• Nenhum resultado encontrado

2.3 Bases doutrinárias da teoria da imputação objetiva

2.3.9 Ações a próprio risco

Esta situação diz respeito à participação do ofendido na eclosão do evento danoso. E tal situação ocorre através da auto-exposição daquele ao risco, como também através da hetero-exposição ao risco, na qual a vítima consente e participa de atividade arriscada.

Em relação a este tema, os doutrinadores sempre trazem à baila algumas hipóteses em que é possível evidenciar a ação a próprio risco do ofendido. Tais hipóteses, seguindo os ensinamentos do escritor Damásio E. de Jesus (2002a, p. 57-58), são:

1ª) Participação em fato que expõe a vítima a seu próprio risco.

2ª) Consentimento em ação realizada por terceiro que expõe a risco o próprio consensiente.

3ª) Condutas perigosas de salvamento.

4ª) Criação de nova relação de risco por parte da vítima ao violar seus deveres de proteção própria.

5ª) Conduta posterior de um sujeito que, em face de um comportamento anterior do autor, pode ser lesiva a seus próprios bens.

No primeiro caso, a vítima, por si só, expõe-se a risco, mesmo que haja participação de terceiro. Nesta situação, apesar da existência da figura do terceiro, este não tem o domínio do fato, que se encontra nas mãos do próprio ofendido, que realiza a conduta causadora do evento danoso.

Para ilustrar esta proposição, podemos fornecer como exemplo o caso de dois amigos que dividem seringas e drogas. Se A usa uma seringa para injetar drogas em sua corrente sanguínea, e, posteriormente, oferece a mesma seringa a B, que ao injetar a droga em si mesmo morre de overdose, A não deve responder por homicídio, quer a título de dolo, quer a título de culpa, visto que não tinha o domínio do fato, que foi diretamente praticado pelo próprio ofendido. Entretanto, A deve responder por crime capitulado na lei de tóxicos, pois a esta está subsumida a sua conduta.

Sobre esta questão, é de bom alvitre mencionar um interessante comentário, da lavra do escritor Santiago Mir Puig (2005, p.200), o qual, no que tange à responsabilidade da própria vítima quanto ao resultado pela auto-colocação em perigo, garante-na fundamentação constitucional. Vejam-se, a propósito, as exatas palavras do citado autor:

ϳϬ

O direito ao livre desenvolvimento da personalidade que consagra a Constituição há de permitir assumir riscos, ainda que possam terminar em lesões. Isso aconselha a imputação preferente de tais lesões à vítima e a exclusão conseguinte da imputação ao que intervém no risco.

Voltando ao caso anteriormente citado, é de bom alvitre afirmar que, se o analisássemos através da doutrina tradicional, chegaríamos à conclusão diversa, posto que, por esta vertente, A seria responsável pelo evento danoso, respondendo, segundo uma primeira orientação, por homicídio culposo, devido à inobservância do cuidado objetivo em relação ao terceiro.

Já em uma segunda orientação, dentro da mesma doutrina clássica, A responderia por homicídio doloso, visto que este, na situação exposta, funcionaria como “garante” do ofendido, respondendo dolosamente (dolo eventual) por não ter evitado o resultado (JESUS, 2002a). Estas, contudo, não são nossas orientações.

Convém neste ponto, ressaltar um exemplo fornecido por Guilherme Guimarães Feliciano (2005, p.141), onde o mesmo, diante de uma situação perigosa como um “racha”, pondera se há, neste caso, a aplicação da mesma solução dada à questão da participação em condutas alheias de auto-perigo:

