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Dinheiro, drogas, violência e morte: um sistema complexo

No documento A metamorfose de Zero Hora (páginas 117-120)

MATÉRIA PRINCIPAL

5 Criminalidade e segurança pública

5.5 Dinheiro, drogas, violência e morte: um sistema complexo

O interesse humano pelo desvio contido no crime (que vai da simples curiosidade ao sadismo ou perversão), somado aos explosivos contextos econômico e social, adicionados a elementos como dinheiro, drogas, armas, corrupção e violência, produzem um coquetel de elevado interesse jornalístico. O enquadramento que o jornalista oferece a esse conjunto de fatores, transformando fatos ou acontecimentos em notícia e os apresentando ao leitor, depende de conhecimentos de diversas áreas. Pela complexidade, a tendência é que a questão seja simplificada, para que mais pessoas possam entendê-lo. Mas também porque o jornalista não possui tempo nem condições de aprofundar a análise e o jornal não oferece espaço para isso – ou simplesmente não deseja que o assunto seja tratado fora de uma perspectiva de controle social.

A própria capacidade de entender essa realidade é contestada por especialistas. Luiz Eduardo Soares constata a falta de conhecimento e a inexperiência dos jornalistas que tratam da criminalidade e da segurança pública. Soares compara esses profissionais com os que lidam com economia ou política, destacando que nas outras editorias:

São agentes que dialogam, que debatem associando as suas posições, há linguagens que circulam no campo internacional que são capazes de ponderar questões contraditórias, etc. São profissionais muito capacitados, qualificados, que discutem de igual para igual com os economistas, com os gestores dos negócios públicos. Na área política é a mesma coisa (...). No território do tratamento da violência, nós temos a descrição sensacionalista reiterada dos acontecimentos que se sucedem. É como se nós pudéssemos ler os jornais da véspera dos dias subseqüentes, porque eles simplesmente traduzem a continuidade e a reprodução das nossas tragédias, sem nenhum elemento de análise a respeito dos esforços que se fazem das políticas, que se implementam, como se não fizesse absolutamente diferença o esforço que se faz, o tipo de investimento, o tipo de focalização. (SOARES, in Coleção Polícia e Democracia – Volume IV, 2002: 67)

Esse possível despreparo profissional dificulta o aprofundamento do debate e a procura por soluções efetivas. Afinal a violência, além de ter a capacidade de interferir na vida emocional das pessoas, provoca mudanças de atitude e sentimentos que beiram a paranóia social. O medo provocado pela possibilidade de ser vítima de violência já é suficiente para dotar as pessoas de atitudes agressivas, como prevenção natural ao risco imaginário de um ato criminoso. Não raro, o sujeito que é vítima dessa atitude preventiva

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nunca teve interesse de praticar qualquer mal a outrem. Ao ver estampada na capa do jornal uma seqüência de crimes, o leitor pode estar sendo influenciado a uma atitude que julga fundamental para sua sobrevivência, mesmo que o meio ambiente real muito pouco tenha em comum com o veiculado pela imprensa.

Outro perigoso efeito do processo de medo provocado pela violência está na reação das vítimas. A divulgação de notícias sobre cidadãos que reagem e matam supostos criminosos pode desencadear uma série de outros eventos. Em diversas situações, o ato relatado como heróico pelo veículo passa a ser reeditado por outros personagens, nos dias ou semanas seguintes, com os mais trágicos resultados: uma bala perdida mata alguém, a vítima acaba numa cadeira de rodas ou o suposto criminoso é apenas um cidadão comum, confundido por ser jovem, negro, pobre ou estar mal vestido. Naturalmente, quando a vítima da reação é um cidadão que não pode ser encaixado na categoria criminoso, a imprensa faz uma rápida autocrítica, mudando o enquadramento das matérias posteriores, ou tende a tratar o episódio como um mal-entendido, colocando-o na lista das tragédias inevitáveis.

Isso se agrava na medida em que,

diferentemente dos boatos e dos diz-que-diz-que, a notícia, uma vez publicada, torna-se uma espécie de documento público, munido de autoridade. Acima de tudo, porém, a notícia responde a um interesse, a uma tensão, uma expectativa: a primeira reação de quem a recebe é o desejo de propagá-la, numa antevisão de quanto alimentará as discussões em que se forma a opinião pública. (STOETZEL, 1963: 300)

Outro fator importante a ser considerado é que os eventos que envolvem violência possuem alta capacidade de se manterem atuais, como se jamais fossem depositados numa memória longínqua e esquecidos. Alguém que vivencia um evento traumático tende a guardá-lo tão vivo que, sempre que algo relacionado o traz à memória, fortes sentimentos de angústia, ansiedade e depressão dispõem-se a voltar com intensidade semelhante ao momento do ato. Como efeito complementar, é muito difícil um relato de ato criminoso ser esquecido quando contado com riqueza de detalhes ou por pessoa que sofreu a ação ou teve vínculo afetivo com a vítima ou acusado.

É absolutamente compreensível que no decorrer do tempo as instituições mudem. Sobretudo aquelas que lidam com a comunicação. Deixando de lado as transformações

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tecnológicas, administrativas, organizacionais, Zero Hora (e a RBS) acompanham a história do RS há cerca de quatro décadas. Nesse período, contou e recontou milhares de histórias nas páginas do jornal. Mais de uma geração de jornalistas contribuíram para produzir notícias que interferem na auto-imagem dos leitores e na compreensão que esses têm do mundo.

Embora seja difícil identificar-se o momento em que a violência e o jornalismo celebram o mutualismo como modelo de relação tácita, é possível suspeitar-se que esse formato de interação possa influenciar muito a maneira como o jornal apresenta à sociedade aquilo que nomeia como criminalidade e segurança pública. Se interesses econômicos e políticos decidem fazer da segurança pública o objeto da celeuma, utilizando o jornal como arma de uma guerra, que prejuízos podem gerar à sociedade e à verdade?

Claro que na formação de opinião, como na vida política e econômica, permite-se que haja diferenças de pontos de vista, desacordo, argumento e oposição; mas isso é entendido como realizando-se dentro de um enquadramento concordante e básico mais lato – o consenso, o qual todos subscrevem, e no qual toda a contestação, desacordo ou conflito de interesses podem ser reconciliados pela discussão, sem recurso ao confronto ou à violência. (HALL, S. et al. In TRAQUINA, 1999: 227)

Como alerta Hall, “os acontecimentos, enquanto notícias, são regularmente interpretados dentro de enquadramentos que derivam, em parte, desta noção de consenso, enquanto característica básica da vida cotidiana” (HALL, in TRAQUINA, 1999: 227). E se não há consenso, o que acontece? No caso em estudo, a falta de consenso que ocorre em um momento e não em outro, a radicalização do conflito, as concepções políticas divergentes e os interesses particulares em jogo permitem a construção de uma realidade particular, na qual o filtro político e interesses econômicos se sobrepõem ao interesse social.

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No documento A metamorfose de Zero Hora (páginas 117-120)