• Nenhum resultado encontrado

3 A ADO NA JURISPRUDÊNCIA DO STF

3.4 A ADI 3.682: o entrelaçamento entre ação e omissão

Em maio de 2007, o STF julgou procedente o pedido formulado na ADI 3.682 (BRASIL, 2007c), em julgamento que alguns autores consideram ter revisto o entendimento acolhido naquele leading case. A esse respeito, Walber de Moura Agra (2012) sustenta que, ao fixar prazo para o cumprimento da decisão proferida em tal ação direta, o tribunal haveria consolidado um novo posicionamento sobre a eficácia da ADO; na mesma linha, Pedro Lenza (2012) afirma que o tema foi amplamente revisto pelo STF nesse julgado. Cumpre notar, entretanto, que o prazo estipulado pela corte no julgamento da ADI 3.682 não se revestia de caráter vinculante, razão pela qual sua aposição não é suficiente para configurar a suposta incompatibilidade entre essa decisão e o julgado proferido na MI 107 QO.

Na ação direta mencionada, questionava-se a ausência da lei complementar prevista no artigo 18, § 4º, da Constituição, que deveria definir o período no qual poderia ocorrer a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios. Após destacar a importância da ADO para a concretização da Constituição como um todo, o min. Gilmar Mendes, relator da ADI 3.682, salientou que, não obstante a ausência da lei complementar referida, diversos Municípios foram irregularmente criados por leis estaduais, algumas das quais foram declaradas inconstitucionais pelo STF, ao passo que outras foram mantidas em vigor pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses, diante da consolidação de situações fáticas que não poderiam ser ignoradas. O período estipulado serviria para que a lei complementar faltante fosse editada e os legisladores estaduais pudessem reapreciar o tema a partir dos parâmetros a serem estabelecidos por aquele diploma legal que se tinha em perspectiva.

Assim, tendo em vista o prazo de 24 (vinte e quatro) meses determinado pelo tribunal no julgamento de outras ações diretas, Gilmar Mendes votou pela declaração do estado de mora em que se encontrava o Congresso Nacional, a fim de que este órgão suprisse a omissão verificada no prazo de 18 (dezoito) meses. O próprio ministro relator ressaltou, porém, que não

se tratava “[...] de impor um prazo para a atuação legislativa do Congresso Nacional, mas apenas da fixação de um parâmetro temporal razoável [...]” (BRASIL, 2007c, p. 604, grifo nosso). De modo semelhante, o min. Sepúlveda Pertence afirmou que preferia não se comprometer com o prazo por considerá-lo mero apelo à razoabilidade temporal. Já o min. Marco Aurélio, por considerar que o prazo sugerido seria cogente, manifestou-se contrariamente à sua estipulação.

Como resultado desses debates, a ADI 3.682 foi julgada procedente por unanimidade de votos, tendo constado da ementa do acórdão então proferido o esclarecimento de que o prazo de 18 (dezoito) meses serviria, tão somente, de parâmetro temporal razoável. Ressalte-se, ainda, que o então presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arlindo Chinaglia, questionando os efeitos práticos da decisão proferida na ADI 3.682, enviou ao presidente do STF o Ofício n. 1073/2008/SGM/P (BRASIL, 2014pp), de 02 de setembro de 2008, por meio do qual manifestou sua discordância em relação ao estabelecimento de prazo para o Congresso Nacional exercer sua função precípua, com fundamento no artigo 2º da Constituição. Em resposta, o min. Gilmar Mendes, que presidia o tribunal à época, determinou o envio, ao presidente desse órgão legislativo, de ofício (BRASIL, 2008b) em que se reproduzisse o esclarecimento constante da ementa do acórdão mencionado.

