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2. A REFLEXÃO FILOSÓFICA SOBRE O MUNDO ÉTICO

2.5. A ÉTICA HABERMASIANA

Habermas advoga a tese de uma ética da discussão como a melhor saída para se resolver os problemas sociais, através da discussão e da legitimidade obtida por ela. Os fundamentos utilizados por ele são baseados no imperativo categórico kantiano, busca-se o consenso por meio do discurso. “É só na qualidade de participantes de um diálogo abrangente e voltado para o consenso que somos chamados a exercer a virtude cognitiva da empatia em relação às nossas diferenças recíprocas na percepção de uma situação”.68

Habermas buscou “uma reflexão crítica para a reconstrução da substância ética da ideia de vida boa, pelo fortalecimento de instituições capazes de orientar a modernidade em favor de uma postura humanista e não opressiva”.69

Ele segue os caminhos traçados por Descartes70 e Kant, fundamentando a emancipação humana na razão, dando continuidade ao iluminismo

68

HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla; 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 10.

69

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Habermas e o Direito Brasileiro. 2ª ed. Editora Lumens Juris: Rio de Janeiro, 2008, pp. 23-24.

70

Descartes buscava o máximo de certeza possível, para ele, o método serve para se buscar descobrir a verdade. “A conclusão a tirar de tudo o que precede é que não se deve aprender apenas a Aritmética e a Geometria, mas somente que, na procura do reto caminho da verdade, não há que ocupar-se de objeto algum sobre o qual não se possa ter uma certeza igual às demonstrações da Aritmética e da Geometria”. (DESCARTES. René. Regras para direção do espírito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 06). Logo, o método cartesiano é aquele baseado na lógica racional utilizada pela Aritmética e pela Geometria - mesmo quando se tratar de ciências sociais - com o objetivo de se descobrir a verdade. Descartes afastou a lógica Aristotélica, além de separar ciência social e religião.

(Aufklärung). Além de ter forte influência de Weber ao tratar do caráter racionalizador do direito em relação aos outros modos de organização social.

Entrementes, Habermas acredita que o princípio do discurso é fundamental para se alcançar a validade das normas jurídicas, na medida em que, para se conseguir assentimento de todos os envolvidos, estes devem participar dos discursos racionais.71 Todavia, o princípio do discurso não é suficiente, por si só, na fundamentação de qualquer tipo de direito. Mais a frente serão explicados os princípios que fundamentam o direito na visão de Habermas.

Segundo o filósofo alemão, o discurso prático se compreende como uma forma específica de aplicação do imperativo categórico. “Aqueles que participam de um tal discurso não podem chegar a um acordo que atenda aos interesses de todos, a menos que todos façam o exercício de ‘adotar os pontos de vistas um dos outros’[...]”.72

Percebe-se um novo viés dado ao imperativo categórico, baseado no discurso.

A autonomia kantiana não se confunde com a liberdade subjetiva da tradição empirista, a vontade, no caso da autonomia, é determinada pela universalização. Essa autonomia não pode ser alcançada individualmente, dependendo de uma intersubjetividade, já que só pode haver liberdade para um se todos forem livres igualmente.73 Dessa forma, necessário haver um mundo objetivo e livre, isto é:

Além da suposição de um mundo objetivo e de liberdade de arbítrio, os atores devem contar também com um mundo social de normas e instituições, aos quais fazem referência para sustentar seus imperativos proferidos, e autonomia da vontade livre capaz de vincular-se assumindo obrigações de um acordo normativo.74

Dessa forma, percebe-se que Habermas adota a razão comunicativa como fundamento da ética discursiva. Podendo haver razões nas quais todos possam influenciar em busca de uma descoberta para atender aos interesses de forma igualitária.

Habermas afirma que os dois pressupostos pragmáticos da discussão podem ser satisfeitos simultaneamente, sendo a primeira a seguinte: os participantes devem ser livres, no sentido de ser

71

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. v.I Tradução de Flávio Beno Siebeneichler; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 164.

72

HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla; 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 10.

73

HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla; 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 12-14

74

OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. Moralidade e Jurisdição: A compreensão procedimentalista do direito em Jürgen Habermas. Orientação de Dr. Sérgio Cademartori. 2006. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, 2006, p. 52.

dotado da autoridade epistêmica da primeira pessoa, e, dessa forma, possa dizer “sim” ou “não”; já “a segunda: que essa autoridade epistêmica seja exercida de acordo com a busca de um acordo racional; que, portanto, só sejam escolhidas soluções que sejam racionalmente aceitáveis para todos os envolvidos e todos os que por elas forem afetados”.75

A racionalidade se manifesta no uso comunicativo da linguagem através do compromisso de que as pretensões de validade levantadas no ato de fala são passíveis de uma justificação com argumentos. Na apresentação dos tipos de racionalidade foi possível perceber que há uma vinculação entre a racionalidade comunicativa e a racionalidade discursiva. Ambas apontam para um fórum “público” que permite testar os argumentos levantados, um local onde as pretensões de validade podem ser “desempenhadas”: o discurso racional. Este pode ser descrito como um procedimento formal que permite testar rigorosamente as pretensões de correção normativa e verdade.76

Os princípios da ética da discussão buscam a formulação de um novo projeto kantiano de estabelecer novo fundamento objetivo das normas práticas, intenta-se, com isso, uma formulação nova do paradigma kantiano da subjetividade, baseada na substituição pelo paradigma da comunicação. Isto implica na necessidade de se alcançar uma intersubjetividade, que é própria da comunicação nos discursos éticos. 77

Com efeito, o que a ética do discurso visa explicar?

