• Nenhum resultado encontrado

O crime como notícia

No documento A metamorfose de Zero Hora (páginas 64-67)

4 Teorias do jornalismo: da seleção aos enquadramentos

4.2 O crime como notícia

É provável que o valor-notícia que mais contribui para que o crime freqüente o noticiário seja o da negatividade.

As notícias negativas entram no canal noticioso mais facilmente porque satisfazem melhor o critério de freqüência. Existe uma assimetria básica na vida entre o positivo, que é difícil e leva tempo, e o negativo, que é muito mais fácil e leva menos tempo – compare-se a quantidade de tempo necessário para educar e tornar sociável uma pessoa adulta e a quantidade de tempo necessária para matá-la num acidente (...). Assim, um acontecimento negativo pode mais facilmente desenrolar-se por completo entre duas edições de um jornal e duas transmissões radiofônicas – isto é mais difícil e específico para um acontecimento positivo. (GALTUNG & RUGE, in TRAQUINA, 1999: 69)

Outro aspecto que favorece a divulgação das notícias negativas é que elas são interpretadas de maneira mais consensual e com menor risco de equívoco. É quase impensável que um cidadão faça uma defesa pública de um réu que confesse ter matado a família. Já um “acontecimento positivo pode sê-lo para algumas pessoas e não o ser para outras e, por isso, não satisfazer o critério de clareza” (Galtung & Ruge, in TRAQUINA, 1999: 69). Além disso, Galtung & Ruge (In TRAQUINA, 1999: 69) destacam que “as notícias negativas são mais consonantes com, pelo menos, algumas pré-imagens dominantes do nosso tempo. Importa é que as notícias negativas preencham algumas necessidades latentes ou manifestas e de que muitas pessoas tenham essas necessidades”. Isso sugere que há uma certa carência de se consumir esse tipo de notícia, com elevado

65

grau de negatividade, para confirmar concepções de mundo, reforçar comportamentos ou mesmo satisfazer necessidades desconhecidas ou inconfessáveis.

Como já foi apresentado nos últimos parágrafos do item 3.2.1 (A evolução dos métodos punitivos), não é de hoje que o crime se oferece como matéria-prima para folhetins, pasquins e todo tipo de literatura. A carga dramática que, de forma tão particular, sensibiliza o público é incorporada na cultura do jornalismo por meio dos valores-notícia. Entre eles se destacam aspectos como interesse humano, conflito, repercussão, originalidade, rivalidade, importância, raridade, suspense, surpresa e uma série de outros que podem surgir a cada evento criminoso. Por romper com a normalidade, o crime tem presença garantida no espaço do jornal. “Ao crime, enquanto tópico noticioso, é reconhecido um elevado grau de noticiabilidade por conter violência, ruptura com a ordem social e imprevisibilidade, esta última característica já salientada como um dos principais valores-notícia”. (PENEDO: 41)

Sem deixar de reconhecer que o crime encontra seu espaço no jornalismo pelas características já referidas, seria interessante perguntar se, na sociedade contemporânea, no contexto das grandes metrópoles, não seria ele quase um acontecimento esperado, previsível, mais próximo da categoria dos acontecimentos de rotina, mudando apenas o nome dos protagonistas. Talvez, surpreendente mesmo seria não acontecer um único delito, durante 24 horas. Se a presença do crime surpreende, mais assustador ainda talvez fosse pensar que isso pudesse acontecer.

Deixando de lado essa breve digressão, pode-se considerar que:

o crime em forma de notícia transporta para o espaço público a noção de desordem, conflito, ou até mesmo de crise donde se reafirma a estabilidade e a paz social. E se neste domínio os media cumprem uma função reguladora, ao convocar para a notícia do crime um quadro normativo dominante que visa a reposição da ordem, a presença de vozes e prismas alternativos revela-se de grande alcance na promoção da discussão pública e na obtenção de novas esferas de consenso face à noção de problema social. (PENEDO: 43)

Nesse sentido, a notícia de crime retoma a discussão sobre o sentido de controle social, já abordado no item 2.2 (O controle social no discurso da imprensa – estratégias e atitudes). As notícias atuam como reforço dos valores sociais dominantes e reafirmam os princípios da ordem e do status quo, conforme explica Cristina Carmona Penedo:

