACEC – Departamento de Ciências Administrativas, Contábeis, Econômicas e

da Comunicação

A comissão examinadora, abaixo assinada, aprova a monografia

FEMINICÍDIO E IMPRENSA:

UMA ANÁLISE NARRATIVA DA COBERTURA JORNALÍSTICA

DE ZERO HORA SOBRE A CHACINA EM CAMPINAS

Elaborada por

LARISSA BATISTA DORNELES

Como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, habilitação Jornalismo

Banca Examinadora:

Profª Mª. Lara Nasi (orientadora) – DACEC / UNIJUÍ

Profª Dra. Vera Lucia Spacil Raddatz – DACEC / UNIJUÍ

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AGRADECIMENTOS

A todas/os – familiares, amigos e professores – que sempre acreditaram na minha capacidade, até quando eu mesma duvidava. A todas/os que viram potencial no que parecia uma ideia simples e ao mesmo tempo pretensiosa. A todas/os que dedicaram seu tempo e paciência para acertar os meus erros. A todas/os que sofreram junto comigo os meus momentos de desespero. A todas/os que celebram a minha felicidade.

Saibam todas/os que levo esses momentos muito bem guardados na memória e também no coração. Muito obrigada!

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Que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substância, já que viver é ser livre. Porque alguém disse e eu concordo que o tempo cura, que a mágoa passa, que decepção não mata.E que a vida sempre, sempre continua.

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RESUMO

Em 2013, uma média de 13 feminicídios foram registrados por dia no Brasil. Mulheres morrendo pelo simples fato de serem mulheres. Mesmo com o número alarmante de vítimas, o feminicídio nem sempre é pauta das matérias jornalísticas que abordam o homicídio de mulheres. Esta monografia se propõe a efetuar uma Análise da Narrativa (MOTTA, 2013) da cobertura realizada pela versão online do jornal Zero Hora sobre a chacina ocorrida em Campinas, estado de São Paulo, na virada do ano de 2016, na qual um homem matou a ex-mulher, o filho e mais dez familiares dela. Devido a diversas peculiaridades, o caso acabou ganhando destaque na mídia nacional, divulgando também o discurso de ódio do autor da chacina. Ao compreender o jornalismo como narrativa, capaz de promover a produção de conhecimento (GENRO FILHO, 1987), o trabalho realiza uma análise da composição da intriga e da configuração das personagens na narrativa, de acordo com dois dos movimentos metodológicos propostos por Motta (2013). Os resultados apontam para os significados propostos pela narrativa de ZH sobre o tema feminicídio, como a vítima e o agressor são retratados pelo narrador e qual o papel do Jornalismo na busca pela produção de conhecimento e por mudanças de padrões estabelecidos na sociedade.

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SUMMARY

Around 13 feminicides were registered each day at Brazil in 2013. There are women dying just because they are women. Even with the alarming number of victims, feminicide is not a very common journalistic subject in the news about women murder. This final paper proposes to carry out a Narrative Analysis (MOTTA, 2013) of the coverage made by the online version of Zero Hora about a slaughter which happened in Campinas, São Paulo, during 2016 New Year’s Eve, in which a man killed the ex-wife, the son and ten more relatives of her. Due to various peculiarities, the case has gotten highlights in the national media, also showing the hating speech that came from the author of the slaughter. When comprehending journalism as a narrative, which is able to promote de knowledge production (GENRO FILHO, 1987), this paper performs an analysis of the composition of the intrigue and the configuration of the characters in the narrative, according with two methodological movements proposed by Motta (2013). The results has shown the meanings proposed by the ZH narrative about feminicide, as the victim and the attacker are pictured by the narrator and what is the journalism role when looking for the knowledge production and when changing the patterns settled down in our society.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Taxas de homicídios de mulheres (por 100 mil) em 83 países do mundo ... 23

Figura 2 - Primeiras informações do crime ... 33

Figura 3 - Divulgação do histórico de violêcia... 37

Figura 4 - O ódio que mata ... 41

Figura 5 - Pensamentos compartilhados ... 44

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SUMÁRIO

1. CONSIDERAÇÕES INICIAS ... 9

2. JORNALISMO E NARRATIVA ... 11

2.1 O jornalismo e a produção de conhecimento ... 12

2.2 A narrativa e a construção da realidade ... 16

3. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NAS NARRATIVAS JORNALÍSTICAS .... 20

3.1 Femicídio – a morte de mulheres por serem mulheres ... 20

3.2. O feminicídio na imprensa ... 25

4 ANÁLISE DA INTRIGA E DAS PERSONAGENS DA CHACINA EM CAMPINAS 28 4.1 Metodologia ... 28

4.2 Análise narrativa da cobertura jornalística ... 31

4.2.1 Mais uma notícia sobre violência ... 31

4.2.2 Histórico de violência ... 34

4.2.3 As justificativas de um assassino ... 38

4.2.4 Exemplo às avessas ... 43

4.2.5 A última matéria e uma nova reflexão ... 45

4.3 O protagonista da chacina em Campinas ... 49

4.4 Impressões sobre a análise ... 51

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 53

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1. CONSIDERAÇÕES INICIAS

Durante o processo de produção da notícia, o jornalista possui diversas normas técnicas e éticas para seguir. O que não é uma tarefa simples. Cabe a ele escolher o que constará no texto e a forma como o assunto será apresentado ao público.

A proposta deste trabalho é investigar os sentidos produzidos por matérias – escritas por jornalistas e veiculadas pela mídia gaúcha – que abordam o tema feminicídio, como essas notícias conseguem informar (ou não) ao público sobre o contexto social envolvido nas mortes por questão de gênero e qual o papel do Jornalismo como agente social, o qual, além de informar, também abre espaço para reflexão do público sobre o assunto. O tema feminicídio foi escolhido devido ao grande número de casos que são relatados quase que diariamente nos veículos de comunicação e que muitas vezes não apresentam nos textos publicados a relação entre o crime isolado e o assassinato de mulheres por questão de gênero.

O assunto desta monografia surgiu com uma clipagem de notícias nas versões online dos jornais Zero Hora e Correio do Povo, as quais continham a palavra feminicídio em seu texto. O número de matérias encontradas foi relativamente baixo. A maioria eram notícias hard news, mais objetivas e que não recebiam uma continuidade e nem aprofundavam o assunto, focando no assassinato como caso isolado. Entre os textos analisados em ZH, uma das poucas notícias que recebeu uma cobertura diferenciada foi o caso de uma chacina em Campinas, ocorrido no dia 31 de dezembro de 2016, na qual um homem matou doze pessoas, sendo a própria ex-esposa, o filho e familiares da mulher. O caso foi escolhido como objeto de estudo porque iniciou na condição de uma hard news e evoluiu para uma discussão mais ampla.

Para o estudo, no segundo capítulo, com o apoio da obra O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo (GENRO FILHO, 1987), é discutido o papel do Jornalismo como fonte de produção de conhecimento, o que é relacionado à introdução de novos termos nos textos jornalísticos, como o feminicídio, e na compreensão do tema pelo público. Na sessão seguinte, é abordada a importância das narrativas para a construção de significados presentes em nossa realidade e como elas podem ser trabalhadas para mudar compreensões que, embora estabilizadas em nossa sociedade, são prejudiciais a ela, como o machismo.

No terceiro capítulo, para o entendimento do que é feminicídio, abordamos os aspectos legais do tema e a lei brasileira, que qualifica o crime como hediondo. O capítulo também

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destaca como os veículos de comunicação podem abordar o tema de forma que o público seja capaz de refletir sobre a gravidade do crime e o motivo torpe pelo qual é cometido: o machismo.

