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A práxis do sábio: escolher e recusar

No documento O sentido da Pragmateía Epicurista (páginas 117-122)

Epicuro acredita na possibilidade de viver “como um deus entre os homens” (DL, X, 135)9 e em torno dessa projeção constrói o que já foi referido como uma “utopia epicurista” (ETIENNE & O’MEARA, 1996, p. 101)10. Não cremos ser o termo utópico o mais adequado para se referir a esse ideal; afinal, a experiência vivida no Jardim por Epicuro e seus discípulos aponta no sentido contrário, de algo realizável, factível, como estamos tentando mostrar aqui ao caracterizar a filosofia epicurista como uma pragmateía que se realiza como exercícios éticos. E um testemunho de Diógenes de Œnoanda, usado para delinear o horizonte dessa evocada “utopia”, nos serve justamente para evidenciar essa dimensão do que é possível ao homem quando orienta suas ações pelo saber inteligido ao investigar a phýsis. Vejamos:

[...] uma vez que nem todos têm o poder. Mas se nós o supomos possível, então verdadeiramente a vida dos deuses passará aos homens. Porque todas as coisas serão plenas de justiça e de amor mútuo e não haverá necessidade de fortificações ou de leis e de todas essas coisas que nós criamos por causa dos outros. (Œno. fr. 56, II)11

Embora o fragmento esteja incompleto, podemos aventar a possibilidade, em consonância ao conjunto da filosofia epicurista, que esse poder do qual fala Diógenes pode ser o de escolher. Como vimos no segundo capítulo deste trabalho, somente quem liberta a alma das concepções vazias, das convenções colocadas pela cultura, religião, pelas kenaì dóxai, pode agir por si mesmo e direcionar suas escolhas para satisfazer os desejos ligados ao exercício de uma vida autárquica e feliz. Sábio é quem pensa suas necessidades pelo prisma do natural e do necessário, pois isso lhe permite experimentar o mesmo sentido de autárkeia que Epicuro usa para caracterizar o permanente estado de liberdade e imperturbabilidade dos

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ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις. 10

La philosophie Épicurienne sur Pierre, op. cit. 11

[...] puisque tous n’en ont pas le pouvoir. Mais si nous le supposons possible, alors véritablement la vie des

dieux passera aux hommes. Car toutes choses seront pleines de justice et d’amour mutuel, e il n’y aura pas besoin de fortifications ou de lois et de toutes ces choses que nous fabriquons à cause des autres.

deuses. Dessa forma, é possível confiar que a vida deles pode ser experienciada pelos homens; mas não por todos, porque nem todos exercitam a alma para escolher livremente e nem escolhem em função do prazer. E como para Epicuro “o fruto maior do bastar-se a si mesmo é a liberdade”, quem não busca a autarquia distancia-se desse ideal.

Então, se Epicuro venera os theoì como modelo de serenidade, de autarquia, é para projetar na figura do sophós essa aspiração de vida. Ele, o sábio, é quem pode realizar essa “utopia” que consiste em viver “como um deus entre os homens” (DL, X, 135)12, ou seja, sem preocupações, sem medos, sem ser assujeitado por desejos, sem causar males aos outros nem os sofrer. Diógenes, fiel à filosofia epicurista, tenta desenhar em seu testemunho um lugar onde prevalece o justo (díkaios) e o amor mútuo. Ora, a justiça (dikaiosýne) para Epicuro consiste em um “pacto no sentido de não prejudicar nem ser prejudicado” (DL, X, 33)13: é, portanto, algo construído entre os próprios homens. E o amor correspondido remete para a noção de amizade (philía). Esse termo se refere a relações estabelecidas livremente entre pessoas em função de afinidades, do contentamento proporcionado. Portanto, também remete ao poder de escolher. Considerando que onde o justo prevalece não há desequilíbrio e onde a amizade está presente também há segurança, tranquilidade e satisfação, então esse ideal de vida divina é possível, a depender da maneira de se portar no mundo e dos valores que guiam o agir dos homens. E isso está relacionado a um modo específico de compreender a realidade e de escolher em função dessa compreensão. E o sábio traduz esse sentido ao orientar sua práxis de modo a colocar-se na vida como justo e amigo.

Para realizar esse modo de existir dos deuses - livre e feliz - é preciso conferir à vida mais naturalidade. E isso depende do homem fazer com que suas ações correspondam com o modo próprio de ser da natureza. Vale lembrar que a physiología aponta para uma compreensão da phýsis a qual não tem sua dýnamis determinada ou perturbada por nada exterior a ela. No mesmo paralelo, um éthos liberto e tranquilo pode ser realizado mediante escolhas e recusas voltadas para espelhar esse modo natural de ser. Assim, a liberdade como a possibilidade de agir por si mesmo e a felicidade como um estado equilibrado dizem respeito a um exercício, a uma construção, a uma práxis katà phýsin.