Antes disso, porém, caberia indagar: a morte dos pedestres que compareceram espontaneamente para assistir ao perigoso espetáculo, ou ainda a morte de um competidor voluntário, pode ser imputada aos demais competidores? Sim. Não há, também aí, mera participação em condutas alheias de autoperigo, por instigação ou induzimento? Não. Nos ‘rachas’, como nas rixas (art.137 do CP), cada sujeito cria, para si e para todos os demais, riscos juridicamente reprovados. Não é o mesmo que sugerir a participação no racha: quem sugere sequer cria risco juridicamente relevante. Já quem compete pode atingir o oponente, pode distraí-lo ou até confundi-lo, provocando um acidente. Há aqui, outra vez, hipótese de riscos concorrentes indistintos, de tal maneira que cada resultado pode ser imputado a todos os participantes. E mesmo à míngua de um resultado naturalístico (lesão ou morte), pode haver risco de perigo típico (concreto), ensejando a imputação de todas as condutas ao tipo objetivo do art.308 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9.503/97), com as sanções peculiares (detenção, multa e suspensão ou proibição de permissão ou habilitação). (grifo do autor)

No segundo caso, o ofendido não pratica diretamente os atos ensejadores do evento danoso, mas apenas consente em se expor ao perigo, e não à eclosão de um resultado, decorrente de atos de terceiro. Nesta situação, segundo Damásio E. de Jesus (2002a), há imputação objetiva do resultado ao terceiro, posto que o ofendido não consentiu em suportar o evento danoso, mas apenas assentiu em se expor a um risco, o qual foi criado por um terceiro, que também deu causa ao resultado não suportável pelo ofendido.

ϳϭ Entretanto, tal posicionamento não é pacífico, havendo doutrinadores outros que, diante da mesma situação, não concordam com a responsabilização do terceiro, com os quais comungamos. Exemplo desta divergência é o posicionamento defendido por Guilherme Guimarães Feliciano (2005, p.142), que assim se pronuncia:

No consentimento ao autoperigo (gerado por outrem), o indivíduo não se põe em risco, mas permite conscientemente que outra pessoa o sujeite a perigo. O exemplo usual é o do passageiro que, ao norte da Alemanha, desejava ser transportado até a outra margem do rio Memel durante uma tormenta; advertido dos riscos da travessia, insistiu em seu prurido e logrou convencer o barqueiro, para depois se ver afogado com uma virada do barco. Cite-se ainda o caso do passageiro que aceita carona de condutor embriagado, ou o caso do amante que aceita manter relações sexuais sem preservativo com outrem, que se supõe soropositivo. Os danos causados não se imputam ao barqueiro, ao condutor ou ao pseudo-soropositivo, se ambos os sujeitos conheciam os riscos e consentiram em tentar arrostá-los: as vítimas suportaram os riscos ínsitos às sua próprias competências (4ª instituição de Jakobs). (grifo do autor)

No terceiro caso, encontramos a situação em que, diante de um risco proibido causado por um indivíduo, terceira pessoa, com vistas a evitar um dano, sofre ela mesma danos em seus próprios interesses. Neste caso, o indivíduo que, com seu comportamento, ou ausência de comportamento inicial, gerou um risco proibido, não responde pelos danos causados a terceiro, pois a norma que disciplina a responsabilidade do primeiro não alcança a conduta do heróico terceiro.

Há, contudo, entre os adeptos da teoria da imputação objetiva, dissenso quanto a este ponto, na medida que, para alguns, a existência de voluntariedade na conduta do terceiro interveniente é essencial para caracterizar, ou não, a responsabilidade do indivíduo que deu causa ao evento danoso.

Assim, para alguns autores, se a ação do terceiro não for voluntária, há imputação objetiva dos danos que ocorrem com este ao causador do evento. Em giro diverso, sendo voluntária a conduta do terceiro, nenhuma responsabilidade teria o causador do evento danoso.

Entretanto, em relação a este dissenso, seguimos o posicionamento do doutrinador Damásio E. de Jesus (2002a), que acredita não haver possibilidade de se imputar objetivamente ao causador do evento danoso as ofensas aos interesses do terceiro, mesmo que este tenha agido de maneira involuntária, como, por exemplo, para cumprir um dever legal.

