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A meditação como exercício de libertação

No documento O sentido da Pragmateía Epicurista (páginas 97-100)

No epicurismo, a filosofia é pensada como uma therapeía e, por conseguinte, a

makaríos zên implica em afastar aquilo que adoece a alma, trazendo perturbação e

desarmonia. Vimos que a principal causa de sofrimento para o homem está em orientar sua vida a partir do que professam as falsas opiniões a respeito dos bens necessários à realização humana. Fora dos limites da natureza, a makaríos zên é inexequível33. Ou seja, a saúde, o bem-estar, o equilíbrio, são condições que têm uma relação direta com a possibilidade de a

psyché se distanciar dessas opiniões e estabelecer um éthos de acordo com a natureza.

Procuramos demonstrar no item 2.1 deste capítulo que a meditação (melétema) pode ser entendida como uma atividade visando reelaborar ou substituir um lógos assentado em crenças infundadas por outro ancorado em uma compreensão physiológica da natureza e em critérios de verdade relacionados ao sensível; afinal, “se lutares contra todas as sensações, não terás um critério de referência, e assim não poderás julgar sequer aqueles juízos que qualificas de falsos” (DL, X, 146)34. Dito de outra forma, trata-se de submeter o produto de nosso raciocínio e de nossa imaginação ao conhecimento que temos a respeito da phýsis. A partir daí seria possível fazer a uma separação (diaíresis), afastando o pensamento que não está conforme a natureza e que poderia causar perturbações para a alma ou dor para o corpo.

É em torno dessa necessidade de orientar o pensamento para uma prática fundamentada na natureza que a meditação vai favorecer uma libertação da psyché das kenaì

dóxai. Isso seria necessário porque Epicuro atribui a essas opiniões dois problemas/consequências. O primeiro pode ser entendido por meio de um aspecto opressor. Quando as opiniões professam a possibilidade de pensar o gozo de uma liberdade sem limite, ela conduz ao despotismo, à anulação da vontade de outrem. Já o segundo problema é percebido quando essas doxaì visam legitimar a fama, a glória, a riqueza, o poder e o prazer sem critério como valores hegemônicos na pólis e, portanto, devendo ser buscados. Com isso, o homem é enredado em uma procura sem fim e sem sossego. Em qualquer caso, o que se tem é a mitigação do sentido da liberdade fundamental para o exercício de um modo sábio de viver, seja porque ela foi tiranizada por quem impõe sua vontade aos outros, ou porque a alma se tornou cativa de desejos que não realizam sua natureza livre e feliz. É nesse sentido que contextualizamos a seguinte sentença:

33 DL, X, 144, XV; SV 8, 11, 25, 45, 59. 34 Οὐθὲν ὄφελος ἦν τὴν κατὰ ἀνθρώπους ἀσφάλειαν παρασκευάζεσθαι τῶν ἄνωθεν πόπτων καθεστώτων καὶ τῶν ὑπὸ γῆς καὶ ἁπλῶς τῶν ἐν τῷ ἀπείρῳ.

Uma vida livre não pode adquirir bens numerosos pelo fato da coisa não ser fácil fora da sujeição às multidões e aos poderosos; mas ela adquire tudo por uma abundância contínua. Se por acaso em algum lugar ela encontra muitos bens, também essas coisas são fáceis de distribuir em favor da boa disposição do próximo. (SV 76)35

Essa passagem nos permite evidenciar a relação que é estabelecida entre liberdade e frugalidade, uma perspectiva antitética àquela revalidada pelas kenaì dóxai. A vida livre é realizável na medida em que as necessidades são reduzidas ao mínimo necessário. Contudo, para os muitos, prevalece a concepção de que a felicidade é adquirida por meio da abundância de bens. “A raiz do mal se encontra no descontrole doentio de nossos desejos que, sobre o efeito de falsas representações do prazer e da felicidade, nos impelem a desejar possuir sem limite” (HELMER, 2013, p. 11). É essa compreensão vazia (descolada da natureza) que não considera a finalidade das ações do homem a partir de um modelo natural, a partir do qual se pensa o prazer (hedoné) como caminho para o equilíbrio e o exercício da autárkeia como possibilidade de experimentar uma vontade livre. Por isso, para se poder estabelecer um modo autêntico de viver, é preciso meditar a respeito dos bens relacionados a essa finalidade. Os demais, ligados às opiniões vazias engendram adoecimento, desequilíbrio, assenhoramento da vontade e, portanto, devem ser recusados.

