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A ação modulada pelo logismós e pela phrónesis

No documento O sentido da Pragmateía Epicurista (páginas 122-125)

Dissemos anteriormente que para Epicuro o mal deriva do ódio, da inveja e do desprezo. E também que esses não são sentimentos naturais, mas reflexos de uma forma de viver fundamentada em concepções vazias. Resultaria disso uma desmesura (hýbris) e, portanto, um desequilíbrio que não se repercute na alma do sábio, nem nas ações dele. Isso porque ele guia suas conduta pelo logismós e pela phrónesis ancorados na physiología. Para explicar esse raciocínio, vamos considerar o seguinte testemunho da Carta a Meneceu:

Não é uma sucessão ininterrupta de banquetes e festas, nem o prazer sexual com meninos e mulheres, nem a degustação de peixes e outras iguarias oferecidas por uma mesa suntuosa que proporciona a vida agradável, e sim um cálculo sóbrio (logismòs) que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e elimine as opiniões vãs por obra das quais um intenso tumulto de apossa das almas. (DL, X, 132)18

A práxis epicurista edifica o modo de viver do sábio a partir de uma compreensão da

phýsis e não de acordo com os valores predominantes na pólis. Por meio da physiología são

pensados os limites naturais para o agir e as finalidades das ações. Se o objetivo maior disso é dar um direcionamento para tornar possível fazer da vida um exercício de liberdade, serenidade e equilíbrio, então o foco recai em poder estabelecer uma medida que impeça o sábio de agir contra a natureza. Isso implica na necessidade de pensar, a partir do saber

physiológico, para poder deliberar de forma a escolher e rejeitar visando realizar um modo

sábio de viver.

O termo empregado por Epicuro para definir essa capacidade da psyché para calcular, avaliar e com isso poder fazer escolhas é logismós19. Por meio dessa faculdade a alma pode pensar uma conduta dentro dos limites do natural e necessário e evitar que a vontade se projete em desmesuras e desequilíbrios. O logismós “tem a finalidade de, na medida do possível, livrá-la do erro e do engano nos julgamentos e opiniões que venha a manifestar” (SILVA, 2003, 73). Isso nos remete para uma ideia de intencionalidade que vai gerir toda a conduta do sábio. Sua práxis tem no logismós a possibilidade de uma reflexão voltada para avaliar, selecionar e escolher em função da sua compreensão da natureza e de realizar um modo de vida identificado com ela. Daí porque “raramente a sorte prejudica um homem sábio, pois as coisas principais e fundamentais sempre foram governadas pela razão (logismós), e

18 οὐ γὰρ πότοι καὶ κῶμοι συνείροντες οὐδ’ ἀπολαύσεις παίδων καὶ γυναικῶν οὐδ’ ἰχθύων καὶ τῶν ἄλλων, ὅσα φέρει πολυτελὴς τράπεζα, τὸν ἡδὺν γεννᾷ βίον, ἀλλὰ νήφων λογισμὸς καὶ τὰς αἰτίας ἐξερευνῶν πάσης αἱρέσεως καὶ φυγῆς καὶ τὰς δόξας ἐξελαύνων, ἐξ ὧν πλεῖστος τὰς ψυχὰς αταλαμβάνει θόρυβος. 19 DL, X, 32, 39, 75, 76, 117, 132, 144, 145.

por todo o curso da vida a razão as governa e governará” (DL, X, 144)20. Por isso Epicuro coloca o logismós como essa faculdade da alma que proporciona uma vida agradável, pois sem ela os desejos se desgovernam e se projetam sem limites, desequilibrando o homem e o colocando à mercê de necessidades nem naturais e nem necessárias.

A ação sábia é consequência da deliberação e esta é orientada por esse cálculo racional. Mas é preciso uma disposição para agir segundo o logismós. Estamos aí no âmbito da phrónesis. Esse vocábulo é traduzido por sensatez, prudência, “vontade esclarecida” e sabedoria21. Mas para além de uma tradução é preciso entender o valor circunscrito por essa palavra. “Epicuro utiliza o termo phrónesis num sentido muito similar àquele desenvolvido por Aristóteles, ou seja, como ‘sabedoria prática’” (SILVA, 2003, p. 74). Assim, poderíamos pensar sob a perspectiva de uma sabedoria no agir. A phrónesis em Epicuro diz respeito ao aspecto prático da sua filosofia, a uma disposição para se conduzir orientado por um saber

physiológico tendo em vista realizar uma vida feliz.

Isso nos permite estabelecer uma relação entre phrónesis e práxis em torno da realização de um éthos fundamentado na natureza. Se a filosofia epicurista visa apontar um caminho para viver naturalmente, sem se assujeitar a convenções vazias, a phrónesis é a virtude que conduz o exercício desse modo natural de vida. Isso porque, pela compreensão epicurista, a makaríos zên consiste em agir orientado pela physiología, e a phrónesis dá a medida desse agir. Ela modula os desejos, ímpetos, sentimentos, e permite governar as ações de modo a poder escolher e recusar em função de um télos katà phýsin. Nesse sentido, há uma extensão entre a filosofia e phrónesis, onde esta remete para a práxis filosófica através da qual a pragmateía passa a ser espelhada no modo de viver do sábio.