No quarto capítulo, baseado na Análise Narrativa proposta por Luiz Gonzaga Motta (2013), analisamos os textos relacionados à chacina em Campinas, para conhecer como as matérias foram construídas, compreender a abordagem em busca de mais reflexões sobre o assunto feminicídio e violência contra a mulher, os pontos negativos que acabam reforçando ideologias machistas presentes na sociedade; e como as partes envolvidas no crime – vítima e agressor – são retratados pelas matérias, para, afinal, compreender os sentidos oferecidos por essas narrativas.

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2. JORNALISMO E NARRATIVA

A violência contra a mulher é um problema antigo em nossa sociedade. O que vem mudando nos últimos anos é como as pessoas têm encarado esse problema e buscado a quebra de antigos padrões. Vivemos um momento de despertar sobre as implicações e os riscos de ser mulher, as limitações definidas no berço por questão de gênero e a forma como essa desigualdade afeta o cotidiano de muitas mulheres.

Passos foram dados rumo à igualdade entre os sexos, mas as discussões sobre o tema precisam continuar. Quase que diariamente, nos deparamos com episódios de mortes de mulheres pelo fato de serem mulheres. De acordo com o Mapa da Violência 2015 - Homicídio de mulheres no Brasil, 4.762 homicídios femininos foram registrados em 2013. Desse total, 2.394 foram mortas por familiares (uma média de sete feminicídios por dia). Limitando a autoria do crime para parceiros ou ex-parceiros das vítimas, foram registrados 1.583 feminicídios, o equivalente a quatro mortes diárias.

Com uma média diária tão elevada, as notícias relatando casos de femicídio são frequentes na mídia. Prezando pela imparcialidade e objetividade, cria-se um padrão de divulgação, o qual foca no acontecimento e não introduz o fato em um contexto social mais amplo.

De acordo com o Artigo 10 do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, o profissional da área não pode “concordar com a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, políticos, religiosos, raciais, de sexo e de orientação sexual”. Pensando o jornalismo como uma atividade social, que ajuda a construir os modos pelos quais a realidade é percebida, caberia ao jornalista, além de informar, dar subsídios para que o público também reflita sobre a informação que está recebendo.

Para uma boa história não basta apenas um assunto interessante. O segredo está na forma como ela é contada. Esse é um dos desafios diários enfrentados pelos profissionais de imprensa no fazer jornalístico. A narrativa é um instrumento poderoso não apenas para relatar os fatos, mas também para despertar no público o interesse e a reflexão sobre a violência contra a mulher e o machismo, assuntos que parecem enraizados em nossa sociedade e que resultam em consequências extremas, como o feminicídio.

Neste capítulo, a proposta é discutir o Jornalismo não apenas como um meio de informar o público, mas como uma ferramenta que pode ser usada em prol do conhecimento, fornecendo subsídios para que o público reflita sobre a informação que foi divulgada pela

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imprensa. O capítulo também destaca o papel da narrativa para essa reflexão, a forma como contar histórias interfere na concepção de mundo e a capacidade da narrativa de atribuir significados para fatos da nossa realidade.

2.1 O jornalismo e a produção de conhecimento

A primeira utilização do termo feminicídio (no inglês, femicide) é atribuída à autora Daiana Russel, em 1976, a qual sugeriu o uso da palavra para se referir “a morte de mulheres por homens pelo fato de serem mulheres como uma alternativa feminista ao termo homicídio

que invisibiliza aquele crime letal”1 (CAMPOS, 2015, p.3). No Brasil, a palavra recebeu

maior destaque em 2015, com a aprovação da Lei 13.1042, a qual estabelece o feminicídio – a

morte de mulheres por questão de gênero – como crime hediondo, assunto que é aprofundado no capítulo 3 deste trabalho.

Uma das características positivas do Jornalismo é conseguir dialogar com toda a sociedade. Um dos fatores importantes para essa compreensão é o uso de palavras de fácil entendimento. Para um termo relativamente novo, como o feminicídio, de que forma ocorre seu uso no Jornalismo para ajudar a sociedade a compreendê-lo, sem que isso cause um impacto negativo na audiência por não conhecê-lo?

É comum em matérias que tratam sobre feminicídios ver o uso de termos como “crime passional” ou “motivado por ciúmes” como explicação para o ato. Em seu Minimanual do Jornalismo Humanizado – Pt. I: Violência Contra a Mulher, o projeto jornalístico Think Olga, destaca a importância de não romantizar situações de abuso e violência contra mulher, nem buscar justificativas para a agressão.

Essa é a principal falha nas matérias jornalísticas que abordam tanto violência doméstica quanto feminicídios. Se por um lado as vítimas de estupro têm sua conduta posta à prova na busca machista por razões que a responsabilizariam pelo crime, agressores e assassinos de mulheres têm o seu passado revirado em busca de bons antecedentes que revelem sua violência como um traço de loucura. O fato é que sua notoriedade se dá pelo crime que cometeram. Por isso, é preciso ter cautela para não minimizar a gravidade dos seus atos (THINK OLGA, 2016, documento online).

O minimanual sugere, assim como é indicado em matérias que abordam o tema suicídio, a divulgação de informações que possam auxiliar mulheres vítimas de violência. Um

1

Informação do estudo “Feminicídio no Brasil - Uma análise crítico-feminista” realizado pela professora da Universidade de Vila Velha/ES e doutora em Ciências Criminais, Carmen Hein de Campos.

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dos exemplos é o “Ligue 180”, o qual é utilizado como um disque-denúncia. O manual também instrui os jornalistas a não ter receio de utilizar o termo feminicídio nas matérias e não substituí-lo por outras qualificações, como “crime passional”.

Para que o Jornalismo consiga levar à introdução de novos termos, como o feminicídio, as matérias devem proporcionar ao público-alvo a reflexão necessária para a produção de conhecimento.

O autor Adelmo Genro Filho (1987), em sua obra O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo destaca que o Jornalismo vem evoluindo com a sociedade e refletiu diversas de suas necessidades ao longo dos anos. Desde ser voltado para divulgação de informações mercantis até debater e se posicionar abertamente sobre a situação política, muitas vezes refletindo os anseios de uma classe dominante ou em ascensão. Mas o Jornalismo tem o potencial de ir além desses padrões.

Em qualquer caso, no entanto, é preciso, em primeiro lugar, reconhecer que existe a possibilidade e a necessidade de um jornalismo informativo moderno, que não seja meramente propagandístico ou formalmente opinativo. Isto é, reconhecer a possibilidade e a necessidade de um jornalismo informativo com outro caráter de classe, elaborado a partir de outros pressupostos ideológicos e teóricos, mas cuja missão principal não seja apenas a de propagandear tais pressupostos (GENRO FILHO, 1987, documento online).

O autor ressalta aos jornalistas a importância de sair dos padrões estabelecidos no momento de estruturar os textos noticiosos. Atualmente, na busca por um Jornalismo objetivo, o profissional opta por não utilizar generalidades e adjetivos. Segundo Genro, com essa escolha, o objeto do jornalista passa a ser a singularidade, a especificidade do fato. Essa singularidade surgiria do senso comum, da compreensão imediata do jornalista sobre o caso.

O resultado é que a singularidade é reificada pela compreensão espontânea do jornalista, que acaba aceitando implicitamente a particularidade e a universalidade sugeridas pela imediaticidade e reproduzidas pela ideologia dominante. Assim, a busca da "especificidade" na atividade jornalística limita-se a uma receita técnica de fundo meramente empírico, uma regra operativa que os jornalistas devem seguir sem saber o motivo, tornando-se presa fácil da ideologia burguesa e da fragmentação que ela proporciona. A realidade transforma-se num agregado de fenômenos destituídos de nexos históricos e dialéticos. A totalidade toma-se mera soma das partes; as relações sociais, uma relação arbitrária entre atitudes individuais (GENRO FILHO, 1987, documento online).

