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A ação partidária e eleitoral da RBS/ZH

No documento A metamorfose de Zero Hora (páginas 32-35)

De 1999 a 2002, o Rio Grande do Sul viveu uma situação singular. Os conflitos entre o governo estadual e a RBS constituíram-se no mais forte elo entre os dois atores. Como resultado, a população gaúcha viu estampada, em todos os veículos do grupo, a imagem de um Estado perigosamente dividido, contraditório e refém de governantes apresentados como incompetentes e autoritários.

Muitos fatos alimentaram a evidente antipatia entre a RBS e a maior parte das lideranças petistas, porém não se identifica um em particular que a tenha feito nascer. Na origem do conflito estão as visões de mundo distintas que o PT e o conglomerado possuem. A RBS é um grupo que defende idéias liberais, busca o monopólio nos mercados em que atua e combate qualquer pensamento que comungue com uma visão de mundo que possa ser chamada de socialista. Por ter interesses em diversos setores econômicos do Estado, o grupo historicamente gozou de excelente relacionamento com o poder público. Desde seu surgimento no RS, o PT sempre definiu sua identidade colocando a RBS como um dos grandes inimigos, associando-a ao Regime Militar e acusando-a de se ter aliado às antigas elites políticas e econômicas.

No plano dos fatos políticos que exemplificam como o sentimento de mútua repulsa se manifesta, Maria Helena Weber (2000: 63), comentando um debate entre Olívio Dutra e Antônio Britto, na RBSTV, no segundo turno das eleições de 1994, relata que “toda a argumentação do Programa Britto parecia servir de base às questões dos entrevistadores”, que eram jornalistas do próprio Grupo. Num outro episódio contado por Weber (2000: 63), o Programa Olívio denuncia a “tática de manipulação da mídia, em 1988, em favor de

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Britto. (...) Demonstra como foi realizada a edição da pergunta e resposta polemizadas11.

(...) Numa surpresa moral e estética de cunho pedagógico, o programa mostrava a forma de edição tendenciosa que mutilara a resposta de Olívio e, como se fosse uma borracha, fora apagando partes e palavras do texto” (WEBER, 2000: 63).

Se antes de assumir o governo estadual as farpas entre os dois atores apareciam claras, mas não de todo explícitas, depois de Olívio Dutra se transformar no mais importante gestor público do estado, o conflito se agrava. Num dos episódios mais emblemáticos, Guaracy Cunha, Secretário Especial de Comunicação do Estado, envia uma das correspondências ao presidente da RBS, Nelson Sirotsky. O documento foi publicado em 14 de maio de 1999, no mais importante veículo impresso do Grupo, o jornal Zero Hora. O Governo (ZH, 14/5/1999: 2) reclama que:

A linha editorial seguida pelos veículos da RBS em relação às ações do nosso Governo agride a qualquer possibilidade de convívio democrático e civilizado que deve existir mesmo entre instituições que divergem. Reconhecemos o direito da Empresa de emitir as opiniões de seus proprietários e tomar partido no debate político, mas é preciso um mínimo de responsabilidade para com seus leitores e com a verdade. (...)

(...) Pelo contrário, fica evidente a postura sistemática de desgastar o Governo. (...)

(...) Nos veículos da RBS, versões sobre episódios corriqueiros são transformadas em manchetes com o objetivo de alarmar a população, alimentar preconceitos e provocar confusão. (...) Uma nítida linha editorial que tenta contorcer os fatos com objetivos confessáveis mas não explícitos.

Por exemplo, foi fabricada uma crise na área da segurança pública com base na inconformidade manifestada por apenas três coronéis, quando o que houve foram trocas de comando e alterações normais de rotina, próprias de uma mudança de governo. (...)

Temos, Governo e RBS, divergências profundas de visão sobre o papel do Estado que já se expressaram em outros momentos. No entanto, certamente a população gaúcha nunca assistiu tanta parcialidade no trato de temas que interessam a toda a sociedade. (ZH, 14/5/1999: 2. Grifo nosso)

A RBS responde no mesmo tom, com espaço idêntico ao oferecido ao Governo, na mesma data e página. Ao reafirmar os princípios da Empresa e o amplo direito de manifestação do público, a RBS argumenta que a reclamação do Governo é “uma tentativa

11 Neste episódio, (WEBER: 64) Olívio Dutra é questionado sobre a utilização ou não de força policial, conforme determina a lei, caso houvesse invasão de terras e responde que, depois de avaliar a situação, evitaria qualquer situação extrema. O jornal publica como resposta de Olívio: Mas certamente não iríamos colocar a polícia lá, só porque recebemos uma ordem e está na Constituição.