ϳϮ do evento danoso, em relação às ofensas aos interesses do terceiro interveniente, se este agiu com o desiderato de evitar um resultado danoso de maiores proporções, o que, de igual modo, mostra-se inviável, posto que esta situação também não se encontra dentro do âmbito de incidência da norma que disciplina a responsabilidade do causador do evento danoso.

No quarto caso, encontramos a situação em que a própria vítima inobserva seus deveres de cuidado próprio. Sobre esta questão, restringimo-nos a citar o exemplo formulado pelo doutrinador Damásio E. de Jesus (2002a, p.64), que assim pondera:

O condutor A provoca uma colisão culposa entre seu veículo e uma motocicleta. O motociclista B, sem usar capacete, sofre várias lesões corporais e vem a falecer em conseqüência de traumatismo craniano. A perícia comprova que, se estivesse usando capacete, teria sofrido somente as lesões corporais. A doutrina da imputação objetiva, em parte, considera que o motorista que agiu culposamente não responde pelo resultado morte, e sim por crime de lesões corporais culposas, em razão da imprudência do próprio sujeito passivo.

E no último caso, em que a conduta posterior de um sujeito, em face de um comportamento anterior do agente, pode vir a ser lesiva aos seus próprios interesses, a solução de cada situação depende da análise do caso concreto. Entretanto, é possível eleger uma regra simples: se a conduta anterior do agente não ofende ao cuidado objetivo para se viver em sociedade, não pode haver imputação objetiva do resultado à sua conduta.

Todavia, esta regra não é suficiente para resolver todas as possíveis situações que podem vir a se enquadrar neste último caso. Para ilustrar esta nossa preocupação, fazemos uso de um exemplo bastante perspicaz fornecido pelo já mencionado doutrinador Damásio E. de Jesus (2002a, p.66-67), que assim assevera:

Durante uma discussão entre duas vizinhas, uma delas lançou um líquido cáustico no rosto da outra. Não obstante recomendação de algumas pessoas, a vítima somente lavou o rosto uma hora e meia depois do fato, quando da chegada de policiais, sofrendo sérias queimaduras, que deixaram visíveis cicatrizes. Apurou-se que, se a vítima tivesse lavado o rosto imediatamente, não teria sofrido nenhum dano físico de maior gravidade.

Nessas hipóteses, que podem variar para envenenamento, intoxicação, etc., semelhantes ao caso supra do ‘líquido cáustico’, a solução depende do conhecimento da vítima a respeito da natureza dos instrumentos e meios de execução empregados pelo autor e de eventuais providências de salvamento (exemplo: neutralização de efeito de veneno mediante ácido acetilsalicílico). No caso supra, a solução dependeria do conhecimento da vítima a respeito da natureza do líquido lançado em seu rosto e da

ϳϯ

providência que poderia evitar as lesões (simples lavagem da região atingida). Há duas suposições:

1ª) Imagine que a vítima, atendendo ao ditado chinês ‘aquele que assopra o pêlo para mostra a cicatriz’, se recusasse a lavar o rosto por ódio, não obstante plenamente consciente de que essa providência afastaria qualquer evento danoso, aguardando a polícia para que a repressão penal fosse maior. Nesse caso, a autora só responderia pelo fato de haver lançado o líquido em seu rosto, inexistindo imputação objetiva do resultado de maior gravidade.

2ª) Suponha-se que, no mesmo exemplo hipotético, a vítima desconhecesse a natureza do líquido e as providências que deveriam ser tomadas. Nessa hipótese, haveria imputação objetiva do resultado. Normativamente, não compete à vítima averiguar, em cuidado extremo, qual a classe de instrumento ou meio de execução empregados pelo autor contra seus bens jurídicos. (grifo do autor)

Neste caso, a simples aplicação da regra de que há imputação objetiva, se o autor não observar o cuidado necessário para se viver em sociedade, não representa solução adequada para a questão, o que faz com que a regra geral para estas situações seja a análise específica de cada caso concreto, aferindo a existência, ou não, de imputação objetiva do resultado danoso à conduta anterior do agente.