Genro destaca que os fatos jornalísticos – objeto da notícia – não existem previamente. Eles são recortados de um fluxo objetivo da realidade e construídos conforme definições objetivas e subjetivas. Os fatos são objetivos, mas a construção da notícia depende da

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percepção e significação atribuídas pelo sujeito e que derivam de um conhecimento prévio. Isso impossibilitaria a objetividade plena das matérias jornalísticas.

A apreensão do senso comum, que corresponde à experiência cotidiana dos indivíduos, é dada pela significação meramente "funcional" no universo social vivido. Logo, em termos epistemológicos, a base na qual o fato será assentado e contextualizado tende a reproduzir de maneira latente a universalidade social tal como é vivida imediatamente. Não é por outro motivo que a ideologia das classes dominantes é normalmente hegemônica e o senso comum tende a decodificar os fatos numa perspectiva conservadora. Isso ocorre espontaneamente na sociedade, à medida que a reprodução social das pessoas, segundo padrões estabelecidos, aparece como se fosse, diretamente, a reprodução biológica de cada indivíduo (GENRO FILHO, 1987, documento online).

O Jornalismo acaba por reproduzir a ideologia dominante – no texto, o autor cita a ideologia burguesa – e a manutenção do status quo (GENRO FILHO, 1987). Como a produção das notícias está ligada a interpretação de mundo que o jornalista possui, uma sociedade – na qual ele está inserido – marcada pela desigualdade entre os sexos, com o status quo machista, tornaria a produção de matérias que não disseminem essa visão algo desafiador, sendo indispensável sair dos detalhes isolados de um caso e abordar também a totalidade social.

De acordo com Genro Filho, a singularidade é a matéria-prima do jornalismo, mas não sua totalidade. O singular apontaria a direção da notícia, enquanto o particular e o universal definiriam o conteúdo nela retratado.

Cada um desses conceitos é uma expressão das diferentes dimensões que compõem a realidade e, ao mesmo tempo, compreende em si os demais. São formas de existência da natureza e da sociedade que se contém reciprocamente e se expressam através dessas categorias e de suas relações lógicas.

No universal, estão contidos e dissolvidos os diversos fenômenos singulares e os grupos de fenômenos particulares que o constituem. No singular, através da identidade real, estão presentes o particular e o universal dos quais ele é parte integrante e ativamente relacionada. O particular é um ponto intermediário entre os extremos, sendo também uma realidade dinâmica e efetiva (GENRO FILHO, 1987, documento online).

A notícia inicia pelo singular, chega ao particular e apresenta o universal como um processo que se complementa para a construção da matéria jornalística e a produção de conhecimento. Em nossa sociedade, com matérias pautadas muito mais pela singularidade, a notícia de um feminicídio seria apenas mais um relato de um crime hediondo. A maioria dos crimes ligados à questão de gênero dificilmente conseguem sair do singular, sendo que o feminicídio e as condições que levam ao crime são discutidas de forma mais ampla, do

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particular ao universal, em episódios que se destacam entre o público e se tornam pauta de discussões em diversos segmentos da sociedade.

Ainda no campo da objetividade, o lead e a técnica da “pirâmide invertida” são opções para uma escrita mais objetiva da notícia e que informa o leitor de maneira rápida e cômoda. Genro Filho ressalta que o lead equivale ao caráter singular da notícia, enquanto a “pirâmide invertida” condensa as informações principais no início da matéria e elenca as demais informações em grau de importância, do mais ao menos relevante. O receptor se informa brevemente e não pergunta sobre o que levou aquele fato, acabando por não refletir e questionar a respeito do tema.

O autor destaca que existem problemas nas técnicas derivadas da perspectiva empirista promovida pelo lead e pela pirâmide invertida, a qual incumbe o jornalista a sempre responder a seis perguntas (o que, quem, quando, onde, como e por quê).

A tese da "pirâmide invertida" quer ilustrar que a notícia caminha do "mais importante" para o "menos importante". Há algo de verdadeiro nisso. Do ponto de vista meramente descritivo, o lead, enquanto apreensão sintética da singularidade ou núcleo singular da informação, encarna realmente o momento jornalístico mais importante. Não obstante, sob o ângulo epistemológico - que é o fundamental - a pirâmide invertida deve ser revertida, quer dizer, recolocada com os pés na terra. Nesse sentido, a notícia caminha não do mais importante para o menos importante (ou vice-versa), mas do singular para o particular, do cume para a base. O segredo da pirâmide é que ela está invertida, quando deveria estar como as pirâmides seculares do velho Egito: em pé, assentada sobre sua base natural (GENRO FILHO,1987, documento online).

O objetivo não é apontar o modo de fazer Jornalismo com base no lead como algo incorreto, mas sim refletir sobre as práticas e consequências deste modo, que se prende demais às respostas resumidas das perguntas, sem aprofundar-se no contexto social que leva a sua ocorrência. Ao observar o Jornalismo não apenas como um reflexo da realidade, mas por meio de uma perspectiva construcionista – que propõe a formação de conhecimento – de determinada forma que se torna um padrão de contar as histórias, é possível ver o Jornalismo por outra perspectiva e pensar nele próprio como narrativa.

Para isso, na próxima sessão, com o amparo de autores que ressaltam essa característica do texto, exploramos a capacidade da notícia jornalística como narrativa, a qual pode definir e contextualizar um fato para que o receptor consiga analisá-lo e compreendê-lo, construindo a maneira com que ele enxerga a realidade do mundo.

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2.2 A narrativa e a construção da realidade

O ser humano é um nato contador de histórias (e estórias3). Antes mesmos de

desenvolver a fala e a escrita, nossa espécie já registrava sua realidade nas paredes das cavernas. A narrativa está entrelaçada com a nossa existência, como um modo de expressão universal, independente de sua forma (falada, escrita, visual, gestual e verbal). Essa afirmação é estruturada por Luiz Gonzaga Motta (2013), que ressalta a forte presença da narrativa na trajetória da humanidade e sua participação nas relações desenvolvidas pelo ser humano.

O homem narra: narrar é uma experiência enraizada na existência humana. É uma prática humana universal, trans-histórica, pancultural. Narrar é um metacódigo universal. Vivemos mediante narrações. Todos os povos, culturas, nações e civilizações se constituíram narrando. Construímos nossa biografia e nossa identidade pessoal narrando. Nossas vidas são acontecimentos narrativos. O acontecer humano é uma sucessão temporal e causal. Vivemos as nossas relações conosco mesmo e com os outros narrando. Nossa vida é uma teia de narrativas na qual estamos enredados (MOTTA, 2013, p. 17).

De acordo com Motta, as narrativas são mais que representações, são algo constante em nossa rotina (elas estão presentes no jornalismo, na publicidade, nas fotografias, nos filmes, entre outros) e com a capacidade de atribuir significado a vida humana. Por meio delas, os seres humanos “reiteram e confirmam o canônico, nomeiam e explicam o desviante, legitimam e estabilizam o mundo. Na narrativa, imitamos a vida; na vida, imitamos as narrativas” (MOTTA, 2013, p. 19).

Segundo S. Elizabeth Bird e Robert W. Dardene (1999), estudar as narrativas é algo fundamental, visto a ênfase dada aos textos enquanto construções culturais. Ao perceber o papel essencial da narrativa em diversas construções culturais estudadas por antropólogos, um novo olhar foi dirigido às narrativas etnográficas, às estórias noticiosas, diferenciando-as de apenas um relato objetivo dos fatos.