Nos textos de Epicuro, tanto a noção de phrónesis quanto a de filosofia se referem a um exercício que prepara os “ágeis e autárquicos”22, termos que remetem para uma atividade, para uma disposição, mas também para um aspecto de liberdade que caracteriza as ações do sábio. Sua conduta é determinada a partir de sua faculdade de pensar e escolher por si mesmo. Isso faz pensar o phronéo como quem intelige do estudo da natureza a orientação para seus modos e projeta a finalidade das suas ações em conformidade com o sentido de uma vida katà

phýsin. Em vista disso, a práxis do sophós vai se desenvolver orientada para a autárkeia e

para o prazer. 20 Βραχέα σοφῷ τύχη παρεμπίπτει, τὰ δὲ μέγιστα καὶ κυριώτατα ὁ λογισμὸς διῴκηκε καὶ κατὰ τὸν συνεχῆ χρόνον τοῦ βίου διοικεῖ καὶ διοικήσει. 21

Ver também nota 74, do capitulo I. 22

Podemos perceber, diante do exposto, que a phrónesis pensada como sabedoria prática não se opõe à investigação da natureza nem está distanciada dela. A sabedoria epicurista implica um saber sobre a phýsis a partir do qual são definidas as ações para conduzir a uma vida feliz. A phrónesis “traduz” esse saber em uma disposição para exercitar uma maneira de ser fundamentada pela physiología. Não havendo esse conflito,

a questão passa a ser para Epicuro como tornar possível filosofar, tanto no sentido prático quanto no teorético, portanto, é forçoso admitir que é a

phrónesis que conduz este processo, porque ela dá ao homem o poder de

refletir acerca do que é natural e necessário saber, tanto do ponto de vista prático quanto teórico. (SILVA, 2003, p. 74)

Dada essa importância da phrónesis no contexto da filosofia epicurista, precisamos expor aqui uma discussão com relação à compreensão do seguinte passo da Carta a Meneceu:

O principio de tudo isso e o maior bem é a sabedoria (phrónesis); consequentemente a possessão mais preciosa da própria filosofia é a sabedoria, origem natural de todas as outras formas de excelências restantes; com efeito, ela nos ensina que não se pode levar uma vida agradável se não se vive com sabedoria, moderação e justiça, nem se pode levar uma vida sábia, moderada e justa se não se vive agradavelmente. As formas de excelência são concomitantes com a vida agradável, e a vida agradável é inseparável delas. (DL, X, 132)23

Essa tradução de Mário da Gama Kury leva a entender a phrónesis como algo de que a filosofia dispõe. Esse raciocínio começa algumas linhas antes24, quando Epicuro fala ser necessário investigar as causas de toda escolha e de toda rejeição e eliminar as opiniões vazias, motivo de perturbação da alma. Essa atividade de investigação e depuração requer o exercício da phrónesis, no sentido de desenvolver uma vontade esclarecida e uma ação correspondente. Mas esse esclarecimento é buscado na physiología. Assim, tanto a phrónesis quanto a physiología são pensadas como meio dos quais a filosofia epicurista faz uso para se realizar enquanto saber para vida. Nesse sentido, fica difícil postular que a physiología e mesmo a phrónesis tenham importância superior à própria filosofia, como postula M. Conche, ao propor outra tradução para a frase em questão: “e por isso, mais preciosa mesmo que a filosofia é a prudência (phrónesis)25, da qual provêm todas as outras virtudes (...)” (CONCHE,

23 Τούτων δὲ πάντων ἀρχὴ καὶ τὸ μέγιστον ἀγαθὸν φρόνησις. διὸ καὶ φιλοσοφίας τιμιώτερον ὑπάρχει φρόνησις, ἐξ ἧς αἱ λοιπαὶ πᾶσαι πεφύκασιν ἀρεταί, διδάσκουσα ὡς οὐκ ἔστιν ἡδέως ζῆν ἄνευ τοῦ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίως <οὐδὲ φρονίμως καὶ καλῶς καὶ δικαίως> ἄνευ τοῦ ἡδέως. συμπεφύκασι γὰρ αἱ ἀρεταὶ τῷ ζῆν ἡδέως, καὶ τὸ ζῆν ἡδέως τούτων ἐστὶν ἀχώριστον. 24

Cf. nota 18 deste capítulo. 25

O termo phrónesis é traduzido como sabedoria, prudência e também como vontade esclarecida, conforme sublinhamos na nota 74, do capítulo I.

1977, p. 225)26.

Podemos também opor a esse entendimento de M. Conche, também reproduzido por G. Rodis-Lewis27, a análise sintática segundo a qual a “φιλοσοφία, no nominativo, é o sujeito de uma proposição da qual φρόνησις é o atributo, e o comparativo, neutro com valor adverbial, refere-se a ὑπάρχει” (BOLLACK, 1975, p. 130). Por isso, é o caso de pensar que a filosofia contém a phrónesis e não o contrário. É no sentido dessa análise sintática que estudiosos como G. Arrighetti, J. Bollack e M. Silva compartilham da ideia de não haver uma primazia dessa virtude com relação à filosofia. Há de se considerar as virtudes como um meio28 para alcançar a felicidade, enquanto a filosofia tomada como exercício, seja sob a forma de meditação ou de práxis, traz consigo no momento mesmo em que se exercita aquilo que tem como finalidade: a liberdade e o prazer. Por esses motivos, seguimos o entendimento desses estudiosos, assinalando que a phrónesis é um instrumento de discernimento da alma (assim como o logismós é uma faculdade que a psyché tem para avaliar, calcular, projetar, fazer analogias) com seu devido valor na construção no exercício filosófico: sem ela a

physiología se reduz a uma teoria e a ideia de postular uma filosofia como pragmateía não se

efetiva.

No documento O sentido da Pragmateía Epicurista (páginas 122-125)