O acórdão prolatado na ADI 3.682 serviu de precedente para a decisão monocrática proferida pelo min. Dias Toffoli no julgamento do pedido de medida cautelar formulado na ADO 24 (BRASIL, 2013b), por meio da qual o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil insurge-se contra a mora legislativa relacionada à elaboração da lei de defesa do usuário de serviços públicos, determinada pelo artigo 27 da Emenda Constitucional n. 19/98. Considerando que referida lei já deveria ter sido editada há mais de uma década, Dias Toffoli deferiu a medida cautelar pleiteada, definindo prazo razoável de 120 (cento e vinte) dias para que as autoridades editassem o diploma mencionado. Salientou, no entanto, que o prazo fixado “[...] não tem por objetivo resultar em interferência desta Corte na esfera de atribuições dos demais Poderes da República. Antes, há de expressar como que um apelo ao Legislador para que supra a omissão inconstitucional [...]” (BRASIL, 2013b). Ademais, o ministro rejeitou o pedido de cautelar na parte em que o requerente pedia a aplicação subsidiária e provisória da Lei n. 8.078/90, explicitando, desse modo, o tratamento diferenciado atribuído pela atual jurisprudência do STF aos institutos da ADO e do MI.

Ainda a respeito da eficácia produzida por decisão proferida na ADO, deve-se mencionar o julgamento conjunto das ADIs 875, 1.987, 2.727 e 3.243, realizado em fevereiro de 2010 (BRASIL, 2011). Tais ações possuíam objetos que, embora fossem diversos entre si,

estavam imbricados por relação de conexão: todas relacionavam-se à regulamentação do artigo 161, inciso II, da Constituição, o qual exige a edição de lei complementar que estabeleça os critérios de rateio dos recursos componentes do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal.

Conforme relatado pelo min. Gilmar Mendes, a ADI 1.987 foi ajuizada como ação direta por omissão, tendo por objeto a inércia do Congresso Nacional em regulamentar o mencionado artigo 161, inciso II, da Constituição. De acordo com as autoridades que ajuizaram essa ação, a Lei Complementar n. 62/89, editada a pretexto de regulamentar referida disposição constitucional, seria inadequada para cumprir tal desiderato, uma vez que haveria fixado critérios de rateio em caráter provisório e de forma arbitrária, os quais não atenderiam à finalidade de redistribuição de recursos que inspirara a criação do fundo mencionado. Em vista disso, sustentaram que, até o momento em que fora ajuizada a ação direta, os critérios de rateio justos e objetivos exigidos pela Constituição nunca haviam sido fixados, o que caracterizaria situação de omissão inconstitucional.

Já as ADIs 875, 2.727 e 3.243 destinavam-se, por razões semelhantes às alegadas na petição inicial da ADI 1.987, à impugnação de dispositivos da própria Lei Complementar n. 62/89. Desse modo, tratava-se, em princípio, de ações diretas de inconstitucionalidade por ação. O relator das ações diretas mencionadas, min. Gilmar Mendes, na tentativa de delimitar o objeto dessas causas, observou a similitude entre os pedidos e causas de pedir nelas formulados, não obstante a caracterização de apenas uma delas como sendo ação direta por omissão. Notou, então, que todas essas ações envolviam questão de inconstitucionalidade por omissão parcial, consistente na insuficiência da Lei Complementar n. 62/89 para a regulamentação adequada do artigo 161, inciso II, da Constituição. Isso explica a dificuldade enfrentada pelo ministro ao buscar distinguir, entre si, os objetos das ações diretas mencionadas, pois a declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial do legislador contém a declaração da inconstitucionalidade de uma norma legal. Diante disso, Gilmar Mendes passou a considerar, como sendo o objeto das ADIs 875, 1.987, 2.727 e 3.243, o artigo 2º, incisos I e II, e §§ 1º, 2º e 3º, bem como o Anexo Único da Lei Complementar n. 62/89, os quais, a seu ver, seriam inconstitucionais por não atenderem satisfatoriamente à exigência constante do artigo 161, inciso II, da Constituição.

