• Nenhum resultado encontrado

6 ANÁLISE CRÍTICA E CONSIDERAÇÕES FINAIS

6.4 Jurisdição e interesses corporativos

Resta, ainda, uma crítica a ser formulada a respeito da argumentação pertinente à suposta natureza jurídica do Poder Judiciário, característica que o distinguiria dos Poderes Executivo e Legislativo, os quais seriam revestidos de natureza política. Referida diferenciação é frequentemente fundamentada pela doutrina jurídica analisada a partir de considerações a respeito dos tipos de interesses que dirigem, influenciam ou constrangem a atuação dos membros dos Poderes estatais: ao passo que o Poder Judiciário seria o guardião dos interesses permanentes da República e da esfera de direitos em face dos conchavos e controvérsias políticos, os Poderes Executivo e Legislativo atuariam para promover interesses políticos conjunturais ou eventuais de indivíduos ou grupos específicos.

27 La función judicial se debería limitar a ejecutar la decisión política y no extenderse a las otras dos funciones,

esto es, a la toma de la decisión política y al centro político. Esto fue la concepción originaria de Montesquieu. Diversos párrafos, llenos de énfasis, del Esprit des lois (libro 11, capítulo 6) dejan fuera de duda que Montesquieu consideró al poder judicial sometido estrictamente al gobierno y a la asamblea, como una simple rama subordinada de la ejecución legislativa, y únicamente como un «poder» separado en el sentido de que la actividad judicial está ejercida por autoridades o personas especiales. [...]

Sin embargo, desde el siglo XVIII la función judicial ha experimentado uma transformación radical. [...] Uno de los fenómenos más característicos en la evolución del Estado democrático constitucional es el ascenso del poder judicial a la categoría de auténtico tercer detentador del poder.

A título de exemplo, note-se que José Afonso da Silva28 (1988, p. 53) descreve a tradicional desconfiança em relação ao Poder Legislativo e a primazia política do Poder Executivo como sendo elementos arraigados da cultura brasileira, bem como sustenta que “[...] o sistema de representação proporcional está assumindo, cada vez mais entre nós, as características de uma representação de interesse, de feição corporativa”; Clèmerson Merlin Clève, a seu turno, assevera que o Poder Judiciário é o juiz dos interesses permanentes da República (CLÈVE, 2003), o protetor da “[...] maioria permanente (Constituinte) contra a atuação desconforme da maioria eventual, conjuntural e temporária (legislatura)” (CLÈVE, 2012, p. 25); por sua vez, Anna Cândida da Cunha Ferraz (FERRAZ; ALMEIDA, 2010, p. 63), ao defender a possibilidade do controle judicial sobre a atividade política, utiliza como fundamento “[...] a crise ética sem precedentes que vem conhecendo a representação política [...]: a ação política dos representantes, tanto no Executivo, como no Legislativo, não mais se coaduna com os padrões morais, com a ideia de Direito e de Justiça [...]”; já Uadi Lammêgo Bulos (2012b) entende que o controle de constitucionalidade deve proteger a esfera de direitos das injunções e conchavos políticos, ao passo que Zeno Veloso (2003) aduz que o Poder Judiciário deve permanecer imune e acima das controvérsias políticas.

Considerações semelhantes às descritas também são corriqueiras, segundo Jeremy Waldron (2003), nos trabalhos de juristas norte-americanos, que costumam combinar um retrato idealizado da atividade jurisdicional com uma descrição negativa da atividade legislativa para conferir credibilidade à ideia de revisão judicial da legislação. Seguem as palavras do autor mencionado sobre o assunto:

[...] a nossa jurisprudência está repleta de imagens que apresentam a atividade legislativa comum como negociata, troca de favores, manobras de assistência mútua, intriga por interesses e procedimentos eleitoreiros – na verdade, como qualquer coisa, menos decisão política com princípios. E há razão para isso. Pintamos a legislação com essas cores soturnas para dar credibilidade à idéia de revisão judicial (isto é, revisão judicial da legislação, sob a autoridade de uma carta de direitos) e ao silêncio que, de outra maneira, seria o nosso embaraço quanto às dificuldades democráticas ou “contramajoritárias” que, às vezes, pensamos que a revisão judicial implica.

Construímos, então, um retrato idealizado do julgar e o emolduramos junto com o retrato de má fama do legislar. (WALDRON, 2003, p. 2).

28 O autor não desconsidera que a prática de concessão de privilégios a grupos corporativistas também pode ser

observada no Poder Judiciário, mas não deixa, por outro lado, de manifestar sua especial desconfiança em relação aos Poderes Executivo e Legislativo, o que se concilia com sua argumentação pelo deferimento de poderes adicionais ao STF quanto ao controle da inconstitucionalidade por omissão.