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primária de pressão, o que a maioria dos governos faz quando vê os seus interesses contrariados pela divulgação livre e independente de fatos” (ZH, 14/5/1999: 2). E o editorial segue:

Esta resposta, portanto, não tem o propósito de polemizar, nem a pretensão de ser a última palavra sobre o assunto, embora não tenhamos a intenção de prolongar o debate. A primeira acusação que não podemos aceitar, até mesmo porque fere a honra de todos os nossos jornalistas e comunicadores, é a de que nossos veículos mantêm uma postura sistemática de distorção de fatos, manipulação de informações e construção de versões destinadas a desagradar a atual administração. (...) Atribuímos essa generalização improcedente menos à má-fé e muito mais à falta de hábito dos atuais governantes de sofrerem questionamentos ao seu despreparo para o diálogo construtivo. (...)

O que causa estranheza é a tentativa de interferência nos nossos critérios jornalísticos, que são e continuarão sendo de inteira responsabilidade dos diretores e editores dos nossos veículos. (...)

O partido da RBS é o seu público, (...) não pretendemos deixar que eventuais conflitos de opinião ou tentativas de intimidação interfiram na nossa maneira de agir. (...) Nossas divergências conceituais – um exercício saudável de democracia – certamente não são maiores do que o nosso desejo comum de contribuir, cada um no seu papel, para a construção de uma sociedade mais justa e próspera.. (ZH, 14/5/1999: 2)

O relacionamento entre os profissionais da RBS e os jornalistas que trabalham no governo é influenciado pelo clima beligerante exposto nos editoriais. Ao invés de a tensão entre as partes diminuir com o tempo, o processo se agrava cada vez mais e os pontos de atrito se multiplicam. Decisões do governo são sistematicamente criticadas e os espaços de opinião se encarregam de encontrar os enquadramentos necessários para suscitar a polêmica.

Para amplificar ainda mais o tempestuoso clima regional, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) também participa indiretamente do conflito, em apoio à RBS. Em relatório divulgado sobre a liberdade de imprensa no Brasil, durante o 3º Congresso Brasileiro de Jornais, realizado no Rio de Janeiro, em agosto de 2001, a ANJ denuncia que a liberdade de imprensa está ameaçada: “No Rio Grande do Sul, um repórter e um editor do jornal Zero Hora foram intimados a comparecer a uma delegacia de polícia para revelar fonte de

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matéria investigativa”12. A dificuldade na convivência acaba por levar os atores a disputas

judiciais, com a condenação13 de jornalistas por acusações feitas ao governador.

A cobertura da campanha eleitoral de 1998 maculou a imagem da RBS e seus veículos. Logo após o segundo turno das eleições, o Grupo reorientou o discurso jornalístico, na tentativa de evitar prejuízos econômicos com a perda de leitores, assinantes, anunciantes e mesmo de prestígio da opinião pública. Em 2000, a campanha eleitoral acontece sem grandes embates para a RBS e o PT. Em 2002, porém, as discrepâncias entre os números das pesquisas eleitorais apresentados nos veículos da RBS e o resultado oficial das eleições para o governo do Estado motivaram a criação de um movimento contrário à RBS. Destaca-se a criação do site www.zerofora.hpg.ig.com.br, que estimula o boicote aos veículos e produtos do Grupo.

A RBS, naquela ocasião, recebeu diversos pedidos de cancelamento de assinaturas de ZH, provocando a intervenção direta do presidente do Grupo, Nelson Sirotsky, que enviou carta propondo aos leitores reverem suas decisões, ofereceu a possibilidade de um telefonema pessoal de qualquer um dos colunistas do jornal, assinou um editorial pedindo

desculpas por eventuais excessos cometidos em alguns de nossos veículos após a divulgação de pesquisa de boca-de-urna e anunciou que uma comissão de representantes da sociedade analisaria os procedimentos da RBS em pesquisas eleitorais. (ZH, 3/11/2002: 19 e CARTA MAIOR citado por MACHADO, 2004: 150e 151. Nota da autora14)

No documento A metamorfose de Zero Hora (páginas 32-35)