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3.4 Da pólis ao Kêpos

3.4.3 A philía

O atomismo epicurista vê no desvio atômico a possibilidade de choques que tanto podem afastar outros átomos, e levar ao desagrupamento de corpos, quanto podem resultar na união, por afinidade de tamanho e forma, dando origem a novos corpos ou resultando em aumento de aglomerados já existentes. Essa mesma analogía também norteia a concepção de Epicuro com relação à philía. É em torno da afinidade, do compartilhamento dos mesmos interesses e opiniões que os homens se agrupam. Isso nos remete para a adoção de um referencial physiológico para justificar as relações de amizade. A philía58 para Epicuro é um fenômeno natural que se estabelece meio ao reconhecimento no outro de um acordo no pensar com relação à compreensão da realidade, ao entendimento quanto à finalidade da vida e ao modo como realizá-la:

Pela primeira vez, o princípio que reunia os membros dessa sociedade não era nem religioso, nem social, nem mesmo político. Essa palavra [amizade], desde então, designa outro conceito. Isso é, ela exprime uma relação ética e um comportamento livremente escolhido por homens que se reconhecem iguais e fundam essa igualdade tão somente sobre o fundamento de seu ser individual e de sua comum condição humana. (DIANO, 1976)59

Para Epicuro, a philía é manifestação da natureza e nisso ele ecoa uma tradição já verificada em Empédocles de Agrigento60. Nos versos de sua filosofia trágica61 encontramos a polifonia do pensamento de pré-socráticos que tentaram explicar a totalidade existente

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42, 48, 56, 68, 76, 245 (XL), 261 (XII). 59

DIANO, C.. Épicure: la philosophie du plaisir et la société des amis. Conferência reunida em Études

Philosophiques, 1976, n. 2, p. 173-186 (apud FRAISSE, J-Claude. PHILÍA: La notion d’amitié dans la philosophie antique. Paris: Vrin, 1984. p. 288).

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Segundo doxografia colhida por Diógenes Laércio, teria nascido em Agrigento (Ácragas) na Sicília e vivido por volta de 484 – 424 a.C. Médico e orador, escreveu dois poemas em jônico: Sobre a Natureza e

Purificações. Deles poucos fragmentos foram conservados até nossos dias.

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Para Nietzsche, uma marca da filosofia de Empédocles é o “extraordinário pessimismo, mas um pessimismo

ativo e não quietista”. NIETZSCHE, Friedrich. Preleções sobre a História da Filosofia. Os Pré-Socráticos. São

recorrendo à mesma perspectiva imanente que vai influenciar o pensamento epicurista. No poema Sobre a Natureza (perì physeos), o fogo de Heráclito, a água de Tales, a terra de Xenófanes e ar de Anaxímenes se encontram como ingredientes que vão constituir a phýsis a partir de um movimento provocado - não por uma inteligência, ou por uma divindade62 - mas por um suceder de forças contrárias: o Amor e o Ódio. E isso vai de certa forma moldar, juntamente com a concepção atomística da realidade, a compreensão epicurista a respeito das relações humanas.

Em Empédocles, as referências para pensar esse aspecto partem da mitologia que nos conta que Filotes (Φιλότης) era um ser que personificava a amizade, a afeição, a união. Seu avesso era Neikós (Νεικός) que experimentava sua existência no sentido contrário, provocando a intriga, suscitando o ódio, causando o afastamento. Esses personagens trazem até nós o sentido daquilo que pode se ligar, se agrupar, ou, por outro lado, se desfazer, se separar. Nesse caminho, Filotes e Neikós, ou Amor e Ódio, são pensadas por Empédocles como forças ou e energias de atração e repulsão responsáveis pelo movimento dos elementos constitutivos da realidade. Em dado momento, eles se agrupam, convergem, dando origem à diversidade das coisas, em outro são apartados, desfazendo os enlaces que davam formas aos que se uniam por afinidade. “Estes quatro são tudo o que há, cada um se entranhando no outro / E, ao misturar-se, variedade ao mundo dando” (KRS 355)63. Essas mudanças de estados se produzem por alternância dessas duas forças, num ciclo que se dá desde sempre, acompanhando a eternidade desses elementos.

Com isso, Empédocles postula uma phýsis onde não há nascimento e morte para as coisas, mas processos de transformação que geram, a partir de unidades ou raízes, a multiplicidade, e dessa, por separação, volta-se ao uno. Dos quatros elementos fundamentais (água, fogo, terra e ar), por combinação e agrupamento, engendrados, como dito, pela ação do Amor, dá-se a composição da diversidade do que reside na realidade. No sentido inverso, pela força do Ódio, os compostos se corrompem, liberando seus constituintes básicos, e permitindo que voltem a buscar harmonia na philía com outros semelhantes. Esse contraste dramático embeleza a poesia empedocliana e remete para as questões de vivências de amizades e intrigas, de uniões e afastamentos, de equilíbrio e conflitos, sobre as quais Epicuro tematiza.