66

reescrever o crime (...) terá repercussões nas noções de ordem social, coesão e estabilidade. São narrativas e imagens que podem interferir no grau de legitimidade do poder instituído, na medida em que para aí são convocadas várias vozes e personagens que, em cada momento, concorrem para o desfecho da história e equacionam a tensão criada entre o caos e a ordem, entre o conflito e a sua resolução, entre a norma e o desvio. (PENEDO: 33)

Assim, é preciso considerar que:

numa sociedade da informação, os media têm destacada importância na divulgação do crime e da justiça, sendo de alguma oportunidade aplicar a este domínio o aforismo da mediatização: o direito não é o que os

tribunais dizem que é o direito, mas o que os media dizem que os tribunais disseram. (CUNHA RODRIGUES, citado por PENEDO: 50)

Outro aspecto a se destacar relaciona-se à possível responsabilidade da mídia em relação à violência. Segundo Jorge Guerbner (citado por BUCCI, Coleção Polícia e Democracia – Volume IV, 2002: 61), estudioso da comunicação da Escola de Comunicações da Universidade da Pensilvânia, as crianças americanas passam uma média de 27 horas semanais diante da TV. Isso significa que:

Ao atingir 18 anos, teriam visto cerca de 40 mil assassinatos e 200 mil outros crimes violentos O que acontece, e o que se consegue verificar, é que surge um efeito de banalização da violência a partir dos meios de comunicação. Não há comprovação de condicionantes, ou seja, não é porque um programa tem explosão que as pessoas sairão fazendo explosões nas ruas. Não há comprovação neste sentido. Mas há comprovação de que existe um aumento da insensibilidade da sociedade em relação a esse tipo de comportamento violento. Quer dizer, a capacidade de indignação e o senso de justiça acabam ficando um pouco relaxados diante dessa realidade. (BUCCI, in Coleção Polícia e Democracia – Volume IV, 2002: 61)

A preocupação com o controle social não é a única abordagem possível para as notícias sobre criminalidade. Tampouco a negatividade pode ser compreendida como valor- notícia exclusivo ou necessariamente mais relevante. José Paulo Bisol acredita que a dor física e moral faz parte do destino humano. Contudo, a dor, o mal e a injustiça que as pessoas infligem umas às outras são sofrimentos que podem ser reduzidos e até eliminados. E isso, segundo Bisol, estaria ao alcance da boa-vontade humana.

A humanidade subestima seu próprio sentido ao instituir o Estado e a Ordem Jurídica, voltando-se, quase que exclusivamente, para a liberdade em sentido negativo (ausência de coerção alheia), deixando de lado a liberdade em sentido positivo (acesso de todos às possibilidades de criar capacidades e obter recursos para viver

67

dignamente). A Segurança Pública, entendida como preservação da

ordem pelo menos intencionalmente justa e processualização da perseguição punitiva de seus infratores, é serviço e não poder, e está sendo pobremente pensada e sentida na medida em que estamos

esquecendo a principal diferença entre uma ordem de liberdades positivas e negativas e uma ordem exclusivamente de liberdades

negativas. Esta ordem pode ser realizada pelos indivíduos separadamente considerados, aquela só pode ser realizada pela comunidade como um todo e o Estado como expressão da vocação cooperativa; ou seja, a segurança pública do futuro, a política do futuro terá de ser o que tem sido, como prevenção e controle da violência, porém mais humanizada e democratizada, e terá de ser o que não tem sido, a saber, mediação de conflitos, salvamento, socorro de toda a natureza, atendimentos de necessidades insuportáveis, impedimento da exclusão, amparo e encaminhamento dos desprovidos de capacidades e recursos mínimos, proteção das parturientes desvalidas, dos discriminados, dos doentes, dos acidentados, das vítimas, dos esquecidos, das crianças, dos adolescentes e dos idosos, bem como do meio ambiente.

(BISOL, 1999:2. Grifo nosso)

Aberto à pluralidade de opiniões e espaço de disputa entre diferentes visões de mundo, o jornalismo desempenhou um papel importante na evolução do tratamento que as notícias sobre criminalidade têm na sociedade contemporânea. A perspectiva de valorização das liberdades positivas, conforme propõe Bisol, pode levar a um processo de reavivamento da indignação diante da violência, resgatando a humanidade que diminui e até elimina o sofrimento que se impõe ao outro.

No documento A metamorfose de Zero Hora (páginas 64-67)