3

Diversos autores trabalham com o termo no contexto da narrativa. De acordo com BIRD e DARDENE (1999) “tal como as notícias, a história e a antropologia narram acontecimentos reais, e os seus profissionais estão a descobrir que para compreender as suas narrativas têm de analisar como são construídas, incluindo os mecanismos de contar a ‘estória’ que constituem parte integrante dessa construção” (BIRD e DARDENE, 1999, p. 264). Para MOTTA (2013), as notícias jornalísticas não são a realidade, mas sim um relato da realidade, um recorte de elementos organizados pelo narrador, por isso a utilização da palavra estória se encaixaria nas narrativas jornalísticas.

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Os autores mantêm a visão de que as notícias são narrativas e estórias sobre a realidade e não a realidade em si. Essa implicação não as torna menos verdadeiras, porém não as isentam de influencias externas.

Considerar as notícias como narrativas não nega o valor de as considerar como correspondentes da realidade exterior, afetando ou sendo afetadas pela sociedade, como produto de jornalistas ou da organização burocrática, mas introduz uma outra dimensão às notícias, dimensão essa na qual as estórias de notícias transcendem as suas funções tradicionais de informar e explicar. As notícias enquanto abordagem narrativa não negam que as notícias informam; claro que os leitores aprendem com as notícias. No entanto, muito do que aprendem podem ter pouco a ver com os fatos nomes e números que jornalistas tentam apresentar com tanta exatidão Esses pormenores - significante e insignificante - contribuem todos para o bem mais amplo sistema simbólico que as notícias constituem. (BIRD E DARDENE, 1999, p. 265).

Ainda conforme os autores, com a formação de um sistema simbólico integrado pelas notícias – entre outras narrativas -, a estrutura que as compõem torna possível que o público aprenda com elas.

Mas esse processo não ocorre somente em um sentido, das notícias para os receptores delas. Em sua obra, Motta (2013) destaca a relação de poder existente na comunicação narrativa entre quem fala e quem escuta. Por mais que a responsabilidade da compreensão da narrativa, na maioria das vezes, esteja com o sujeito que narra, existe sempre uma contraforça de quem está recebendo a mensagem. O autor ressalta que é nessa correlação de forças que o sentido e a verdade são coconstruídos. Neste caso, o discurso seria uma coconstrução coletiva coparticipativa, interacionista.

De acordo com essa perspectiva, construir sentido implica sempre em uma troca de palavras em um ato de fala interlocutivo no qual os significados circulam e se permutam permanentemente entre um emissor e um destinatário, em uma troca comunicativa através da qual os interlocutores exercem mútuas e recíprocas influências uns sobre os outros (MOTTA, 2013, p. 20).

Como um elemento essencial para a comunicação, precisamos compreender a funcionalidade e as nuances da narrativa no momento de sua construção. Em seu estudo, Motta elenca seis razões fundamentais para estudar as narrativas. A primeira, é compreender quem somos, como construímos as nossas autonarrações. A segunda é entender como representamos o mundo. A terceira, compreender por que às vezes tentamos representar fielmente o mundo e em outras, imaginativamente. A quarta razão é entender como representamos o tempo, tornando-o um tempo humano. A quinta é verificar como as

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narrativas estabelecem consensos a partir de dissensos. A sexta e última razão elencada para estudar as narrativas é para melhor contá-las.

De acordo com Motta, em seu segundo argumento, existe uma discussão sobre as formas que o homem a utiliza para representar a realidade. Em uma sociedade em que as pessoas cada vez menos são testemunhas diretas dos fatos, construímos significados através de significados já pré-existentes. Essa é a maneira humana de tornar a compreensão e a existência dos fenômenos em algo familiar. O ser humano é quem interpreta o ambiente físico e social onde habita e estabelece sentido ao mundo que vive, o tornando mais coerente para si mesmo, ultrapassando os limites da reflexão ou representação, e chegando à construção de mundo.

Se a formação desse mundo e dessa realidade, realizada pelos significados contidos nas narrativas compartilhadas pelo ser humano, ocorre de maneira privilegiada para alguns, favorecendo determinadas classes sociais, gêneros, raças e crenças, a narrativa também teria o poder de fornecer novos significados, abrangendo-os de forma equivalente e com novos sentidos. Por isso a importância de tratar de forma clara assuntos que ainda possuem uma atribuição equivocada de significados, como é o caso da violência contra a mulher e do próprio feminicídio.

De acordo com Bird e Dardene (1999), ao considerar as notícias como processos de comunicação, é possível que elas exerçam o papel de mito e folclore. Por meio deles, “os membros de uma cultura aprendem valores, definições do bem e do mal, e algumas vezes podem sentir emoções subjetivas – nem todas através de contos individuais, mas através de um conjunto de tradições e crenças populares” (BIRD e DARDENE, 1999, p. 266). O mito seria utilizado para explicar aos seres humanos o mundo criado por eles mesmos, desvendando fenômenos que fogem do comum. Assim como o mito, as notícias contam suas estórias conforme o seu significado.

Destaco ainda a quinta razão citada por Motta para o estudo das narrativas: como indivíduos e sociedade cotejam o excepcional e consuetudinário a fim de tornar familiar o que antes era não familiar. A ruptura do consuetudinário, do senso comum, ocorre graças à narrativa, afinal, é dela que o senso comum se vale para realizar a negociação dos sentidos. Motta volta a ressaltar que vivemos em uma sociedade cada vez mais mediada, na qual a maior parte do nosso conhecimento de mundo vem de relatos variados. Esses relatos podem vir de conversas presenciais e também de diversos meios tecnológicos (nesse ponto podemos pensar nos jornais, rádio, televisão e mídias sociais, por exemplo).

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Esses meios nos auxiliam a classificar e compreender o excepcional, orientando nossos comportamentos e decisões, além de naturalizar o mundo social da forma em que ele se apresenta. Porém, esses relatos podem vir carregados de elementos que quebram com o fluxo do consuetudinário.

Os significados divergentes se originam na percepção de anormalidades relativas à ordem estabelecida, quase sempre a ordem que aceitamos e vivemos como natural. Ao inserir-se no cotidiano da vida, o extraordinário confronta-se com a lógica da racionalidade corriqueira. Os conteúdos extraordinários se chocam com a ordem constitucional, os sentidos homogêneos e hegemônicos. O relato do extraordinário gera surpresa e a ansiedade e desencadeia um processo de negociação de sentidos de redução da ambiguidade. O incidente discrepante precisa ser nomeado, classificado e assimilado (MOTTA, 2013, p. 56).

No caso do objeto em estudo neste trabalho, consideramos que os próprios feminicídios são vistos como crimes que escapam ao padrão, em especial pela sua motivação ser baseada no gênero da vítima. A barbárie, o crime, é o excepcional. Mas sua explicação acaba se limitando a fazer o público compreender apenas uma parcela do problema retratado na notícia - apontando como motivação do assassinato o ciúme ou a paixão nutrida pelo companheiro da vítima, por exemplo -, deixando de lado a real motivação do ato e até mesmo substituindo o termo correto, mas fora do conhecimento linguístico de parte do público (feminicídio), por termos popularmente conhecidos e difundidos, como “crime passional”.

Da mesma forma que auxiliam na compreensão até certo ponto equivocada da situação, as narrativas também podem esclarecer ao público sobre problemas presentes na sociedade.

O papel dos relatos é ambivalente. Por um lado, insistem sobre as ameaças; por outro, oferecem uma visão tranquilizadora rumo ao restabelecimento da ordem. É preciso domar o selvagem, colocar ordem nas coisas, nomeá-las, explicá-las, assimilá-las. A sociedade precisa retomar rapidamente sua estabilidade - ou a loucura se instala. Quanto maior a ambiguidade, maior será a necessidade de informações adicionais para que o impacto e a ansiedade inicial esmoreça e os acontecimentos possam ser assimiladas. Novos relatos convocam, estabelecem competências, criam e legitimam atores, geram cognitivamente novos consensos, reintroduzindo a ordem onde a desordem ameaçava tornando familiar o que antes era não familiar (MOTTA, 2013, p. 56).

