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Saber para a vida

No documento O sentido da Pragmateía Epicurista (páginas 144-149)

3.5 Pragmateía e sabedoria prática

3.5.1 Saber para a vida

Epicuro exorta à prática filosófica, mas não como manifestação de erudição, nem nos moldes de uma disciplina preocupada com a sophía, procurando a alétheia ou conduzindo a uma episteme. No Jardim, filosofar consiste em direcionar continuamente o pensamento para o exame da vida que se coloca diante dos sentidos. Busca-se ensinar uma maneira de pensar a

realidade sem ter de recorrer às crenças, aos mitos, às opiniões vazias, às explicações concebidas fora do campo das experiências humanas. Afinal, entende-se que a liberdade da imaginação, aliada à retórica e à insatisfação quanto às respostas sobre o sentido da vida dão asas para um lógos que se lança em um vôo para além dos limites da phýsis. Nos mitos projetam-se causas, finalidades e uma realidade concebível, mas inelutável para o homem sujeito às normas, aos modelos de virtudes e às expectativas de conduta que lhe privam de um sentido autêntico de realização. Desse modo, ele tem a alma adoecida pelo medo, pelo desequilíbrio, pela imposição da submissão; males que afastam a felicidade. Se mesmo nos momentos adversos Epicuro pratica a alegria ao relembrar momentos felizes é porque soube contrapor a esse lógos que adoece, aprisiona, assenhora, despotencializa, outro que, partindo de uma investigação da phýsis, busca a realização humana dentro daquilo que a natureza circunscreve. É esse sentido de buscar realizar uma vida sábia que vai definir os contornos da

pragmateía epicurista.

No passo 35 da Carta a Heródoto, o termo pragmateía74 tem sido traduzido como sistema (CURY, 2008; CONCHE, 1977)75 ou como o conjunto dos escritos de Epicuro (SOLOVINE, 1965; SALEM,1982)76. Em ambos os casos, faz-se referência a uma doutrina, a um corpus de conhecimento ligado à compreensão da natureza. Mas essa perspectiva parece- nos, malgrado as limitações impostas às traduções, bem aquém de expressar o conjunto de inter-relações entre conhecimento (gnósis), physiología, ética, sabedoria e exercícios (áskesis) estabelecidas na dinâmica de realização de uma vida de acordo com a natureza, como estamos tentado mostrar nesse trabalho. Por isso, cabe pensar um sentido mais amplo e adequado para o termo, de maneira a poder traduzir o escopo da filosofia epicurista.

Quando observamos a etimologia da palavra, verificamos que o termo pragmateía77 pode também se referir à maneira como tratamos de algo, ao cuidado que dedicamos ao fazer alguma coisa. Isso leva em conta a busca pela realização de um objetivo para o qual é preciso se ocupar, se aplicar. Nesse sentido, o termo remete para a procura por alcançar uma finalidade e também pode fazer referência a afazeres78, atividades, práticas. Esse enquadramento mais abrangente possibilita pensar a filosofia do Jardim sob uma perspectiva

74

DL, X, 35, 77, 83. Πραγματεία. 75

Ver nota 30, da introdução. 76

Maurice Solovine traduz como “tudo o que o que eu (Epicuro) escrevi sobre a natureza” em Épicure:

doutrines et maximes. Paris: Hermann, 1965. Jean Salem usa a expressão “toda a matéria (assunto)” em Epicure: lettres. Paris: Nathan, 1982

77

Anatole Bailly, Op. Cit. 78

The Online Liddell-Scott-Jones Greek-English Lexicon. (http://stephanus.tlg.uci.edu/lsj/#eid=1, acessado em 13 de fevereiro 2019).

mais orgânica. A relação que se estabelece entre a vida feliz e o cuidado de si, entre a investigação da natureza e o exercício da ataraxía, entre libertar a alma das opiniões vazias e praticar a frugalidade, entre os limites da phýsis e a repleção dos desejos naturais, permite inferir um saber que se efetiva justamente como áskesis. É a isso que a pragmateía se refere e como tal procura ser realizada pelo sábio.

