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A segurança pública no centro da crise

No documento A metamorfose de Zero Hora (páginas 35-41)

A crise na segurança pública gaúcha parece iniciar-se na escolha de José Paulo Bisol, como secretário da Pasta, ou na cerimônia de posse do comandante-geral da Brigada Militar, nos primeiros dias de janeiro de 1999, quando o coronel Roberto Ludwig assume sua filiação partidária. A partir desse momento, a RBS e, em especial, ZH, exerce rigoroso

12http://conjur.estadao.com.br/static/text/16618,1 (Revista Consultor Jurídico, 14/08/2001).

13 Num dos casos, “a juíza Isabel de Borba Lucas, da 9ª Vara criminal, condenou os jornalistas Marcelo Rech e José Barrionuevo a cinco meses de detenção por terem afirmado que o governador Olívio Dutra, do PT, foi conivente com a destruição do Relógio 500 anos”. http://conjur.estadao.com.br/static/text/12310,1. Revista Consultor Jurídico, 18/06/2002. Marcelo Rech era o Editor chefe de Zero Hora e José Barrinuevo o principal articulista político do Grupo. O episódio da destruição do relógio comemorativo dos 500 anos do descobrimento foi um dos principais motivos de conflito entre a RBS e o Governo do Estado

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e permanente acompanhamento, avaliação e crítica dos atos e pensamentos não só da BM, mas de todo o aparelho policial e da própria política de segurança pública.

Além das matérias sobre o crime, a cobertura de ZH estende-se aos mais triviais atos simbólicos ou administrativos praticados pelas autoridades da Secretaria da Justiça e da Segurança ou pelos dirigentes dos órgãos subordinados. Fatos que até então raramente são tratados pelo jornal, a não ser em eventuais notas perdidas no corpo do impresso, a partir de 1999 obtêm destaque, com espaço na capa, artigos e editoriais. Promoção de servidores, transferências de pessoal, exonerações, falta de material de expediente e contas em atraso são transformados em matérias de destaque, com repercussão da Coluna do Leitor até a Editoria de Política. Os servidores insatisfeitos são considerados fontes confiáveis e desinteressadas e recebem tratamento privilegiado. ZH se oferece como tribuna para o protesto contra qualquer ato administrativo, que é divulgado aos leitores como atitude de discriminação ideológica, de perseguição política.

Um sigilo muito forte ronda a lista de promoções de oficiais e praças da Brigada Militar. Quem esperou o Diário Oficial de ontem acabou frustrado. (...) Entre os combatentes, há uma espécie de rebelião contra a partidarização da BM, liderada por coronéis, incluindo integrantes do alto comando (...). (ZH, 23/04/1999: 10)

Embora a escolha dos oficiais que chegam ao mais alto posto da Polícia Militar siga o mesmo critério aplicado pelo Exército15 brasileiro, o fato de o coronel Ludwig ter assumido a condição de filiado permite que ZH procure testemunhas que confirmem suas teses. E, considerando que o assunto é controverso, não faltam depoimentos de insatisfeitos por terem sido preteridos na ascensão profissional ou de empregados públicos transferidos contra a vontade, atendendo à necessidade da administração.

O interesse da RBS pelos assuntos administrativos da área de segurança pública é tanto, que uma verdadeira rede paralela de informações nasce e cresce, alimentada por servidores descontentes e pelos que possuem vínculos com partidos oposicionistas, como mostra a matéria “Cai diretor de Polícia Metropolitana” (ZH, 08/12/2000: 1). A notícia revela que o “delegado soube da demissão pela imprensa. (...) Antes de ele (o delegado) saber, a notícia vazou para a rádio Gaúcha na manhã de ontem (...)” (ZH, 08/12/2000: 56). Em outro episódio, a troca de comando em uma unidade da BM também é tratada com

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destaque pelo jornal: “Novo comandante assume o 15º BPM. (...) Oficial destituído não compareceu à posse. (...) Sob um clima tenso, o tenente-coronel (...), assumiu o cargo (...)” (ZH, 24/03/2001: 36). Tratadas como rotina até 1999, as trocas de comando ganham contornos ideológicos no governo petista. O mesmo acontece com os movimentos reivindicatórios, que historicamente são combatidos pela RBS, mas bem acolhidos nestas circunstâncias. O jornal abre espaço na capa para registrar que “Protesto leva demissões no setor de perícias. (...) Seis chefes (...) descontentes com a falta de peritos deixam seus cargos” (ZH, 09/03/2001: 1).