Se a philía é compreendida como um movimento natural de aproximação segundo a afinidade, então a amizade não é definida pelas convenções nem por modelos sociais

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Platão, Leis, X, 889 b (DK 31 a 48) 63

KRS 355 (G. S. Kirk / J. E. Raven / M. Schofield). Essa tradução consta em KENNY, Anthony. Uma Nova

organizados. Ela pressupõe liberdade para escolher em função de uma finalidade que é a vida prazerosa. É nas relações estabelecidas a partir de uma vontade livre e sem o interesse de assenhorar a vontade do outro, mas movida por um desejo natural de afinidade e prazer, que o

sophós experimenta uma fonte de satisfação. A importância da amizade na filosofia epicurista

está na sua relação com a realização da felicidade do sábio. Por meio da philía, ele edifica laços que constituem fonte de bem-estar. Eis porque “dentre as coisas que a sabedoria proporciona para a felicidade da vida inteira, a amizade é em muito a maior delas” (SV 13)64.

Essa relação entre amizade e natureza que pode ser verificada nesse estado de bem- estar ou de equilíbrio implica em uma práxis orientada pela conveniência mútua (ophéleia), pois é nela que a amizade tem início (SV 23). Esse aspecto, quando interpretado a partir da noção de um utilitarismo negativo aplicado às relações, pode encetar a equivocada ideia de um uso explorador do outro, o que foge ao escopo ético epicúreo, marcado pela isonomia e pela justiça. Por isso, cabe pensar essa conveniência como um interesse autêntico com relação ao amigo e no sentido de ambos obterem proveito recíproco dessa amizade. Nesse sentido, a

ophéleia nos remete para uma concepção de solidariedade, de correspondência a partir de

interesses semelhantes e compartilhados. Por isso,

A philía e a ophéleia são fenômenos naturais circunscritos ao exercício da conduta humana, porém, do ponto de vista epicúreo, eles só se efetivam segundo condições específicas, que não encontramos em meio a qualquer agregado humano. A sociabilidade humana, enquanto fenômeno natural, não é suficiente para garantir o pleno exercício da philía e da ophéleia (SILVA, 2003, p. 90).

Se o relacionamento com pessoas que nos levam a experimentar sentimentos de equilíbrio e contentamento é uma necessidade natural do homem, então somente vivendo e filosofando entre amigos é possível realizar uma práxis que inscreve a felicidade no modo de viver do sophós. Nesse sentido, as escolhas feitas devem ter em mira essa perspectiva. A

philía deve ser buscada entre aqueles com quem haja acordo no pensar e possibilidade de homología na relação e afinidade de sentimentos. Nesse contexto, é possível desenvolver e

compartilhar um lógos relacionado a um modo de vida de acordo com a natureza.

Meio a isso, outro termo ganha importância em todo esse processo: aspháleia65. Epicuro usa essa palavra no sentido de segurança, proteção, confiança, e se refere à necessidade de ter preservada sua tranquilidade e seu bem-estar. Ele lembra que “alguns homens procuram tornar-se famosos e ilustres, pensando que desse modo garantiriam para si

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Ὧν ἡ σοφία παρασκευάζεται εἰς τὴν τοῦ ὅλου βίου μακαριότητα πολὺ μέγιστόν ἐστιν ἡ τῆς φιλίας κτῆσις. 65

mesmos segurança diante dos homens restantes” (DL, X, 141, VII)66. E que “para conseguir segurança em relação a outros homens, a instituição do poder e da realeza deve ser incluída entre os bens conforme a natureza, sempre que por meio dessa instituição os homens possam obter aquela segurança” (DL, X, 141, VI)67. Ou seja, ele até coloca esses modos de obtenção de segurança como válidos e necessários, mas para quem vive na cidade, meio aos valores e opiniões da pólis. Mas para quem vive em koinonía, no Jardim ou em outra forma de comunidade fundada sobre o princípio da philía, essa segurança resulta de uma postura ética que perpassa todas essas relações. É a amizade que proporciona aspháleia e, com isso, tranquilidade e quietude diante do temor relativo a condutas agressivas e violentas. Isso é, para Epicuro, mais importante que outras formas de proteção buscadas pelos homens para preservar sua paz, porque está ligado à conveniência mútua, ao agir guiado pela sabedoria e dentro dos limites da phýsis.

O que impede ações danosas ao outro não é a norma, mas a convicção de que aquilo também causa mal a quem fez. Trata-se de um princípio ético, realizado de dentro para fora, da alma para a ação. Desse modo, a conduta do sábio é modulada e define uma práxis que busca, preserva e desenvolve a philía e a vida em comunidade. Afinal, o exercício da amizade está relacionado ao da própria felicidade: “de todo os bens que a sabedoria proporciona para produzir a felicidade por toda a vida, o maior, sem comparação, é a conquista da amizade” (DL, X, 148, XXVII)68.

No documento O sentido da Pragmateía Epicurista (páginas 137-140)