É nesse sentido que objetivo das ações do sábio vai ser orientado para a realização da própria felicidade e todas as escolhas e recusas vão ter em mira esse télos. Em cima desse direcionamento o homem procura exercitar a sabedoria no agir, definindo uma práxis

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ζήσῃ δὲ ὡς θεὸς ἐν ἀνθρώποις. 13

fundamentada no seu poder discernir o fundamental para uma vida feliz. Diógenes de Œnoanda faz um comentário nesse sentido, opondo o que se deve evitar ao que se deve escolher e definindo a filosofia como uma prática relacionada à escolha daquilo do que proporciona felicidade.

[... muitos] procuram filosofar a fim de obter para si coisas de indivíduos ou de reis, para quem a filosofia é tida como um bem precioso. Não é, contudo, para ter uma dessas coisas mencionadas que nós empreendemos essa prática <da filosofia>, mas para ser feliz, tendo conquistado a finalidade da natureza. (Œno. fr. 29, I e II)14

Essa relação pretendida entre a realização de uma maneira sábia de viver e a filosofia tem em conta que a makaríos zên buscada pelo sábio só é possível se ele escolher o prazer e sobre essa finalidade estabelecer seu modo de viver. E isso volta a nos remeter para a importância de ter a natureza como paradigma e não as convenções fundadas em opiniões vazias. Assim, o télos das ações do sophós não está projetado no que os muitos professam (riqueza, glória, poder), mas em estabelecer um éthos dentro dos limites da natureza. A vida sábia é tranquila, frugal, alegre e autárquica e a práxis epicurista visa justamente isso. Vale lembrar: quando tratamos da vida katà phýsin, no capítulo I, destacamos que o sábio escolhe em função da necessidade e isso está relacionado a buscar satisfazer os desejos naturais e necessários e afastar-se daqueles que nem são naturais e nem necessários. Ao circunscrever suas vontades aos limites da phýsis, o sábio exercita o domínio sobre si mesmo e experimenta uma independência para fazer escolhas e recusas objetivando edificar a própria felicidade. Escolher e recusar com sabedoria depende, nesse caso, da possibilidade de se distanciar das opiniões vazias. Aí se mostra a importância da physiología para a práxis epicurista. O sábio age a partir de critérios e raciocínios que, desconstruindo essas opiniões e edificando um

lógos de acordo com a phýsis, conduzem a escolher em função de ser feliz.

Mas essas escolhas e recusas também incidem sobre sentimentos, pois há aqueles relacionados à construção de uma vida feliz e aqueles que afastam o homem desse objetivo. Diante disso, o sábio procura compreendê-los e administrá-los, uma vez que eles podem direcionar a ação tanto para o bem quanto para o mal. Sobre esse aspecto, Epicuro afirma: “as causas dos males praticados pelos homens são o ódio, a inveja e o desprezo” (DL, X, 75). Ora, o mal aqui é entendido como o sofrimento e não é possível ser feliz se as ações são

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[...beaucoup] cherchent à philosopher, afin de se procurer ces choses auprès des particuliers ou des róis, chez

qui la philosophie est tênue pour une grande et précieuse possession. Ce n’est donc pas afin d’avoir une des choses susmentionnées que nous avons entrepris cete pratique <de la philosophie>, mas pour être heureux, ayant acquis la fin recherchée par la nature.

orientadas para essa finalidade, assim como não é possível pensar a ataraxía e o equilíbrio por meio de uma práxis motivada pela tristeza, pelo rancor, pelos desafetos.

Em face desse problema a filosofia epicurista postula que “as ‘afecções’15 não são incompatíveis com a busca da sabedoria. Ainda que o epicurismo recuse a apátheia, a perfeita insensibilidade do sábio estoico, o sábio não está, contudo, assujeitado às paixões propriamente ditas” (RODIS-LEWIS, 1975, p. 204). Assim, não é o caso de negar a existência desses sentimentos, nem de ficar à mercê deles, nem de ficar indiferente a eles. Ao contrário, é em torno deles que o sábio coloca em exercício a pragmateía, fazendo convergir uma compreensão sobre a natureza para a prática da autárkeia, o que resulta na possibilidade de um autodomínio; pois incompatível à sabedoria é não ter o domínio sobre a vontade e isso revela uma alma adoecida pelas paixões e enfraquecida em sua capacidade de determinação.

Nesse sentido, o ódio, a inveja, o desprezo, são sentimentos relacionados aos deuses dos muitos, mas não à concepção de divindade postulada pelo epicurismo e tomada como modelo para a práxis humana. Se os theoì epicuristas não têm cólera nem desejam além de sua autossuficiência, é porque esse é seu modo natural de existir e o sábio toma isso como referência para orientar suas escolhas e recusas. Dessa forma, o sentimento de inveja que o

sophós poderia sentir ao perceber a riqueza dos outros é anulado pela compreensão de que o

necessário basta e faz feliz, enquanto o excessivo remete para uma busca sem fim e sem sossego. A esse sentimento ele contrapõe a alegria de quem ri e governa sua vida orientado pela reta filosofia (SV 41). Pois foi investigando a natureza e meditando sobre ela que ele compreendeu que “não se deve ter inveja de ninguém: os bons não são dignos de inveja e os maus, quanto mais afortunados, tanto mais eles se prejudicam a si mesmos” (SV 53)16. Do mesmo modo, a raiva, o ódio, o rancor e outros sentimentos da mesma espécie também podem ser submetidos a uma ponderação quanto às suas causas e consequências. Esta sentença de Epicuro pode ajudar na compreensão desse aspecto:

Com efeito, as cóleras acontecem aos que geraram contra os que nasceram, segundo o que é preciso, é vão por isso mesmo colocar-se em posição

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Nos textos de Epicuro, o termo páthos diz respeito às afecções que sentimos mediante o contato entre nossos sentidos e o mundo fenomênico. Mas também pode se referir, em sentido menos técnico aos sofrimentos da alma causados pelo desequilíbrio do corpo-carne. No que diz respeito ao emprego desse vocábulo para se referir às paixões, encontramos apenas uma referência nas Sentenças Vaticanas onde se diz: ”suprimindo o olho no olho (o olhar direcionado) as relações mútuas e a convivência, o sentimento amoroso se dissipa’. Em grego:

Ἀφαιρουμένης προσόψεως καὶ ὁμιλίας καὶ συναναστροφῆς ἐκλύεται τὸ ἐρωτικὸν πάθος (SV 18). E aqui estamos

tratando justamente desse tipo de sentimento, dessas paixões que podem exercer um domínio sobre o homem e condicionar suas ações.

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Οὐδενὶ φθονητέον· ἀγαθοὶ γὰρ οὐκ ἄξιοι φθόνου, πονηροὶ δὲ ὅσῳ ἂν μᾶλλον εὐτυχῶσι, τοσούτῳ μᾶλλον αὑτοῖς

contrária e não ir em busca de encontrar compreensão; e se é segundo o que não é preciso, mas sem muita razão, é ridículo aquele que está possuído pela emoção atiçar mais ainda a falta de razão e não procurar mudar segundo outros modos benevolentes (mais suaves). (SV 62) 17

Evidentemente temos aí, como enquadramento, a relação entre pais (que geraram) e filhos (que nasceram). Mas o entendimento pode ser aplicado a outras circunstâncias da vida onde haja uma disposição para reagir movido por sentimentos de agressividade, de irritação. A ideia colocada é a da irracionalidade em alimentar esse páthos com relação a quem frustra com razão os desejos de outrem; também de ser inútil adotar ações movidas pela raiva contra aquele que, mesmo sem fundamento, castra vontades ou tolhe opiniões. No primeiro caso porque é injusto, no segundo porque incita ainda mais o confronto. Com isso, coloca-se a necessidade de dominar essas inclinações, por meio do logismós e da phrónesis, para rejeitar todo comportamento reativo gerador para si e para os outros de perturbação e desequilíbrio.

A ética epicurista está centrada no poder de escolher e recusar do homem. Mas é preciso considerar que há coisas sobre as quais ele tem domínio e outras não. A filosofia, então, vai ter sua importância ao desenvolver nele um discernimento para saber esses limites e definir dentro deles uma práxis direcionada para o prazer, a alegria, a tranquilidade. Dessa forma, para o sábio, sentimentos como rancor, inveja, despeito, estão intimamente ligados a uma compreensão enviesada a respeito da phýsis e quanto aos valores fundamentais para a realização da felicidade e, por isso, contaminam os relacionamentos e adoecem a alma. Eles remetem para a artificialização da vida, das relações, e se opõem à noção de uma natureza equilibrada.

Por isso, ao contrário da pólis, no Jardim se ensina que não há necessidade de estimular a ambição, a disputa, de querer sempre mais do que o outro pode ter. Ao contrário, postula-se o bem-estar promovido por uma vida frugal. Ao pensar um modo de vida onde a inveja, a competição, a disputa, a exploração não prevalecem diante do sentimento de comunidade, de amizade, esses sentimentos que causam inquietude, insegurança, medo, perdem o sentido. E isso está ligado a escolher entre ter o necessário à felicidade ou querer ter sempre mais. O sábio escolhe guiado pelo saber a respeito da phýsis, tendo em mira a felicidade e os limites aos quais ela se circunscreve. E isso lhe permite ter a compreensão que não é da natureza do homem sentir ódio, inveja, desprezo, e a escolher se afastar de relações estimuladoras desses sentimentos.

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Εἰ γὰρ κατὰ τὸ δέον ὀργαὶ γίνονται τοῖς γεννήσασι πρὸς τὰ ἔκγονα, μάταιον δήπουθέν ἐστι τὸ ντιτείνειν καὶ μὴ

παραιτεῖσθαι συγγνώμης τυχεῖν, εἰ δὲ μὴ κατὰ τὸ δέον, ἀλλὰ ἀλογώτερον, γελοῖον πᾶν τὸ πρὸς ἔκκλησιν <ἐκκαλεῖν> τὴν ἀλογίαν θυμῷ κατέχοντα, καὶ μὴ ζητεῖν μεταθεῖναι κατ’ ἄλλους τρόπους εὐγνωμονοῦντα.

No documento O sentido da Pragmateía Epicurista (páginas 117-122)