O saber passível de ser colocado em prática para fazer da vida um exercício de contentamento vai ser o constituinte da pragmateía. Para o sábio poder agir de uma maneira sensata, a partir da phrónesis e do logismós, e fazer as escolhas e as recusas necessárias para o seu bem-estar, é necessário um conhecimento (gnósis) que lhe permita compreender as finalidades e os bens relacionados ao gozo de uma existência mais equilibrada. Evidentemente nem sempre é possível uma ação racional diante de todas as situações, mas o agir consciente, esclarecido, vai caracterizar a conduta do sábio. Por isso, quanto mais ele conhece os modos de ser da phýsis mais ele passa a compreender aquilo que está relacionado a um modo de vida natural e mais ele pode orientar sua conduta para esse télos. O conhecimento sobre a natureza se traduz em um saber para a vida na medida em que é a partir dessa investigação que o sábio vai poder meditar e estabelecer uma práxis direcionada para uma aproximação com a natureza. Assim, a physiología se identifica com a pragmateía na medida em que busca apresentar um conhecimento que sirva para fazer da vida do homem um exercício de autorrealização. Nesses termos, poder-se-ia falar de um discurso sapiencial, onde o conhecimento se converte em uma disposição para a prática de uma maneira sábia de viver.

Nessa perspectiva, podemos assinalar o papel da filosofia como sendo o de procurar descortinar a phýsis, até onde o pensamento humano alcança, conduzindo a um saber que permita ao homem a tranquilidade diante daquilo que é fenomênico e a confiança (pístis) diante do que pode ser por ele realizado. O sábio, ao entender que a makaríos zên é construída na imanência por meio de exercícios permanentes voltados para realizar uma vida katà

phýsin, passa a confiar na possibilidade de ele mesmo ser responsável por estabelecer os

procedimentos que possam fazê-lo experimentar o sentido de uma existência mais plena. Assim,

(...) longe de se limitar a designar uma certeza epistêmica no estudo dos fenômenos físicos, essa pístis, essa fé, exprime, entre outras coisas, a

segurança que confere ao sábio o alegre saber do qual ele goza no instante

presente. (...) A “falta de certeza” (apistía) coloca, ao contrário, os insensatos “na confusão e na incapacidade de ir adiante”. (SALEM, 1994, p. 60)

Essa atenção dada à compreensão da phýsis como o “terreno” onde a vida feliz pode ser realizada está ligada à necessidade de segurança (aspháleia). Uma referência disso encontramos na Sentença Vaticana 57, onde se diz que “por causa da incerteza, sua vida inteira será levada à confusão e jogada por terra”79. Se por um lado Epicuro, ao dizer isso, parece estar se referindo a questões ligadas à amizade, onde a apistía pode ser remetida “à traição, à infidelidade do amigo” e a pístis pode remeter ao caso em que o “amigo ajudará se a necessidade vier” (BOLLACK, 1975, p. 520), de qualquer forma ele está relacionando a confiança ao modo de vida do sábio; pois não há como pensar a tranquilidade, o equilíbrio, a alegria, se a alma está tomada pela insegurança, pelo medo, pela incerteza, seja com relação aos outros homens, à vida em sociedade ou com relação às coisas do céu. A morte, os deuses, o além-vida, assim como os acontecimentos que ora se dão por necessidade, ora por acaso ou pela ação de outrem, apontam para a dimensão do desconhecido, do imponderável que permeia a vida e para o qual devemos estar em condição de agir com sabedoria. Isso implica em poder recorrer aos ensinamentos physiológicos e aplicá-los às mais distintas situações. Nesse sentido, podemos entender a pragmateía como esse saber que serve para que todos “(...) estejam em condições de sustentá-los em quaisquer circunstâncias” (DL, X, 35)80, ou seja, que assiste quem precisa se colocar diante do que pode causar apreensão, dúvida, incerteza. Essa premência também é manifesta na Máxima 8, onde se fala que não haveria vantagem em proporcionar segurança com relação aos afazeres humanos se as coisas do alto, como os fenômenos celestes e toda sorte de possibilidade de interpretações que eles suscitam, permanecessem como causas de desassossego.

Dessa forma, percebemos que a filosofia epicurista é elaborada tendo em vista encetar na alma do sábio uma convicção firme (pístin bébaion) a respeito da natureza como modelo e espaço para a felicidade do homem. E essa convicção está ligada a uma exigência instrumental, pois “aplicando atentamente esta doutrina, determinaremos corretamente as origens da perturbação e do temor e nos livraremos deles” (DL, X, 82)81. É preciso aplicar, fazer uso do saber, torná-lo praticável. É nesse sentido que a pragmateía pode ser compreendida como a prática de um saber que orienta a vida em torno de uma ética fundamentada na physiología. Estamos falando de uma maneira de conduzir o sábio a experimentar no seu vir a ser o sentido daquilo que ele inteligiu ao perquirir a phýsis. Investigar, meditar e se ocupar por meio de uma práxis em estabelecer, a partir desse saber,

