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5. IMPOSSIBILIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO MORAL DOS DIREITOS

5.3. A MORAL É ESTEIO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS?

A moral e o direito complementam-se, onde a moral não seja suficiente para se evitar determinadas condutas, o direito deve atuar como forma de manutenção da harmonia social, todavia, não há subordinação do direito à moral. Mesmo em havendo sustentação de um conceito de direito destituído de elemento moral, é possível se manter essa complementaridade entre eles. Porém, é preferível um conceito de direito que englobe elemento moral, isto não afetaria a independência do direito.

Os direitos fundamentais diferem dos direitos humanos no que se refere ao âmbito de atuação, enquanto os primeiros estão previstos no ordenamento jurídico de um determinado país, em suas Constituições, os direitos humanos são de âmbito internacional e são previstos, em regra, em tratados e convenções internacionais, ou podem ser considerados como os direitos inerentes ao ser humano pelo simples fato de ser homem.

Cortina esboça a teoria dos direitos humanos, racionalmente fundada na ética discursiva, como uma das propostas iluministas atuais. Segundo Cortina, toda teoria dos direitos humanos leva a um trilema: “ 1) ou se trata de direitos imutáveis, derivados da natureza ou da razão; 2) ou podem identificar-se com exigências éticas originárias do conceito de dignidade humana; 3) ou são

352

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. v. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 253.

353

VELJANOVSKI, Cento. A Economia do direito e da lei: uma introdução; tradução: Francisco J. Beralli. Rio de Janeiro. Instituto Liberal, 1994, p. 43.

estabelecidos no decorrer da história por desígnio do legislador”.354

A solução estaria no dualismo, base ética e mediação entre transcendentalidade e história.

A ética discursiva pode resolver o trilema se apresentado como: “ética procedimental, que pode mediar condições transcendentais e acordos fáticos, condições ideais e decisões reais. O positivismo jurídico estaria, assim, superado, sem se cair por isso em jusnaturalismo com conteúdo.”355 A ética procedimental, conforme se infere das ideias supracitadas, conseguiria resolver o problema dos direitos humanos superando o positivismo e o jusnaturalismo.

Segundo Habermas:

No entanto, quando pretendemos falar do direito apenas no sentido do direito positivo, temos que fazer uma distinção entre direitos humanos enquanto normas de ação justificadas moralmente e direitos humanos enquanto normas constitucionais positivamente válidas. O status de tais direitos fundamentais não é o mesmo que o das normas morais – que possivelmente têm o mesmo significado. Na forma de direitos constitucionais normatizados e de reclamações, eles encontram abrigo no campo de validade de determinada comunidade política. Todavia, esse status não contradiz o sentido universalista dos direitos de liberdade clássicos, que incluem todas as pessoas em geral e não somente todos os que pertencem a um Estado. Enquanto direitos fundamentais, eles se estendem a todas as pessoas, na medida em que se detêm no campo de validade da ordem do direito; nesta medida, todos gozam de proteção da constituição.356

A teoria discursiva do direito é procedimentalista e visa explicar as pretensões de validade do processo de entendimento do direito, baseada no princípio do discurso, que implica na necessidade de aprovação de todos os indivíduos envolvidos, para que se possa imprimir validade às normas.

Os discursos sugerem a possibilidade de se formar uma vontade racional,

a legitimidade do direito apoia-se, em última instância, num arranjo comunicativo: enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os possíveis atingidos. Por conseguinte, o almejado nexo interno entre soberania popular e direitos humanos só se estabelecerá, se o sistema dos direitos apresentar as condições exatas sob as quais as formas de comunicação – necessárias para uma legislação política autônoma – podem ser institucionalizadas juridicamente357.

354

CORTINA, Adela. A ética sem moral. Tradução Marcos Marcionilo. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.243.

355

CORTINA, Adela. A ética sem moral. Tradução Marcos Marcionilo. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.245.