A facilidade de acesso aos veículos da RBS estimula a criação de polêmicas nos mais diferentes campos, como o processo judicial impetrado contra o secretário José Paulo Bisol, por declarações feitas no programa Conversas Cruzadas, da TV Com (do grupo RBS), em 30 de dezembro de 1999. O secretário teria atingido moralmente os policiais em atividade, ao afirmar "a existência de nível elevado de corrupção na instituição16”. O resultado é que 141 delegados de Polícia e dois oficiais da BM requereram reparação por danos morais.

Os atores políticos também ajudam a aquecer o debate. A Assembléia Legislativa entra em cena, como ilustra a matéria “Comissão faz visita surpresa ao DC” (ZH, 14/03/2001: 14). A visita-surpresa de deputados ao Departamento de Criminalística tem o objetivo de “conferir denúncias de falta de pessoal e de equipamentos e de atraso de perícias reveladas por entidades de classe (...). Além da situação de penúria, o departamento está, desde quinta-feira, com os cargos de chefia vagos, inclusive a direção” (ZH, 14/03/2001: 14). Em outra matéria, o jornal investiga e descobre que “BM só dispõe de 97 dos 370 carros necessários na Região Metropolitana” (ZH, 21/03/2001: 1). Matérias desse tipo são freqüentes, reclamando da carência de coletes à prova de balas, falta de combustível, munição, pagamento de diárias, horas-extras atrasadas e outros assuntos correlatos.

16 As três demandas foram julgadas improcedentes, em sentenças já confirmadas pelo TJRS. Defendendo a nulidade da sentença, os 141 delegados recorreram ao TJRS. A 5ª Câmara Cível entendeu que inexiste a nulidade da sentença que julgou antecipadamente a ação, ante a inutilidade de prova a ser produzida em audiência. Para o relator, juiz-convocado Antonio Vinicius Amaro da Silveira, "não existiu, nas declarações de Bisol acerca da corrupção na polícia, vontade deliberada de ofender a honra dos apelantes, vez que sequer nominados, não podendo prosperar a indenização por dano moral". A decisão transitou em julgado. (Proc. nº 70002976686)http://www.espacovital.com.br/colunaespacovital02032004a.htm

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A falta de condições de trabalho e recursos materiais em instituições da administração pública estadual, em particular da segurança, que surpreende deputados e jornalistas, é tratada como uma particularidade da gestão petista e uma exceção em termos de serviços públicos no país, como se hospitais, escolas e outros serviços essenciais vivessem em situação confortável.

A preocupação com as condições materiais de trabalho dos policiais faz o jornal publicar na capa da edição de 10 de julho de 2002 uma matéria alertando que a “Falta de papel impede registro em delegacia” (ZH, 10/07/2002:1). Dois dias depois, outra manchete de capa destaca uma conta atrasada: “Polícia e Brigada devem R$ 1 milhão em telefone” (ZH, 12/07/2002:1). É importante lembrar que a RBS é uma das proprietárias da companhia telefônica credora, adquirida em leilão, quando o governo peemedebista de Antônio Britto a vendeu para a iniciativa privada.

A tentativa de melhor aproveitar os recursos do Estado é sistematicamente combatida. A transferência de uma escola administrada pela BM para a competência da Secretaria de Educação é tratada como crise. O mesmo acontece com o hospital da Polícia Militar, no qual “Ex-comandantes contestam mudanças no hospital da BM” (ZH, 29/12/2000: 48). Dificuldades em tentativas de integração administrativa de algumas atividades policiais ganham espaço na capa do veículo: “Emperra o plano de integração policial. (...) Das cinco medidas anunciadas há 11 meses pela Secretaria da Justiça e da Segurança, apenas uma foi efetivada” (ZH, 07/12/2000: 1).

Outro assunto especialmente apreciado por ZH são as estatísticas da criminalidade, razão de críticas contumazes. Ignorando que, até 1999, o Estado nem sequer tinha um tratamento unificado das informações, o jornal não poupa o governo petista e coloca na capa do jornal a matéria: “Insegurança - Números oficiais são imprecisos. (...) Um balanço do semestre passado, só publicado segunda-feira no Diário Oficial do Estado, traz números confusos e revela a ausência de dados como, por exemplo, assalto a bancos” (ZH, 07/03/2001: 1). O desejo do jornal é que as planilhas que a polícia utiliza para discriminar os tipos de delito sejam adequadas às demandas do jornal. O assunto é recorrente durante os quatro anos.