Embora Jeremy Waldron não tenha elaborado esse diagnóstico a partir de exame sobre a doutrina jurídica brasileira, as afirmações transcritas podem ser apropriadas para a descrição da postura argumentativa adotada por diversos dos constitucionalistas mencionados no Capítulo 4. Ressalte-se, aliás, que, no próprio julgamento da MI 107 QO (BRASIL, 1990), o então min. Sepúlveda Pertence criticou a tendência dos doutrinadores brasileiros de presumir a deslealdade dos “Poderes políticos” quanto ao cumprimento de seus deveres constitucionais e de, por essa razão, confiar ao Poder Judiciário a missão de solucionar, mediante a utilização de instrumentos jurídicos, todos os problemas relacionados à efetividade das normas constitucionais.

Em síntese, observa-se que tais juristas valem-se de pressuposições teóricas atinentes à natureza dos Poderes estatais para estabelecer diferenciação quanto à credibilidade que cada um deles merece no que diz respeito ao seu comprometimento em conferir efetividade à Constituição. O problema é que, ao vincularem a conclusão sobre o tipo de interesse promovido ou assegurado por determinado Poder a considerações relacionadas à sua natureza, os autores deixam de analisar a atuação concreta dos órgãos constitucionais, o que seria necessário para fundamentar adequadamente sua alegação de que os três Poderes estatais diferenciam-se nesse aspecto.

A esse respeito, note-se que, em sua investigação acerca do guardião da Constituição de Weimar, Carl Schmitt (2007) teve como preocupação básica a identificação de uma instância independente da negociação político-partidária e que pudesse defender a unidade do povo como uma totalidade política. Embora sejam questionáveis tanto a conclusão por ele obtida, como o cumprimento de seu propósito de não apresentar a própria concepção como apolítica, importa ressaltar que Carl Schmitt não compreendeu o parlamento, os tribunais e o chefe de Estado como necessária ou naturalmente predispostos à promoção ou defesa de determinados tipos de interesses, mas buscou descrevê-los de forma contextualizada, levando em conta as características que apresentavam na situação concreta com que se deparava o autor.

De fato, o autor referido assevera que, no século XIX, quando se concebiam o Estado e a sociedade como sendo independentes e em oposição entre si, confiava-se ao parlamento, como representante do povo ou da sociedade diante do Estado monárquico, a condição de verdadeiro guardião e garantidor da Constituição. Essa situação política e social foi, segundo Schmitt, totalmente modificada no século XX, em que o parlamento alemão, de cenário da livre negociação transformadora de interesses partidários em uma vontade unitária, tornou-se o centro da repartição pluralista da unidade estatal em organizações sociais rígidas e estreitamente vinculadas às suas clientelas. Em outros termos, o parlamento converteu-se em ameaça à unidade estatal e em esfera dos interesses pluralistas. A partir de então é que, de acordo com

Schmitt (2007, p. 5), o guardião da Constituição passou a ser procurado na esfera da justiça, sob forte influência do que mencionado autor denominou criticamente de “[...] tendência dos ‘juristas da justiça’ para transferir a solução de todos os problemas simplesmente para um processo judicial [...]”, por considerarem como justiça tudo o que seja feito por uma autoridade judicial.

Nota-se, portanto, que Carl Schmitt oferece fundamentos para a crítica das construções teóricas que retratam os órgãos constitucionais como sendo essencialmente vinculados a interesses de tipos determinados. De fato, a relevância argumentativa de semelhantes construções abstratas deve ser relativizada em consideração aos dados empíricos relacionados à atuação concreta dos órgãos estatais.

É evidente que a presente pesquisa, por ser restrita ao exame do instituto da ADO, não se propõe a apresentar inferências descritivas de caráter amplo a respeito da atividade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não obstante, dos elementos concretos apresentados no Capítulo 5, extraem-se exemplos dos tipos de interesses que têm sido assegurados e promovidos pelo STF, os quais, ainda que não sejam suficientes a embasar conclusões abrangentes acerca de toda a atividade desse tribunal, podem ser utilizados para desafiar as afirmações teóricas e generalizantes da doutrina examinada.

Antes, porém, de retomar os elementos empíricos, é interessante ressaltar que, no ano de 1997, em discurso realizado por ocasião de sua posse na presidência do STF, o min. Celso de Mello, que hoje é o decano dessa corte, optou por proferir afirmação tendente a descrever a situação concreta em que se encontrava o Poder Judiciário à época, em vez de desconsiderá-la em vista de sua suposta natureza jurídica e imparcial. Sustentou, em tal ocasião, a necessidade de reconstrução institucional do Poder Judiciário como um fator de ruptura com as práticas de favorecimento a “[...] uma inaceitável abordagem estritamente corporativa e marcadamente estamental da questão concernente à administração da justiça [...]” (BRASIL, 1999, p. 21).