O ministro argumentou, entretanto, que, apesar de não satisfazer integralmente o comando contido nesse dispositivo constitucional, a imediata supressão do referido diploma legal do ordenamento jurídico implicaria elevado prejuízo ao interesse público e à economia dos Estados-membros, uma vez que a ausência de qualquer critério de rateio poderia

inviabilizar, por completo, as transferências de recursos do Fundo de Participação dos Estados. Assim, entendeu que o princípio da nulidade da lei inconstitucional deveria ceder, no caso concreto, diante do princípio da segurança jurídica, o qual exigia a aplicação provisória das normas consideradas como inválidas. Em conclusão, o STF, por maioria e nos termos do voto do min. Gilmar Mendes, decidiu pela declaração da inconstitucionalidade, sem a pronúncia de nulidade, do artigo 2º, incisos I e II, e §§ 1º, 2º e 3º, bem como do Anexo Único da Lei Complementar n. 62/89, assegurada sua aplicação até o dia 31 de dezembro de 2012.

O descumprimento desse prazo estipulado pelo tribunal ensejou o ajuizamento de nova ação direta, qual seja, a ADO 23 (BRASIL, 2014ss), por meio da qual os governadores dos Estados da Bahia, Maranhão, Minas Gerais e Pernambuco pleitearam a concessão de medida cautelar que mantivesse, provisoriamente, a vigência das normas declaradas inconstitucionais no julgamento das ADIs 875, 1.987, 2.727 e 3.243, até que o Congresso Nacional adotasse as providências necessárias para disciplinar adequadamente a matéria. Esse pedido foi atendido por decisão monocrática proferida em 24 de janeiro de 2013 pelo min. Ricardo Lewandowski, que, no exercício da presidência do tribunal, postergou a aplicação dos critérios de rateio anteriormente vigentes por mais 150 (cento e cinquenta) dias, contados da intimação dessa decisão. Finalmente, a ADO 23 foi julgada prejudicada em razão da superveniência da Lei Complementar n. 143/13, editada em atendimento ao dever de legislar imposto pelo artigo 161, inciso II, da Constituição.

Pelo exposto, constata-se que, em relação aos efeitos produzidos por estes institutos, a jurisprudência do STF não mais equipara a ADO e o MI. Nota-se, igualmente, que o entendimento acolhido pela corte mantém-se em consonância com a decisão tomada pela Assembleia Constituinte de 1987-1988 no sentido de restringir a eficácia da ADO à mera cientificação da autoridade ou órgão responsável pela omissão. De fato, o STF, até o momento, não utilizou o instituto em exame para suprir, por ato próprio, a omissão verificada com um regramento novo; nem para encaminhar projeto de ato normativo de sua autoria ou para impor sanção à autoridade ou órgão omisso; bem como não se valeu da ADO para fixar prazo peremptório em que alguma omissão legislativa devesse ser obrigatoriamente sanada. Todas essas hipóteses de providências jurisdicionais foram debatidas e rejeitadas pela Assembleia Nacional Constituinte a respeito da ADO.

Por outro lado, a análise da jurisprudência do STF revela que o tribunal tende a expandir sua intervenção sobre atribuições constitucionalmente conferidas aos Poderes Executivo e Legislativo. Essa tendência também atinge a ADO, ainda que de forma mais gradual e lenta em comparação ao MI. O descompasso observado entre as evoluções jurisprudenciais dos institutos

mencionados é propiciado pela diferenciada estrutura normativa conferida a cada um deles pela Constituição: ao tempo que fixa, explícita e exaustivamente, os efeitos decorrentes do julgamento da ADO, o texto constitucional é silente quanto à eficácia a ser produzida pelo MI. A literalidade do artigo 103, § 2º, da Constituição, que tem por objeto a ADO e somente se aplicava ao MI por interpretação sistemática, permanece servindo de óbice para que se submeta a ADO a um trânsito jurisprudencial similar ao observado em relação ao MI, cuja interpretação passou a ser balizada por elementos teleológicos típicos da jurisprudência sociológica do final do século XIX (COSTA, 2014).