Até mesmo medidas recomendadas por organismos internacionais são contestadas por ZH, como a Portaria das Armas, que orienta os procedimentos para o uso de armas de

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fogo, colocando a Polícia gaúcha em conformidade com orientações aprovadas no 8º Congresso da Organização das Nações Unidas17, e trata da prevenção do crime e das relações com os delinqüentes. Em 5/6/1999, Zero Hora comenta o assunto, tratando-o como um texto de 89 linhas que criou uma acirrada discussão no Estado: sete delegados ameaçam entregar as funções caso a Portaria seja assinada. O Jornal considera polêmico o item que proíbe os policiais de utilizarem arma de fogo em reuniões legais e pacíficas.

Sistematicamente, as decisões administrativas da SJS são tratadas nas páginas de ZH. Situações corriqueiras de qualquer instituição são transformadas em fatos políticos, o que possibilita o surgimento da proposta de criação de uma CPI na Assembléia Legislativa para tratar da Segurança Pública. Os motivos para a criação da CPI baseiam-se quase que exclusivamente em questões administrativas. No jornal são os articulistas e convidados para escrever páginas de opinião que evidenciam o pensamento de ZH: José Barrinuevo, principal comentarista político do jornal, afirma que “politicamente forte (José Paulo Bisol), tem um desempenho desastroso, sujeito a permanentes sobressaltos” (ZH, 23/04/1999: 10).

Os ataques freqüentes à política de segurança pública motivam a SJS a pedir que a Associação Rio-Grandense de Imprensa (ARI) tome parte na discussão e participe do debate. Na carta, enviada ao presidente da ARI em 11 de fevereiro de 2000 (Anexo VII), José Paulo Bisol reclama que alguns veículos de comunicação generalizam situações particulares e insistem em afirmar que Porto Alegre está imersa numa pretensa onda de crimes, não oferecendo aos seus habitantes as mínimas condições de segurança. Além, o documento destaca que os repórteres vão às ruas à procura de policiais militares e fazem grande alarde quando não os encontram. Quando os localizam, no entanto, dificilmente fazem o registro.

Esses exemplos servem como referência para uma discussão mais ampla,

sobre a ética da imprensa, a honestidade intelectual dos jornalistas. Ninguém esconde que há deficiências no efetivo da Brigada Militar, mas nada tão grave quanto querem fazer crer.

É indiscutível o poder da mídia sobre a opinião das pessoas. Assim como o exercício desse grande poder pode levar à vulgarização das sensibilidades morais e a uma abordagem descuidada e temerosa das informações. Desconsidera-se, muitas vezes, que o imperativo jornalístico é descobrir e contar a verdade – equilibrado pelo senso de responsabilidade quanto às conseqüências do que é dito.

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Ao alardear uma situação inverídica quanto ao policiamento ostensivo, veículos de comunicação praticam verdadeiro terrorismo contra a população. Cria-se um sentimento de medo que, certamente, não beneficia os cidadãos honestos.

Não se quer, aqui, desviar o foco da discussão sobre as necessidades e deficiências da segurança pública. O que se pede é um tratamento responsável das informações.

Também não se pode ignorar que o relacionamento da RBS com José Paulo Bisol é conturbado. O ex-senador impôs ao jornal uma derrota judicial por uma série de 58 reportagens publicadas em 1994, quando foi candidato à vice-presidência da República, na chapa de Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, Bisol foi acusado de manipular verbas orçamentárias e superfaturar emendas para obras que beneficiariam sua fazenda. O resultado é que

O STJ (Superior Tribunal de Justiça) confirmou o acordo pelo qual o

jornal Zero Hora terá de pagar indenização de R$ 1,191 milhão para o ex- senador do Rio Grande do Sul José Paulo Bisol por causa de uma série de reportagens publicadas em 1994. Bisol (...) moveu ação de indenização por danos morais, sustentando que as reportagens provocaram prejuízos

irreparáveis à sua imagem. (...) O acordo foi o melhor caminho para

evitar que a condenação chegasse a ser executada, afirmou Gerson Borges, gerente jurídico de mídia impressa do grupo que publica o Zero

Hora.(http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/cadernos/cid210220013.htm) Por razões políticas, pela ameaça aos negócios ou por questões afetivas, ZH possui muitos motivos para transformar a segurança pública num campo de batalha cheio de ações. E isso reforça a convicção de Francisco Sant’Anna (2005: p. 19), para quem:

na história contemporânea brasileira não são poucos os momentos em que a imprensa, para atender interesses próprios ou alheios, camuflou ou ignorou a realidade dos fatos, difundindo informações deturpadas, ou simplesmente deixando de informar os temas que contrariavam as classes hegemônicas.

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