Os relatos devem auxiliar a sociedade a colocar em ordem um mundo caótico, desde que a luta contra as contingências seja estruturada pela reflexão e a compreensão de suas causas, não um reforço de significados que precisam ser repensados. Incluindo este trabalho na busca pela compreensão e reflexão sobre o tema, trago a seguir as definições e características legais do feminicídio.

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3. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NAS NARRATIVAS JORNALÍSTICAS

A veiculação de notícias que informam sobre casos de violência e até assassinato de mulheres por questão de gênero não é algo esporádico na imprensa brasileira. Por mais que a maioria dos casos sejam divulgados como notícias isoladas, um ponto de ligação entre os crimes fica subentendido nas entrelinhas dos textos jornalísticos: a cultura machista que ainda existe no país. O resultado é o registro de um extermínio de mulheres pelo fato de serem mulheres.

Com o dever social de informar, o jornalista possui em suas mãos uma ferramenta poderosa para incentivar a mudança de costumes que ferem os princípios de igualdade entre homens e mulheres. A narrativa, como foi destacada no segundo capítulo desta monografia, é peça fundamental para estabelecer significados e o nosso entendimento do mundo. Mesmo não sendo uma tarefa simples, a narrativa também poderia ser utilizada para transformar paradigmas nocivos para as mulheres, abrindo espaço para o debate e a reflexão sobre as implicações de ser mulher.

Mas, antes de informar, o jornalista deve conhecer o assunto que lhe é solicitado trabalhar, além de saber como abordar o tema para que o público compreenda o contexto social em que a notícia está inserida. Por isso, apresentamos aspectos que envolvem a Lei 13.104/2015 – a Lei do Feminicídio – e ressaltamos como o tema homicídio de mulheres é tratado pela mídia atual, com destaque para os erros mais comuns na cobertura deste crime.

3.1 Femicídio – a morte de mulheres por serem mulheres

Em 9 de março de 2015, a Lei número 13.104 – também conhecida como a Lei do

Feminicídio – foi sancionada pela então presidente Dilma Rousseff. Em seu caput, é informada a alteração do artigo 121 do Código Penal, de 7 de dezembro de 1940, para estabelecer o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Ela também causou alterações no artigo 1º da Lei número 8.072, de julho de 1990, a qual dispõe sobre os crimes considerados hediondos. Com a nova resolução, o feminicídio passou a integrar o rol dos crimes hediondos4.

4 Crimes considerados repugnantes e que ferem os valores da sociedade e a dignidade do ser humano. O estupro

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O feminicídio é definido pela Lei 13.104/2015 como o crime praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Essas razões são definidas quando o crime envolve “violência doméstica e familiar” e o “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. A pena para o feminicídio é a reclusão, de 12 a 30 anos, para o autor do crime. Ainda conforme a lei, a pena pode ser agravada.

§ 7º - A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:

I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;

II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;

III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2015).

De acordo com a professora e doutora em Ciências Criminais, Carmen Hein de Campos (2015), mesmo falhando em alguns aspectos – na utilização de sexo feminino ao invés de gênero, por exemplo, e excluindo em um primeiro momento as mulheres transexuais – a criminalização do feminicídio no Brasil segue o exemplo de outros países latino-americanos na luta contra a naturalização da violência com base no gênero.

Consequentemente, conceituar o feminicídio como atos ou condutas misóginas que levam à morte, ou a morte por razões de gênero ou ainda como uma forma extrema da violência baseada no gênero busca proteger um bem jurídico considerado penalmente relevante (a vida). Assim, o feminicídio seria uma adequação típica contraposta à figura do homicídio, visando diferenciar e nominar a especificidade das mortes de mulheres. (...) as condutas pelas quais as feministas identificam o femicídio/feminicídio revelam as características específicas dessas mortes, isto é, a sua conformação diferenciada do homicídio. Por exemplo, a existência de violência sexual, mutilação e desfiguração do corpo da vítima (especialmente seios, vagina e rosto) desvelam um comportamento misógino. A morte nas (ex) relações íntimas de afeto demonstra não apenas a vulnerabilidade das mulheres no interior dessas relações, mas a tentativa de controle e posse absolutas sobre o corpo feminino que não pode ser entendida como comportamentos motivados por ciúme ou violenta emoção. Em geral, são crimes premeditados, originados do machismo culturalmente enraizado na sociedade. Não há perda do controle ou injusta provocação da vítima, mas uma atitude consciente de negação do direito à autonomia feminina. O reconhecimento da violenta emoção nesses casos configura tolerância estatal a crimes machistas e sexistas, pois não pode haver violenta emoção quando a motivação é impedir a autodeterminação feminina, conduta tão bem expressa na frase “se não for minha não será de ninguém” (CAMPOS, 2015, p. 7).

O machismo culturalmente enraizado em nossa sociedade, como citou Campos, resulta na morte de milhares de mulheres por ano. Segundo um levantamento realizado pelo Instituto Patrícia Galvão, o qual desenvolveu um dossiê a respeito da violência contra as mulheres no Brasil, uma média de treze homicídios femininos ocorreram por dia em 2013. Junto ao documento, o instituto formulou também um cronômetro da violência, reunindo dados de

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diversas organizações para estabelecer uma média de tempo e vítimas da violência de gênero no Brasil. De acordo com os dados levantados, a cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas no país. A cada 11 minutos ocorre um estupro. A cada três horas é registrado um feminicídio.

De acordo com o Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil, nosso país é o quinto que mais mata mulheres no mundo, – atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e da Federação Russa. A taxa de feminicídios no Brasil é 48 vezes superior ao índice registrado no Reino Unido, por exemplo. Ainda de acordo com o relatório, a maioria das vítimas de feminicídios no Brasil são mulheres negras, de classe baixa, entre os 18 e os 30 anos idade.

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Figura 1 – Taxas de homicídios de mulheres (por 100 mil) em 83 países do mundo

Fonte: Mapa da Violência 2015 – Homicídios de mulheres no Brasil

Mesmo com números alarmantes, as leis voltadas a atender as mulheres vítimas da violência desagradam uma parcela da população. Campos argumenta que a criminalização e a punição do feminicídio não devem ser vistas como favorecimento para as mulheres, mas sim como busca pela igualdade e pelo direito à vida.

Alguns podem sustentar que a qualificadora5 fere o princípio da igualdade ao tratar diferentemente a morte das mulheres. Entendo que não há a incidência dessa

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hipótese. Assim como a Lei Maria da Penha6 diferenciou a violência contra as mulheres nas relações conjugais e no ambiente doméstico e familiar compreendendo que há nelas um desequilíbrio de gênero em desfavor das mulheres, o feminicídio é o aspecto extremo dessa desigualdade e violência de gênero. Assim, tem-se a nomeação de uma violência decorrente de uma desigualdade de fato.

Pode-se argumentar que a morte da esposa envolvendo violência doméstica e familiar seria um feminicídio ao passo que a morte do esposo não, o que violaria o princípio da igualdade. Como mencionado, o argumento não procede, pois a qualificadora nomina diferenciadamente a motivação de um comportamento feminicida ocorrido em uma circunstância específica. Argumento semelhante foi utilizado para negar eficácia à Lei Maria da Penha, mas considerado improcedente pelo Supremo Tribunal Federal (CAMPOS, 2015, p. 7).

