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5. CAPÍTULO V: EDUCAÇÃO SUPERIOR, AÇÕES AFIRMATIVAS E O SISTEMA DE COTAS DA UnB

5.3. As Ações Afirmativas no Brasil

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Por “democracia de resultados” entendemos a ação afirmativa como instrumento político de intervenção corretiva e direta do hiato entre “direito ao acesso formal,” gerado pelo princípio de igualdade liberal versus o complexo conjunto de relações sociais desiguais, frutos de uma sociedade altamente hierarquizada (SISS, 2003). 108 Enquanto racismo e preconceito são modos de ver determinadas pessoas ou grupos raciais, a discriminação seria a manifestação concreta de um ou outro. Ou seja, uma ação, uma manifestação ou um comportamento que prejudica determinadas pessoas ou grupos de pessoas em função de sua cor ou raça (SANTOS, 2001a).

No Brasil, as ponderações sobre as ações afirmativas são antigas, datam da fundação do Teatro Experimental do Negro na década de 1940. Mesmo reprimida pela ditadura militar, através do silenciamento dos Movimentos Sociais, entre eles o Movimento Negro, políticas foram reclamadas nas décadas seguintes, sobretudo na década de 1970, com destaque aos trabalhos realizados pelo Grupo Cultural Palmares que teve como liderança o poeta Oliveira Silveira e o Movimento Negro Unificado – MNU – que surgiu em 1978. Em 1983, para além da atuação do Movimento Negro, observamos a atuação de parlamentares negros no âmbito do Congresso Nacional, defendendo a medida, em particular, o Senador Abdias do Nascimento, com a proposta de cotas para negros ao cargo de diplomata do Instituto Rio Branco por meio do projeto lei 1.332/83. Treze anos depois, pouco tempo apósa consolidação da Constituição de 1988, a também negra e senadora, Benedita da Silva, apresentou a proposta de lei para inclusão de estudantes negros e indígenas na educação superior pública, via projeto de lei de número 4.339/93.

No ano de 1998 foi a vez do deputado baiano Carlos Alberto propor, através do projeto de lei 4.567/98, a criação do Fundo Nacional de Ações Afirmativas, onde se previa a concessão de bolsas de estudo para estudantes afro-brasileiros. Em 2000, o senador Paulo Paim, propôs o projeto de lei 3.198/00 que versou sobre a criação do Estatuto da Igualdade Racial109. O Estatuto da Igualdade Racial foi aprovado dez anos após a sua presunção. No parecer original previa-se a reserva de 25% das vagas na educação superior para afrodescendentes (SIQUEIRA, 2004).

Nesse sentido, notamos que há algum tempo o Poder Legislativo brasileiro, mesmo que por força de parlamentares negros, em sua maioria oriundos do Movimento Negro e pertencentes às mais diversas colorações partidárias, vem se posicionando de forma positiva e democraticamente em prol à criação das ações afirmativas para as populações negras e indígenas. Não podemos nos esquecer de ressaltar também as proposições feitas pelo Poder Executivo nas figuras do Ministério da Justiça e do Trabalho, bem como pela Secretaria de Direitos Humanos, ações estas também forçadas na luta do Movimento Negro Brasileiro. Desse modo, repara-se que há muito no Brasil discussões sobre a necessidade de implementação de políticas públicas que vislumbrem o tratamento diferenciado de determinados grupos e categorias sociais.

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Lei 12.288 de 20 de julho de 2010 institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. “Art. 1o Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”. Disponível em: <http://planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm>. (Acesso em: 12 de agosto de 2010).

Embora não cunhadas diretamente como ações afirmativas, tais medidas, quando implementadas pela força da lei, possuem o mesmo efeito das ações afirmativas. Fazendo uso dos destaques de Silva (2001, p. 5), tem-se para efeito normativo110:

 Decreto-Lei 5.452/43 (CLT), que prevê, em seu art. 354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas individuais ou coletivas.

 Decreto-Lei 5.452/43 (CLT), que estabelece, em seu art. 373-A, a adoção de políticas destinadas a corrigir as distorções responsáveis pela desigualdade de direitos entre homens e mulheres.

 Lei 8.112/90, que prescreve, em art. 5o, § 2º, cotas de até 20% para os portadores de deficiências no serviço público civil da união.

 Lei 8.213/91, que fixou, em seu art. 93, cotas para os portadores de deficiência no setor privado.

 Lei 8.666/93, que preceitua, em art. 24, inc. XX, a inexigibilidade de licitação para contratação de associações filantrópicas de portadores de deficiência.

 Lei 9.504/97, que preconiza, em seu art. 10, § 2º, cotas para mulheres nas candidaturas partidárias.

Faz-se necessário também observar as Ações Afirmativas como medidas que visam ampliar a noção de direitos iguais (por trabalhar na perspectiva da equidade social) tão apregoado pelas políticas universalistas na forma da lei, mas pouco alcançadas na vida real, prática. O princípio da universalidade refere-se à responsabilidade dos governos de assegurarem a todas as pessoas, sem distinção de qualquer natureza o acesso aos serviços públicos e aos direitos sociais, como por exemplo, saúde, educação pública e gratuita, todos os direitos da previdência e assistência social, entre outros (PIOVESAN, 2005).

No entanto, no Brasil, a defesa das políticas universalistas guarda, por identidade de propósitos, ligação com o mito da democracia racial. A posteriori, ambas – políticas universalistas e mito da democracia racial – cobrem com o manto de igualdade e justiça os processos de exclusão racial e social e consequentemente perpetuam privilégios às populações não negras,que, por sua vez, posterga o enfrentamento das desigualdades sociais brasileiras. Pode-se aferir, então, que as ações afirmativas, no caso brasileiro, corrobora questões de justiça social, o que extrapola a condição de política distributiva de bens materiais (CARNEIRO, 2003).

Nessa perspectiva, podemos caracterizar as cotas como política de ação afirmativa de redistribuição e reconhecimento da situação de vulnerabilidade a que são expostos determinados segmentos da população. Por vulnerabilidade entendemos aquilo que torna

110 Incluímos neste rol a Lei 10.637/03 que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. (Acesso em: 12 de agosto de 2010).

factível o usufruto dos benefícios e instrumentos de ascensão social, construídos coletiva e historicamente por grupos marginalizados, minorias étnicas e raciais, deficientes, entre outros grupos, no caso em tela, negros, indígenas e mulheres. Destituídos por inúmeros motivos dos benefícios coletivos, tais populações ainda lutam contra o racismo, a opressão de gênero e a discriminação racial em pleno século XXI. A opressão contra os grupos não brancos no Brasil data dos primórdios da colonização do país. As mazelas herdadas de um sistema colonialista, patriarcal e racista, a falta total de projetos de inclusão política e social ao longo de mais de cem anos de república, faz com que pensemos as ações afirmativas como mecanismos de reparação e adequação das pessoas discriminadas e alijadas dos espaços de poder, como mecanismo justo, próprio de um ordenamento que se deseja democrático. É certo que as ações afirmativas não figuram como única opção de inclusão social. No entanto, constitui-se como uma das operações de inclusão mais importantes.

É dentro do debate das ações afirmativas como políticas públicas de inclusão e reparação no âmbito da educação superior que se situa esta proposta de trabalho. Desejamos, na medida do possível, analisar as percepções das estudantes cotistas da Universidade de Brasília sobre as cotas para estudantes negros enquanto política de ação afirmativa.