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NEM FORMA NEM FUNÇÃO: O CONTEMPORÂNEO

3.8 Última Tipologia

Alternando textos realistas e sarcásticos sobre a metrópole e seu processo de produção e textos teóricos sensacionalistas sobre metodologia de projeto, Rem Koolhaas vem, desde a década de 1970, construindo a definição de uma tipologia essencialmente urbana, fruto do capitalismo avançado.

A teoria da Lobotomia conceituada em “Delirious New York” identificou a separação irremediável entre forma e função, já alterando seu status para ‘envelope e programa’. Essa

teoria foi posta em prática no projeto para o Parque La Villette, que levou a separação entre forma e função ao extremo de a forma praticamente desaparecer ao buscar simular o movimento contínuo da metrópole, a congestão. Na proposta para Yokohama (1992), a ausência de forma, de ‘substância’ exercitada em La Villette ganha escala urbana, necessária para a passagem da “lava programática”: “(...) programas com mínima articulação material foram desenvolvidos para gerar a maior densidade possível com a menor permanência possível”. Essa proposta ficou conhecida como Lite Urbanism (KOOLHAAS, 1995, p.1120-1225).

Consolida-se assim uma visão do início do século XXI sobre o fenômeno urbano como resultado do embate entre os novos e pontuais empreendimentos capitalistas, os restos da cidade histórica e a periferia infindável, principalmente nas metrópoles do terceiro mundo. Na tentativa de entender os processos de produção da cidade contemporânea - para assim poder atuar dentro dela, Koolhaas lança "Junk Space" (2004). De tom catastrófico e bombástico, o texto expõe a cidade contemporânea como produto da modernização - não a modernização idealizada, resultado de anos de implantação da arquitetura moderna, mas como lixo, 'simplesmente' "o produto do encontro entre a escada rolante e o ar-condicionado, concebido em uma incubadora de painéis de gesso" (KOOLHAAS, 2004, p.162). O Junk Space seria o retrato da metrópole atual, representando a maioria esmagadora das construções, brotando aos montes na cidade à revelia dos arquitetos ou de qualquer controle efetivo.

Segundo Koolhaas, o processo de construção da cidade está descontrolado: por seu tamanho, sua complexidade, sua rapidez, pela total impossibilidade de planejamento urbano. É a Cidade Genérica:

A Cidade Genérica é a cidade liberada da servidão ao centro, da camisa de força da identidade. A Cidade Genérica quebra com esse ciclo destrutivo de dependência: não é nada mais que um reflexo das necessidades presentes e da habilidade presente. É a cidade sem história. É grande o suficiente para todos. É fácil. Não precisa de manutenção. Se fica muito pequena, simplesmente se

expande. Se fica velha, simplesmente se autodestrói e se renova. É igualmente excitante – ou desinteressante - em qualquer lugar. É “superficial” como um estúdio de Hollywood, pode produzir uma nova identidade a cada segunda- feira (KOOLHAAS, 1995, p.1250).

Neste contexto urbano, identificada a configuração espacial característica dos anos 1990 - formas prismáticas + programa complexo - coube a Rem Koolhaas desenvolver essa relação até a definição de uma nova tipologia, estabelecida por ele nesta década: a do edifício muito grande que obedece a 5 teoremas:

1. Além de uma certa massa crítica, um edifício se torna um Edifício Grande. Tamanha massa não pode ser controlada por um simples gesto arquitetônico, nem por uma combinação de gestos arquitetônicos. Essa impossibilidade propicia a autonomia de suas partes, mas não como uma fragmentação: as partes permanecem comprometidas com o todo (1995, p.500).

Os outros teoremas de certa maneira vêm comprovar essa autonomia das partes sem perder a relação com o todo. O segundo teorema versa sobre a liberdade conseguida com o advento do elevador, colocando as conhecidas discussões sobre composição, escala e proporção sob suspeita. O terceiro constata a desconexão total entre fachada e interior devido ao tamanho do volume, o que torna impossível uma relação de correspondência direta do tipo 'a fachada revela o interior' entre esses dois elementos: enquanto o interior resolve a "instabilidade programática e as necessidades iconográficas", a fachada oferece uma aparente estabilidade objetual à cidade como uma tentativa, mínima que seja, de estabelecer uma comunicação com o contexto urbano. O quarto estabelece o domínio amoral a que pertencem esses objetos – “além do bem e do mal”, uma vez que seu impacto é independente de sua qualidade. O último detecta a impossibilidade de tal objeto pertencer a qualquer tecido urbano, "ele simplesmente existe" (1995, pp.500-502). Assim, "somente através de Bigness que a arquitetura pode se dissociar dos exauridos movimentos artísticos e tecnológicos do

modernismo e do formalismo para recuperar sua instrumentalidade como veículo de modernização" (1995, p.510).

fig. 56. KOOLHAAS, R. Bigness, paginas do livro S,M,L,XL.

Ao expor as estratégias projetuais possibilitadas pelo Edifício Grande, Koolhaas atinge outra dimensão arquitetônica, que pressupõe um método de projeto próprio que utiliza artifícios como contaminação ao invés de pureza, quantidade ao invés de qualidade, e novas relações entre entidades funcionais que expandem, ao invés de limitar, suas identidades. Há também a aceitação do fato de que, frente a tamanha vastidão projetual, é impossível animar toda a sua massa com intenção - algumas zonas serão deixadas de fora, "livres da arquitetura" (1995, pp.511-513). Essas zonas, que muitas vezes ocupam andares inteiros e faixas enormes do edifício, são ocupadas por infraestrutura: vigas e pilares, dutos, fiação. Esse novo universo

estrutural, capaz de tornar real o Bigness, tem sido

desenvolvido em equipe com a Ove Arup59 e foi o

responsável, como Koolhaas parece demonstrar, por grande parte da inventividade projetual desta tipologia, uma vez que, por causa desta nova

condição, se fez necessário explorar novas

potencialidades para a formação do espaço. Como exemplo desta tipologia podemos citar a Sede Central da CCTV em Pequim, cuja construção teve início em 2005.

Os exemplos apresentados aqui ilustram o processo de superação da relação moderna de subordinação entre forma e função ocorrida ao longo da década de 1990. Consolida-se a ruptura entre forma e função através de metodologias que trabalham com conceitos como envelope e programa. O objetivo de um maior engajamento com a realidade fica cada vez mais próximo à medida que questões culturais, econômicas, políticas vão sendo incorporadas pelos processos de projeto, reconquistando para o arquiteto – cada vez mais um estrategista – o poder de construção da cidade.