É necessário esclarecer ao grande público os fatores que diferem o feminicídio de um homicídio, não promovendo o favorecimento de um gênero sobre o outro, mas sim a proteção que busca a igualdade.

De acordo com Nielsson e Pinto (2016), a Lei do Feminicídio é um passo importante para o reconhecimento do problema social no país e promove o debate sobre o tema. Porém, medidas punitivas irão combater as consequências desse problema e não as suas causas. Para isso, as autoras destacam a necessidade de continuar a discussão sobre o crime de gênero.

A partir da edição da Lei do Feminicídio no Brasil, tem se intensificado uma série de debates acerca dos rumos que o enfrentamento à violência de gênero tem tomado. Este debate parte, inicialmente, do reconhecimento deste fenômeno como um problema social grave e letal, dirigido especialmente às mulheres. Tal apreensão é fundamental e deve ser anterior ao debate sobre a necessidade de criar mais uma lei penal. Sem que isto esteja em questão, enquanto o fenômeno for tratado como um problema menor ou desenraizado dos elementos estruturantes que o constituem, o debate será vazio e desqualificado em sua potência de denúncia e enfrentamento antidiscriminatório. Neste sentido, o debate acerca do tema adquire uma urgência e um caráter de denúncia em prol da luta antidiscriminatória cujo valor é fundamental (NIELSSON e PINTO, 2016, p.9).

Como uma ferramenta capaz de promover o diálogo entre diferentes segmentos da sociedade, o Jornalismo é uma das opões para realizar esse debate social sobre o feminicídio. Porém, tratando de uma resolução relativamente nova, as mudanças causadas pela Lei do Feminicídio não se restringiram apenas ao âmbito penal, mas também se estendem para outras áreas. O Jornalismo segue se adaptando à utilização do termo feminicídio nos até então considerados “crimes passionais”, ou homicídios.

6

Sancionada em 7 de agosto de 2006, a Lei 11.340 “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>

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3.2. O feminicídio na imprensa

As populares pautas policiais são assuntos de destaque nos veículos de comunicação, dependendo de sua linha editorial, e são utilizadas muitas vezes como forma de chamar a atenção do público para fatos impressionantes. O livro Mídia e Violência das autoras Silvia Ramos e Anabela Paiva (2007) aponta a evolução na cobertura jornalística da área policial e de segurança pública. Alterações nas políticas de reprodução de imagens dos crimes e a cobertura dos casos por repórteres que também apuram outras áreas – promovendo a integração do tema com assuntos que envolvam educação, saúde, entre outros – exigindo uma preparação maior do jornalista, são observadas pelas autoras.

Porém, Ramos e Paiva (2007) ressaltam a grande dependência das informações oriundas de fontes policias para a cobertura feita pelos profissionais de imprensa. Mesmo sendo crucial a participação de órgãos ligados à segurança pública para falar sobre casos de violência, essas organizações não são as únicas fontes disponíveis para abordar os episódios e promover uma cobertura completa.

Responsáveis pela repressão, registro e investigação de crimes e outros atos violentos, as polícias Civil, Militar e Federal são, naturalmente, a principal fonte de informações sobre a criminalidade.

Nada haveria a criticar nesta prevalência não fosse o fato de que as forças de segurança são a única fonte das matérias em um expressivo número de casos. Um grande percentual de reportagens (mais de 50%) apresenta apenas uma pessoa ou instituição como a origem dos dados ou informações. Na maior parte das vezes, esta fonte está ligada a um batalhão da PM ou a uma delegacia da Polícia Civil.Tal predominância tem como contraponto a ausência de outros importantes atores sociais, raramente nas páginas (RAMOS e PAIVA, 2007, p.37).

Essa dependência das fontes policiais pode ser um fator prejudicial para a cobertura de casos de feminicídio pela mídia brasileira, reforçando padrões que prejudicam a promoção de um debate sobre o tema. O livro Feminicídio #InvisibilidadeMata, organizado pelo Instituto Patrícia Galvão e pela Fundação Rosa Luxemburgo (2017) ressalta a grande presença das fontes ligadas à segurança pública nas matérias e a falta de menções as políticas públicas de proteção as mulheres.

Outro indicativo da falta de abordagem crítica e da ausência de um debate contextualizado e aprofundado na imprensa é a pequena quantidade de matérias que mencionam as políticas públicas e as leis que tratam dos crimes violentos contra mulheres. É papel da imprensa questionar as diferentes esferas de governo para cobrar soluções que evitem novas ocorrências e exigir a responsabilização dos autores desses crimes.

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As fontes de informação mais ouvidas pelos jornalistas são os representantes da segurança pública, como policiais e delegados, seguidos pelos advogados dos réus. Raramente promotores e juízes são consultados, sendo que, na maioria das matérias, gestores de políticas públicas não são interpelados (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2017, p. 149).

A publicação também apresenta diversos exemplos de matérias jornalísticas que tentam justificar a ocorrência dos crimes. Seja pelo viés de ato cometido por “ciúmes”, “descontrole após sucessivas provocações” ou para “proteção da honra”, muitas matérias acabam promovendo a revitimização, isto é, apontam a vítima como culpada do crime que sofreu.

Quando a mulher assassinada não se encaixa nos estereótipos de comportamento e recato impostos pela sociedade, essas características são muitas vezes apontadas pelas notícias como fatores de risco, por assim dizer, os quais justificariam a violência e até o feminicídio.

Em notícias sobre latrocínios7, por exemplo, não é de praxe procurar justificativas que

apontem negligência da vítima. As cobranças são destinadas aos governantes na busca por mais segurança. Quando o assunto é feminicídio, muitas vezes não é lembrado que o Estado também pode ter falhado em proteger a mulher assassinada.

Em um levantamento realizado pelo projeto “Monitoramento da cobertura jornalística sobre feminicídio e violência sexual contra mulheres”, também organizado pelo Instituto Patrícia Galvão, foram avaliados os títulos e textos – divulgados em 2015 – por 71 veículos de comunicação do país sobre casos de violências extremas motivadas pelas condições de gênero. Neste estudo, foram encontrados os seguintes padrões nas publicações observadas:

• O histórico anterior de violências e a situação das mulheres e meninas após o crime – nos casos de tentativa de homicídio, estupro e tentativa de estupro – quase nunca são informados;

• O termo ‘feminicídio’ tem baixíssimo uso no noticiário sobre mortes violentas de mulheres, inclusive em contexto íntimo, sendo muito usadas como ‘motivação do crime’ expressões como ‘crime passional’, ‘ciúmes’, autor ‘fora de si’ ou ‘descontrolado’;

• São raramente difundidas nas matérias informações sobre a rede de apoio e instituições do sistema de justiça que podem ser acessadas pelas mulheres vítimas de violência;

• Os casos de feminicídio consumado são noticiados na maioria das vezes preservando-se o nome do principal suspeito, embora as matérias relatem que este é o parceiro íntimo da vítima e autor confesso;

7 De acordo com o § 3º do artigo 157 do Código Penal, o latrocínio é definido como “subtrair coisa móvel alheia,

para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: (...)§ 3º Se da violência resulta (...) morte, a reclusão é de vinte a trinta anos, sem prejuízo da multa. <Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10619340/artigo-157-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-dezembro-de-1940>

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• Observa-se que é mais comum a divulgação dos nomes e fotos dos autores nos casos de violência sexual, mesmo quando o caso é noticiado como ainda em fase de suspeição (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2017, p. 148).

É preciso destacar a capacidade que o Jornalismo possui de fomentar o debate de temas importantes como o feminicídio na esfera pública. Neste caso, informar não é o suficiente. As notícias precisam fornecer ao público informações que expliquem o contexto

social em que o crime ocorreu, fugindo do singular e por consequência do sensacionalismo8.