A ética do discurso explica o conteúdo cognitivo de sentenças referentes ao dever sem fazer apelo a uma ordem evidente de fatos morais que se ofereceria à nossa contemplação. Os enunciados morais, que nos dizem o que fazer, não devem ser equiparados a afirmações descritivas que nos dizem como as coisas se articulam entre si. A razão prática é uma faculdade de cognição moral sem representação.78

Pela ética do discurso se infere uma postura universalista da ética moderna, vinculada às pretensões de validade implícitas na linguagem humana. Todo o discurso humano parte dos contextos concretos dos mundos de vida, tendo em vista que todos os sujeitos que participam de argumentação pertencem a alguma comunidade real de comunicação, esta é socioculturalmente condicionada, limitada e institucionalmente configurada, dessa forma, toda a ação moral deve ser

75

HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla; 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 15-16.

76

OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. Moralidade e Jurisdição: A compreensão procedimentalista do direito em Jürgen Habermas. Orientação de Dr. Sérgio Cademartori. 2006. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, 2006, p. 54.

77

HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla; 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 20-21.

78

HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla; 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 63-64.

mediada por instituições sociais como complexos históricos da interação e da comunicação humana.79

Além da tese sobre a ética do discurso, Habermas pretende se valer de um discurso da verdade para explicar a interpretação da justiça das normas e juízos morais como análogo da verdade. Para isso, devem ser utilizados os argumentos para comprovar a aceitabilidade racional dos juízos, que é a garantia de imparcialidade.

[...] A verdade de uma proposição expressa um fato, no caso dos juízos morais não há nada que equivalha a afirmação de que um determinado estado de coisas ‘é’. Um consenso normativo, formado em condições de participação livre e universal no contexto de um discurso prático, estabelece uma norma válida (ou confirma sua validade). A ‘validade’ de uma norma moral significa que ela ‘merece’ o reconhecimento universal em virtude de sua capacidade de, por meio da razão somente, obter o consentimento da vontade daqueles a quem se dirige. 80

Percebe-se, portanto, a busca de legitimidade na construção de relações interpessoais. Nesse sentido, “cabe a ética do discurso provar que a necessária dinâmica de ‘cada qual ver o que o outro vê’ está embutida nos pressupostos pragmáticos do próprio discurso prático”.81

A ética discursiva tem duas preocupações básicas: alcançar um universalismo ético (característica herdada da tradição kantiana) e preservar a diversidade cultural. “Não cabe à ética discursiva prescrever formas concretas de vida, ideais de felicidade, modelos comunitários [...] de virtude, e sim proporcionar os procedimentos que nos permitem legitimar normas e, portanto, prescrevê-las com uma validade universal.”82 Com efeito, infere-se que a ética discursiva é procedimentalista. Destarte, a ética discursiva possui como papeis: “descobrir os procedimentos e premissas a partir dos quais as justificações podem ter um poder gerador de consenso”83; bem como “ocupar-se dos procedimentos em virtude dos quais juízos ou preceitos são legitimados, e não de seus conteúdos”.84

Por isso, afirma-se ser a ética discursiva não conteúdistica e procedimentalista.

79

OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Moral, Direito e Democracia: o debate Apel versus Habermas no contexto de uma concepção procedimental da filosofia prática. In MOREIRA, Luiz (org.) Com Habermas, Contra Habermas, pp. 145-176, São Paulo: Landy, 2004, p. 148.

80

HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla; 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 65-66.

81

HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla; 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 67.

82

CORTINA, Adela. A ética sem moral. Tradução Marcos Marcionilo. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes. 2010. p. 164.

83

CORTINA, Adela. A ética sem moral. Tradução Marcos Marcionilo. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes. 2010. p. 167.

84

CORTINA, Adela. A ética sem moral. Tradução Marcos Marcionilo. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes. 2010. p. 168.

Todavia, isto não quer dizer que os conteúdos sejam desimportantes. Habermas também aborda a importância dos conteúdos, em especial, a exemplo dos elementos morais contidos no direito.

A relação entre a moral e o direito ocorreu ao longo da história, nos primados da humanidade não fazia sentido uma divergência entre eles. A partir do desenvolvimento das sociedades, que aumentaram sua complexidade ao longo da história, surge a necessidade de se individualizar e especializar as diversas áreas do conhecimento.

Na modernidade houve um esvaziamento da ética, já que a moral passa a ser tutelada pelo direito, em virtude da coerção moral não ser suficiente para se forçar seu cumprimento. Nesse sentido, Habermas irá propor uma teoria procedimentalista, sem conteúdo, para defender a legitimidade no direito com base no princípio da democracia, o que não exclui a relação complementar entre moral e direito, mas afasta a subordinação do último em relação ao primeiro.