356

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. v. II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, pp. 316-317.

357

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. v. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p.138.

Ou seja, só por meio da comunicação se consegue legitimar o direito e, para isto, é preciso que haja institucionalização jurídica da comunicação. Sendo assim, a legitimidade do direito fundamenta-se na opinião dos pares por meio da comunicação e não simplesmente nas leis gerais.

O surgimento da legitimidade a partir da legalidade não é paradoxal, a não ser para os que partem da premissa de que o sistema do direito tem que ser representado como um processo circular que se fecha recursivamente, legitimando-se a si mesmo. A isso opõe- se a evidência de que instituições jurídicas da liberdade decompõem-se quando inexistem iniciativas de uma população acostumada à liberdade. Sua espontaneidade não pode ser forçada através do direito; ele se regenera através das tradições libertárias e se mantém nas condições associacionais de uma cultura política liberal. Regulações jurídicas podem, todavia, estabelecer medidas para que os custos das virtudes cidadãs pretendidas não sejam muito altos. A compreensão discursiva do sistema dos direitos conduz o olhar para dois lados: De um lado, a carga de legitimação da normatização jurídica das qualificações dos cidadãos desloca-se para os procedimentos da formação discursiva da opinião e da vontade, institucionalizados juridicamente. De outro lado, a juridificação da liberdade comunicativa significa também que o direito é levado a explorar fontes de legitimação das quais ele não pode dispor.358

Habermas critica o sistema autopoiético de direito, tendo em vista a legitimidade não ser feita por ele (direito) mesmo num processo fechado. A liberdade é uma instituição jurídica fundamental na sociedade, já que a espontaneidade não pode ser forçada. E a legitimidade do direito se dá por meio da institucionalização dos procedimentos responsáveis pela formação do discurso da opinião e da vontade, que deve ser legitimado por uma liberdade comunicativa.

O conceito de direitos fundamentais tem, também, elemento moral, mas este não é suficiente, por si só, para basilar os direitos fundamentais, já que a moral e o direito são independentes. Para Habermas os direitos fundamentais são espécies de direito subjetivo, a existência de conteúdo moral não retira a sua qualidade jurídica e nem faz deles normas morais, já que as normas jurídicas possuem características que são conservadas independentemente da natureza das razões que fundamentem sua pretensão de legitimidade, pois elas devem esse caráter à sua própria estrutura e não ao seu conteúdo.359

Percebe-se que Habermas busca demonstrar uma nova justificativa para os direitos fundamentais. Trata-se da busca por um fundamento específico, isto é, que não seja baseado na moral. Ele consegue em sua teoria superar a ideia kantiana de que o direito fundamental se baseia na moral.

358

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. v. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p.168.

359

Cf. JOSÉ, Caroline Lorenzon. Aspectos Necessários e Relevantes para a Consolidação do Paradigma da Fundamentação do Direito em Jürgen Habermas. (dissertação de mestrado em Direito UNIVALI, apresentada em Itajaí em 2009). Disponível na internet: http://www6.univali.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=719. Acessado em 22 de julho de 2013, p. 116.

Partindo de fundamentação pós-metafísica, Habermas vai além da redução do conceito de autonomia baseado na moral, decaindo, dessa forma, a função mediadora do princípio do direito kantiano, destarte, o conceito de autonomia esclarece aspectos que distinguem as regras do direito e da moral.360

Isso gera consequências na aplicação e interpretação das normas de direitos fundamentais. Os direitos fundamentais devem ser interpretados, desde a origem, como direitos jurídicos intersubjetivos, independentemente de possuírem conteúdos morais. Destarte, os direitos fundamentais não são subordinados à moral, trata-se de decorrência da relação complementar entre direito e moral, que implica numa relação cooriginária e não de subordinação entre direito e moral.