O feminicídio não pode ser divulgado como uma história de amor mal sucedida, mas sim como a sucessão de abusos que resultaram em um ato de extrema violência: o assassinato.

O livro Feminicídio #InvisibilidadeMata aponta ainda sugestões para a cobertura de casos de feminicídio. A primeira é compreender o que é o crime para saber identificar os assassinatos por questão de gênero. Questionar a responsabilidade do Estado – o qual deve desenvolver políticas para coibir a violência contra a mulher – e se ele acabou falhando com a vítima que solicitou ajuda. A terceira sugestão é possuir extremo cuidado com imagens e títulos, evitando usar informações desnecessárias que resultem no reforço de estereótipos que violem a memória da vítima ou ainda a culpem pelo crime. O livro destaca também a importância de vincular canais de denúncia e serviços, como a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, para auxiliar as vítimas de violência. Em resumo, é investir mais na apuração do fato e ter consciência de que o feminicídio de uma mulher no presente pode ser o futuro de outra que não enxerga meios de procurar ajuda. A apuração dos fatos realizada de forma consciente possibilita que a notícia saia do seu aspecto singular e passe a tratar sobre o contexto de violência contra as mulheres, abordando um aspecto universal do problema.

Para observar a produção jornalística sobre feminicídios, no próximo capítulo, vamos analisar a cobertura realizada pelo jornal Zero Hora da chacina em Campinas, a qual recebeu destaque na mídia nacional devido ao grande número de vítimas e as supostas motivações do autor do crime.

8 De acordo com GENRO FILHO (1987), o sensacionalismo seria o aspecto singular de uma notícia levada ao

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4 ANÁLISE DA INTRIGA E DAS PERSONAGENS DA CHACINA EM CAMPINAS

A proposta deste capítulo é analisar o caso da chacina em Campinas e verificar como a construção da narrativa favoreceu ou prejudicou uma análise ampla do tema, passando do singular (o crime) para uma percepção social, o caráter universal (a violência contra a mulher, o machismo e o feminicídio).

O objetivo do estudo é analisar a abordagem realizada pelo jornal Zero Hora, considerado um jornal de referência, sobre o caso, avaliando os sentidos produzidos pelo jornal a respeito do tema violência contra a mulher e a utilização do termo feminicídio no diálogo com o público para o entendimento do caso, além da composição dos personagens correspondentes a vítima e ao agressor, a partir da metodologia de Análise Crítica da Narrativa (MOTTA, 2013).

4.1 Metodologia

Em nossa memória, guardamos milhares de narrativas, fáticas ou ficcionais, das quais nos recordamos sempre que somos confrontados com alguma situação, seja ela cotidiana ou excepcional. Os melhores textos, os quais realmente nos marcam, são os que apresentam o melhor desenvolvimento narrativo. Seja a saga de um protagonista desajustado ou uma notícia lida no jornal de domingo, as narrativas nos preparam para entender o mundo, influenciando na maneira como vamos encarar a realidade. De acordo com Motta (2013), os significados expressados pelo texto dependem da construção narrativa feita pelo narrador.

Mesmo baseadas na realidade, como é o caso das narrativas jornalísticas, Motta (2013) destaca que o narrador é praticamente o dono da história. Segundo o autor, o texto – ponto de partida da análise – representa o elo entre o narrador e o destinatário, para assim produzir significado. O narrador escolhe e organiza o que é contado, estabelecendo a ordem em um emaranhado de fatos. Detalhes como o uso de determinados termos e a forma que a história é contada são algumas das táticas que podem ser aplicadas pelo autor do texto. Ao desvendar o projeto dramático – o conjunto de técnicas utilizadas pelo narrador na estruturação do enredo para expressar os sentidos almejados por meio do texto – é possível compreender estratégias e escolhas por ele feitas para contar a história, atribuindo aos objetos presentes na narrativa mais significações.

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Para a análise empírica da narrativa, Motta sugere os seguintes movimentos aos estudiosos: 1º movimento - compreender a intriga como síntese do heterogênio; 2º movimento - compreender a lógica do paradigma narrativo; 3º movimento - deixar surgirem novos episódios; 4º movimento - permitir ao conflito dramático se revelar; 5º movimento – personagem: metamorfose de pessoa a persona; 6º movimento – as estratégias argumentativas e por fim, o 7º movimento – permitir as metanarrativas aflorar. Para este estudo, serão utilizados os indicadores dos movimentos um e cinco.

Para o primeiro movimento, de acordo com Motta, o analista precisa ter definido com exatidão o começo, o desenvolvimento, o fim do enredo e os pontos de ligação do texto. Para a análise é preciso decompor e recompor a narrativa, identificando sequências básicas, pontos de virada ou inflexões essenciais, os limites dos episódios parciais, as conexões entre eles, os conflitos principais e secundários, o protagonista e o antagonista principais e seus adjuvantes, como o enredo organiza a totalidade, e assim por diante, a fim de compreender como o narrador compôs sua estória na situação de comunicação. “Observar, decompor e recompor, enfim, a sintaxe aqui é da história, não do discurso. É preciso descobrir as relações de solidariedade (relações lógicas cronológicas) que vão se construindo no enredo a partir das ações relatadas” (MOTTA, 2013, p. 141).

O quinto movimento avalia o principal fator das narrativas: os seus personagens. Eles realizam e vivem as ações. “A personagem é, portanto, uma figura central da narrativa, é o eixo do conflito em torno do qual gira toda a intriga” (MOTTA, 2013, p. 174). Ao analisar os conflitos e as personagens que os protagonizam, o autor afirma ser possível perceber estratégias discursivas dos narradores para o posicionamento dessas figuras no enredo. É o narrador que atribui valores e características ao personagem, como um estratagema do projeto dramático.

Motta ressalta também que, mesmo se tratando de um ser real – como nas notícias jornalísticas – as personagens habitam o mundo das narrativas representam pessoas, mas não são as pessoas.

Nesse tipo de narrativas, que pretendem reproduzir fielmente o mundo e se referem a pessoas reais, as dificuldades para distinguir os dois níveis são ainda maiores. O analista deve partir do pressuposto de que mesmo quando a personagem tiver um correspondente de carne e osso, ela desempenha na sua representação funções de personagem ou figura de papel (MOTTA, 2013, p. 190).

Para empreender uma análise narrativa sobre feminicídio, seguindo os passos metodológicos propostos por Motta (2013), era necessária a seleção de um episódio de

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feminicídio – objeto da pesquisa – com início, meio e fim. Assim, após o estudo da metodologia, o movimento seguinte foi a pesquisa de notícias relacionadas a feminicídios na versão online de dois jornais com circulação estadual no Rio Grande do Sul: Zero Hora (do Grupo RBS) e Correio do Povo (da Rede Record).

Ao consultar as notícias divulgadas entre abril de 2016 e março de 2017 pelos sites de ambos os veículos de comunicação, foi encontrado um número consideravelmente pequeno de notícias com o termo “feminicídio”, se comparado às estatísticas que indicam o número de mulheres mortas por dia no Brasil9. No site do Correio do Povo, o número de notícias que utilizaram o termo foi 18. No caso do Zero Hora, 80 matérias apresentavam a palavra feminicídio.