É nesse mesmo diapasão que o epicurista Diógenes de Œnoanda adverte: “a maior parte dos homens está doente por falsas opiniões sobre as coisas e não escuta o corpo” (Œno. fr. 2)36. Ou seja, ao não se ouvir o que a natureza diz a respeito do que é importante para experimentar bem-estar, e ao se deixar guiar pelas concepções que alheiam a psyché de si mesma, a liberdade é mitigada. Nesse caso, a meditação atua no sentido de corrigir essa visão enviesada a respeito do que é imprescindível à vida agradável. Ao evocar na alma a concepção physiológica de que podemos nos ater somente aos desejos que são naturais e necessários, como vimos no item 1.2.2, do capítulo I, as necessidades ficam reduzidas ao mínimo, o que leva o homem a poder experimentar um sentimento de autossuficiência e emancipação vis-à-vis demandas que não são suas. A ideia é: quanto menos necessidades, mais se vê abundar o que é fundamental e querer partilhar o excedente. E isso caminha no sentido contrário daqueles que vivem de acordo com as opiniões vazias: submetidos aos desejos que a multidão louva (aqueles que nem são naturais nem necessários e, portanto, são vazios) e buscando acumular os bens para exercer suas desmesuras, abdicam de viver serena e

35 Ἐλεύθερος βίος οὐ δύναται κτήσασθαι χρήματα πολλὰ διὰ τὸ τὸ πρᾶγμα <μὴ> ῥᾴδιον εἶναι χωρὶς θητείας ὄχλων ἢ δυναστῶν, ἀλλὰ συνεχεῖ δαψιλείᾳ πάντα κέκτηται· ἂν δέ που καὶ τύχη χρημάτων πολλῶν, καὶ ταῦτα ῥᾳδίως ἂν εἰς τὴν τοῦ πλησίον εὔνοιαν διαμετρήσαι. 36

livremente. Nesse contexto, a meditação adquire um papel importante para a compreensão dos próprios desejos, bem como para o domínio e a limitação que devem se impostos a eles. E isso se dá à luz de um trabalho de investigação da natureza e de procurar espelhar seus paradigmas na própria psyché por meio de um lógos katà phýsin.

Ora, se Epicuro vê nas opiniões vazias um mal, na medida em que podem engendrar sofrimento, então fica clara a necessidade de um afastamento da pólis enquanto ambiente onde as kenaì dóxai predominam e compõem o lógos que adoece e assenhora a vontade do homem. Na visão epicurista, a pólis enferma impõe uma tirania das vontades a partir da noção de que é sempre preciso mais para ser feliz. Felipe da Macedônia, seguido por seu filho Alexandre e, após a morte dele, o despotismo dos seus generais, são um reflexo dessa imposição colocada para o homem grego que vê na busca de poder, riquezas e fama um modelo de realização. Mas para Epicuro não é preciso muito para se sentir feliz, o que é preciso é “vir a ser em torno da cura de nós mesmos” (SV 64)37. Por isso, o caminho para o gozo de uma vida sábia estaria em orientar a psyché para buscar na phýsis uma referência para o desejar tendo em vista um estado de equilíbrio. É em torno desse télos que o sábio medita e orienta a alma para uma liberação, um desvencilhamento dos valores convencionados a partir das kenaì dóxai.

Podemos a partir daí relacionar a dimensão terapêutica da meditação com a prática de uma libertação, pois quando distanciado do lógos que desequilibra, adoece e aprisiona, o homem pode experimentar a ataraxía (ausência de perturbação na alma) e a aponía (ausência de dores no corpo) necessários ao seu bem-estar. Quando a psyché submete o pensamento à

physiología, a perspectiva é a de uma sensibilização com relação à ideia de que não é

necessário viver com necessidades que extrapolem os limites do natural, nem buscar um modo de viver que não seja katà phýsin. E mudar o pensamento leva à mudança no comportamento, no éthos. Dessa forma, a therapeía da alma nos indica um sentido de libertação; afinal, “liberdade quer dizer desvencilhar-se de todos aqueles nós ideológicos, mitos, ritos religiosos, prejuízos culturais, interpretações tradicionais, apresentadas sem crítica na linguagem e transmitidas inicialmente pela Paideía e pelos usos sociais” (LLEDÓ, 2003, p. 20).

Assim, o vir a ser do sophós em torno da cura de si mesmo, ou a compreensão da filosofia epicurista como uma therapeía, acabam por nos remeter a uma prática de meditação que visa permitir, a partir do que se conhece da phýsis, pensar e agir a partir de si mesmo

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(liberto das opiniões e convenções) para fazer as escolhas e recusas necessárias para estabelecer um cuidado consigo mesmo. Ao desenvolver na psyché a percepção a respeito da necessidade de estabelecer as próprias opiniões, de refutar aquelas que anulam sua vontade e distanciam o homem de uma finalidade natural, a meditação projeta no éthos uma compreensão da natureza que remete para a liberdade e o prazer. Dessa forma, meditar vai se constituir como um exercício voltado para reaproximar o homem da natureza, seja porque lhe sensibiliza a psyché para ouvir as queixas e os clamores do corpo, seja porque direciona o pensamento para buscar fundamentar no saber elaborado a partir da physiología as ações e escolhas que vão delinear seu modo de viver. Em suma, melétema nos remete ao que pode ser referido como sendo um exercício ético, posto que traz consigo a experiência de uma liberdade ligada à possibilidade de poder de pensar a própria existência sem a imposição de convenções, de regras, de normas.

No documento O sentido da Pragmateía Epicurista (páginas 97-100)