79 ὁ βίος αὐτοῦ πᾶς δι’ ἀπιστίαν συγχυθήσεται καὶ ἀνακεχαιτισμένος ἔσται. 80 (...) ἵνα παρ’ ἑκάστους τῶν καιρῶν ἐν τοῖς κυριωτάτοις βοηθεῖν αὑτοῖς δύνωνται. 81 ἂν γὰρ τούτοις προσέχωμεν, τὸ ὅθεν ὁ τάραχος καὶ ὁ φόβος ἐγίνετο ἐξαιτιολογήσομεν ὀρθῶς καὶ ἀπολύσομεν.

um modo de ser fundamentado na compreensão de um estado de equilíbrio e liberdade presentes na natureza, são atividades que ao mesmo tempo permitem compreender esse aspecto pragmático da filosofia e também remetem para um conhecimento elaborado tendo em vista se estender à ação do sábio sobre o mundo e em prol da própria realização.

Isso nos leva a entender que a pragmateía conduz o sophós a estabelecer com a natureza e com o saber fundamentado nela uma relação específica e fundamental para a compreensão da filosofia epicurista. Ele acredita que a felicidade é possível, que ele tem papel na construção dessa felicidade, porque no exercício de investigar a phýsis, de orientar seu modo de viver para uma forma mais natural, ele experimenta no dia a dia o equilíbrio, o prazer e a liberdade que advêm de se viver dentro dos limites depreendidos dessa compreensão da natureza. A convicção dele é construída ao exercitar esse conhecimento e, com isso, vai percebendo a realização de uma vida agradável na medida em que há o espelhamento desse saber em seu éthos. E aí se verifica o estabelecimento de uma relação que não é de fé, é de confiança; não é adesão a uma concepção fundada nos mitos, é assimilação de um lógos fundamentado no imanente. Quanto mais ele vive em função de uma compreensão ancorada no sensível, mais confia na possibilidade de sua realização. A confiança ou convicção, nesse sentido, está ligada à percepção de que a vida tem sua finalidade nela mesma, na imanência dos fenômenos que a compõem e que definem um sentido para ela; e também está relacionada à compreensão de que a makaríos zên decorre de uma postura ativa e protagonista do homem, que deve fazer da sua existência um exercício de cuidado consigo mesmo.

A pragmateía exercitada como téchnen tiná perí ton bíon enceta a aspháleia que produz na alma essa disposição para cada vez mais se distanciar dos mitos, das opiniões e de concepções que colocam a existência humana como submetida à providência ou à necessidade e distante de sua realização. Se “todo homem sai da vida como se tivesse acabado de nascer” (SV 60)82, essa brevidade da vida (zên), evocada por Epicuro, coloca em relevo a premência de pensar na melhor forma de conduzir nossa realidade histórica. A Sentença 7583 sugere que o tempo pode ser desperdiçado e, diante da proximidade da morte, levar o homem a lamentar “os bens que passaram”. Isso acontece quando se deixa a vida (bíos)84 aos sabores da irracionalidade, da desmesura, ou quando as vontades ligadas às necessidades naturais e

82

Πᾶς ὥσπερ ἄρτι γεγονὼς ἐκ τοῦ ζῆν ἀπέρχεται. Preferimos, por uma questão de clareza, a segunte tradução:

Tout homme sort de la vie comme s’il était juste né (BOLLACK, 1975, p. 525)

83

Εἰς τὰ παρῳχηκότα ἀγαθὰ ἀχάριστος φωνὴ ἡ λέγουσα τέλος ὅρα μακροῦ βίου. É ingrata a voz que diz para os bens que passaram: olha o fim de uma vida longa.

84

necessárias são substituídas por desejos artificialmente criados pela cultura da pólis. Por isso, o sábio deve exercitar a confiança e a disposição para transformar a própria existência e viver segundo seu pensamento.

Nessa perspectiva, a pragmateía direciona o sábio para que medite sobre a natureza, sobre os bens circunscritos aos limites dela e sobre os modos de obtê-los. Isso implica em uma práxis do pensamento que se estende até o campo das ações, das condutas que estabelece no mundo e orientam suas relações sociais, definindo modos de convivência com os outros. A vida sábia é definida por esse trabalho, essa atividade contínua de procurar sempre correlacionar os pensamentos e as ações com um modelo natural de existência. É nessa relação de aproximação entre o pensar e a maneira como se viver que a pragmateía nos aponta para a indissociação entre o saber physiológico e a ética. Ou, em temos mais epicuristas, a finalidade da pragmateía é fazer com que “o pensamento tendo atingido um entendimento racional da finalidade do corpo e seus limites e tendo dissipado os temores relativos à eternidade, proporcione a vida integral”85 (DL, X, 145, XX)86.

No documento O sentido da Pragmateía Epicurista (páginas 144-149)