Durante a clipagem das notícias pesquisadas, entre os casos divulgados pelo jornal Zero Hora associados ao termo feminicídio, estava a chacina em Campinas. No veículo de comunicação, o caso gerou a divulgação de cinco matérias em um período de 13 dias. Já no Correio do Povo, o qual não utilizou a palavra feminicídio ao narrar o caso, foram publicadas duas matérias. Com mais conteúdo disponibilizado por Zero Hora e a grande repercussão que o caso atingiu na época, definiu-se a cobertura deste caso para compor o objeto do estudo. Além disso, a escolha de Zero Hora leva em consideração o fato de tratar-se um veículo de referência, por ser utilizado como fonte para outros veículos de comunicação do país. A autora Angela Zamin (2014), após análise sobre fatores que apontariam um veículo de comunicação como de referência, destaca:

(...) identificam-se as seguintes características: ter tradição, prestígio e credibilidade; servir de referência a outros jornais no próprio país; voltar-se para a política, a economia e os assuntos internacionais; ter como público um leitor competente do mundo público (as elites econômica e cultural), e possuir índices elevados de tiragem e circulação. (ZAMIN, 2014, p. 14).

Ainda conforme a autora, a imprensa de referência também participa do contexto social em que está inserida, aproximando assuntos como política e economia dos culturais e sociais, auxiliando na significação social.

Um conjunto de autores, aqui representados por Casasús (1985), Imbert (1986, 1987, 1992), Merrill (1968, 1991) e Vidal Beneyto (1986, 1987), argumentam que jornais de referência são, ao mesmo tempo, produtores de uma instância enunciativa no plano simbólico, instituições sociais que se relacionam com um sistema mais amplo de instituições – as civis, econômicas, políticas, religiosas, educacionais, etc.

9

Em 2016, de acordo com os Indicadores da Violência Contra a Mulher, da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, foram registrados 96 feminicídios consumados e 263 feminicídios tentados no Estado. Disponível em: http://www.ssp.rs.gov.br/indicadores-da-violencia-contra-a-mulher.

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– e também empresas. Esses fatores – as mediações simbólica e social e a dimensão empresarial – são elementos-chave para a observação e compreensão do Jornalismo de Referência, enquanto espaço de significação (ZAMIN, 2014, p. 16).

Assim, com a escolha do caso a ser analisado, e a metodologia a ser adotada, privilegiando dois movimentos de análise propostos por Motta (2013), na análise vamos decompor a intriga para identificar os fatores heterogêneos colocados em relação pela versão online do jornal Zero Hora para contar a história. Após, os papéis das personagens construídas pelas matérias serão analisados para avaliar como se encaixam em um quadro mais amplo da notícia, saindo do princípio de crime isolado para um contexto social de agressão contra a mulher e feminicídio.

4.2 Análise narrativa da cobertura jornalística

Antes de iniciar a análise das notícias veiculadas pelo jornal Zero Hora, é preciso relembrar o caso e reconstruir a narrativa, como sugere Motta (2013). A seguir, um breve resumo que elaboramos após a leitura das informações divulgadas pelo veículo de comunicação nas matérias que trataram do crime.

Campinas, São Paulo. Era dia 31 de dezembro de 2016. Faltando poucos minutos para a virada do ano, Sidnei Ramis de Araújo, de 46 anos, pulou o muro da casa de familiares da ex-mulher, Isamara Filier, 41 anos, matando ela e mais onze pessoas. Entre elas, o filho do casal, João Victor, de oito anos. As vítimas estavam comemorando a chegada de 2017, quando o autor do crime invadiu o lugar atirando. Apenas quatro pessoas que estavam no local não foram atingidas pelos disparos. Das 12 pessoas assassinadas, oito eram mulheres. Após o crime, o autor cometeu suicídio.

A polícia apreendeu as armas utilizadas na chacina, o carro de Sidnei, um celular e um gravador. O crime foi registrado como homicídio consumado e pensado, além de suicídio. Sidnei e Isamara estavam em processo de divórcio. Ele havia perdido a guarda do filho para a ex-esposa. O autor da chacina deixou cartas escritas revelando a intenção de cometer os assassinatos, além de mensagens para o filho e a namorada. Os textos foram enviados por Sidnei a amigos antes do crime, revelando a premeditação do ato e o ódio pela ex-mulher e familiares delas, em particular do sexo feminino.

Os textos e áudios foram divulgados por diversos veículos de comunicação do país – ressaltando que o material não foi publicado na íntegra - causando um debate sobre a propagação do discurso de ódio do autor do crime, o qual tinha como alvo não apenas a ex-esposa, mas todas as mulheres que não tinham uma “boa índole”.

4.2.1 Mais uma notícia sobre violência

A primeira notícia foi publicada na versão online do jornal Zero Hora em 1º de janeiro 2017, algumas horas após a chacina corrida em Campinas, no estado de São Paulo. A matéria

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foi baseada no conteúdo publicado pela Agência Brasil. Sob o título “Doze pessoas da mesma família são mortas e três baleadas durante festa de Réveillon em Campinas”, apresenta as informações iniciais do caso e chama a atenção para a tragédia, o excepcional. Na linha de apoio, somos informados que entre as vítimas fatais do crime, estão a ex-mulher e o filho do autor dos disparos, o qual cometeu suicídio após a ação. Uma imagem, mostrando a retirada dos corpos do local do crime, ilustra a primeira matéria sobre o caso. A foto é creditada para Denny Cesare do Estadão Conteúdo.

O primeiro parágrafo atende à fórmula do lead, explicando as informações necessárias para a compreensão imediata do crime. Entre elas, o nome do autor da chacina.

Um homem invadiu uma casa em Campinas, no interior de São Paulo, na meia-noite da madrugada de sábado para domingo e matou 12 pessoas de uma mesma família. Outras três vítimas foram levadas com vida para hospitais da cidade. Após ter efetuado os disparos, Sidnei Ramis de Araújo, 46 anos, cometeu suicídio.

O parágrafo seguinte destaca a presença da ex-mulher de Sidnei, Isamara Filier, de 41 anos, e do filho deles, João Victor, de oito anos. Eles estavam no local da chacina comemorando o Ano-Novo com parentes de Isamara, proprietários da casa. Na matéria também consta o depoimento de um sobrevivente aos policiais, o qual revelou que Sidnei invadiu a casa pulando o muro. Ele relata que percebeu o que estava ocorrendo ao ver o tio cair no chão, momento em que a testemunha correu até um banheiro e ligou para a polícia e unidades de resgate. De acordo com a matéria, o caso foi registrado pelo 4º Distrito Policial de Campinas como homicídio consumado e pensado e ainda suicídio. No local, foram apreendidas as armas usadas pelo autor do crime, o carro, um gravador e um telefone celular, objetos utilizados por Sidnei.

Ainda citando como fonte a Polícia Militar, a matéria revela que Sidnei e Isamara estavam em processo de separação e que ele escreveu cartas informando a intenção de matar a ex-esposa e familiares dela, sem exibir trechos das cartas. Os textos eram destinados ao filho, morto na chacina, e à namorada de Sidnei, sendo enviados a amigos pouco antes do crime.

No último parágrafo da notícia, somos informados dos nomes das outras vítimas da chacina. Além de Isamara e João Vitor, também foram vítimas do crime Liliane Ferreira Donato, 44 anos; Rafael Filier, 33; Antonia Dalma Ferreira de Freitas, 62 anos; Abadia das Graças Ferreira, 56; Paulo de Almeida, 61; Ana Luzia Ferreira, 52; Luzia Maia Ferreira, 85; Larissa Ferreira de Almeida, 24; Carolina de Oliveira Batista, 26 e Alessandra Ferreira

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de Freitas, 40. A matéria ainda destaca que apenas quatro pessoas que estavam no local não foram atingidas pelos disparos.

Figura 2 - Primeiras informações do crime

Fonte: Zero Hora

Na síntese do heterogêneo realizada na narrativa do primeiro texto, o crime não foi associado diretamente a mais temas. Porém, proporciona o desenvolvimento de suposições. O elevado número de vítimas de uma mesma família chama a atenção, sendo a maioria

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