Mas onde está a legitimidade de um direito fundamental positivo? Para Habermas, “certamente a fonte de toda legitimidade está no processo democrático da legiferação; e esta apela, por seu turno, para o princípio da soberania do povo”.361 Destarte, constata-se uma conexão entre direitos fundamentais e a soberania popular.

Essa conexão interna entre soberania popular e direitos fundamentais surge de uma redefinição da autonomia, nesse sentido, os direitos fundamentais possuem a moral como parte de seu conteúdo, entretanto, a sua justificação não decorre da moral, mas sim do processo democrático institucionalizado juridicamente.

Como explicado ao longo deste trabalho, existe uma relação complementar entre o direito e a moral, no conceito de direito deve conter elemento moral. Entretanto, os direitos fundamentais não são meros conselhos morais e, embora eles possuam conteúdo ético, eles têm como seu fundamento específico, segundo Habermas, o princípio democrático. Com efeito, é preciso haver legitimidade na formação desses direitos fundamentais, logo, essa legitimidade deve ser embasada por meio da institucionalização jurídica.

360

COSTA, Regenaldo da. Discurso, Direito e Democracia em Habermas. In MOREIRA, Luiz e MERLE, Jean- Christophe (org.). Direito e Legitimidade, pp. 37-52, São Paulo: Landy, 2003, p. 39.

361

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. v. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p.122.

Sendo assim, necessária se faz com que haja impossibilidade do legislador agir contra os direitos fundamentais, já que eles garantem a manutenção da soberania popular e do exercício da autonomia política entre os cidadãos, e, por conseguinte, haja a legitimidade do direito.362

Habermas trata desse nexo interno concluindo o seguinte:

Por conseguinte, o almejado nexo interno entre soberania popular e direitos humanos só se estabelecerá, se o sistema dos direitos apresentar as condições exatas sob as quais as formas de comunicação - necessárias para uma legislação política autônoma - podem ser institucionalizadas juridicamente. O sistema dos direitos não pode ser reduzido a uma interpretação moral dos direitos, nem a uma interpretação ética da soberania do povo, porque a autonomia privada dos cidadãos não pode ser sobreposta e nem subordinada à sua autonomia política. As instituições normativas, que unimos aos direitos humanos e a soberania do povo, podem impor-se de forma não-reduzida no sistema dos direitos, se tomarmos como ponto de partida que o direito as mesmas liberdades de ação subjetivas, enquanto direito moral, não pode ser simplesmente imposto ao legislador soberano como barreira exterior, nem instrumentalizado como requisito funcional para seus objetivos.363

Destarte, é preciso haver uma institucionalização, por meio do direito, que garanta um cumprimento de determinadas regras, forçando o legislador a segui-las, independentemente de uma imposição moral. E isto ocorre em virtude do direito não ser uma mera interpretação moral ou da ética do povo, podendo impor-se pela sua legitimidade.

O direito é o responsável pela segurança que não é característica da moral. Para tanto, é preciso haver a institucionalização jurídica, condição formal para formação discursiva da opinião e da vontade na qual a soberania do povo assume a figura jurídica, substancializando, destarte, os direitos fundamentais.364

Quanto a moral ser esteio dos direitos fundamentais, infere-se que, embora ela faça parte do conceito de direito fundamental, inclusive, sendo um de seus conteúdos, o fundamento específico dos direitos fundamentais está no princípio da democracia e não no princípio moral. Ou seja, a moral não é o fundamento dos direitos fundamentais e sim parte de seu conteúdo.

A consequência disso é que os direitos fundamentais não podem ser vistos como meros conselhos morais, isto é, dentro da possibilidade de faculdade lícita de descumprimento, mas sim como direitos jurídicos subjetivos. Isso implica em outros questionamentos: os direitos fundamentais

362

REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a Desobediência Civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 112.

363

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. v. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p.138.

364

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. v. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p.139.

limitam a Administração Pública? O Estado é obrigado a atuar segundo os direitos fundamentais? O Estado pode ser titular de direitos fundamentais?