A percepção manifestada pelo min. Celso de Mello encontra respaldo nos dados levantados ao longo desta pesquisa, os quais revelam que a ADO tem sido especialmente efetiva na proteção de interesses de grupos corporativos. Embora não possam ser atribuídos com exclusividade ao STF, a atuação dessa corte tem contribuído para os resultados diferenciados que se observam em relação a esse tipo de interesse.

A propósito, notou-se que 80 (oitenta) ações diretas por omissão foram ajuizadas com o objetivo de defender interesses corporativos, quantitativo que corresponde a 2/3 (dois terços) do total de 120 (cento e vinte) causas analisadas. A prevalência de ações destinadas à defesa de tais interesses não deriva, unicamente, da preferência dos legitimados ao seu ajuizamento por

esse tipo de objeto, visto que sua escolha é limitada e influenciada pelas decisões do STF. De fato, além da atuação insatisfatória dos “legitimados universais”, que não contribuem como se esperava29 para a diversificação dos temas submetidos à apreciação do STF, os denominados “legitimados especiais” têm sua atuação conduzida, por esse tribunal, à impugnação exclusiva de inconstitucionalidades relacionadas aos interesses das categorias que representam, uma vez que se submetem, desde os anos iniciais de vigência da Constituição de 1988 (BRASIL, 1993), ao requisito jurisprudencial da “pertinência temática”.

A aplicação desse requisito não é, entretanto, a única maneira pela qual o STF contribui para o percentual exacerbado de ações diretas por omissão voltadas à promoção de interesses corporativos. O resultado do julgamento dessas causas, em que se observa a diferenciada receptividade do tribunal às demandas corporativas, constitui fator de desestímulo ao ajuizamento de ações relacionadas a interesses de outros tipos. A esse respeito, reitere-se que nenhuma das ações diretas por omissão julgadas total ou parcialmente procedentes destinavam- se à defesa de interesses transversais ou de minorias, o que se revela especialmente frustrante diante do entusiasmo demonstrado por diversos constituintes que apoiaram a proposta de criação da ADO durante a Assembleia de 1987-1988, bem como contraria a finalidade atribuída ao instituto pela maioria dos doutrinadores analisados no Capítulo 4. Foram 34 (trinta e quatro) as causas em que se decidiu pela procedência total ou parcial do pedido do requerente, das quais 29 (vinte e nove) versavam sobre interesses corporativos e 5 (cinco) sobre interesses institucionais do Estado.

Ademais, a demora do STF em julgar o mérito das ações diretas por omissão tem afetado, de modo especial, as causas relacionadas à defesa de interesses considerados como transversais ou de minorias em comparação às destinadas à promoção ou tutela de interesses corporativos. Em divergência ao padrão de ajuizamento de ações diretas por omissão, em que se verifica a destacada prevalência de causas vinculadas à proteção de interesses corporativos, notou-se que, em relação ao total de causas que foram julgadas prejudicadas em decorrência da demora do STF, o quantitativo de ações voltadas à defesa de interesses transversais ou de minorias supera o número daquelas relativas a interesses corporativos.

Desse modo, constata-se que, se a ADO não atinge, adequadamente, os objetivos que justificaram sua instituição, isso não ocorre pelo motivo reiteradamente mencionado pela doutrina constitucionalista brasileira, qual seja, a ausência de atribuição de poderes mais

29 Como visto anteriormente, diversos constituintes e juristas ressaltaram a relevância para a defesa de direitos

fundamentais, inclusive os de caráter social e de grupos minoritários, da ampliação do rol de legitimados ao ajuizamento da ADI.

intensos ou ativos ao STF. De fato, não é por essa razão que o instituto em exame somente exerce satisfatoriamente a função a que se predispõe quanto à defesa de interesses corporativos, mas por fatores diversos, dentre os quais se destacam a atuação insatisfatória dos legitimados ao ajuizamento da ADO e a especial receptividade do STF aos temas de interesse corporativo.

Deve-se ressaltar que a utilização da ADO para a defesa ou promoção de interesses corporativos não é, em si, um problema. Pelo contrário, diversos interesses desse tipo são protegidos por disposições constitucionais desvestidas de aplicabilidade imediata (SILVA, 2012), a cuja concretização a ADO se destina a contribuir. Aliás, a questão da omissão inconstitucional adquiriu relevo no contexto de transição entre Estado Liberal e Social, sendo que este se caracteriza, inclusive, por sua marcada vinculação ao influxo de organizações sociais destinadas à defesa de interesses parciais ou setoriais (GARCÍA-PELAYO, 2009). O problema está, em verdade, na ausência de contribuição satisfatória para a defesa ou promoção de interesses de outros tipos, ou seja, na defesa ou promoção praticamente exclusiva de interesses corporativos, e agrava-se, ainda, pelo fato de que a grande maioria das ações ajuizadas, bem como das ações julgadas total ou parcialmente procedentes, relaciona-se a interesses de um único grupo, formado pelos servidores públicos, do qual fazem parte os próprios magistrados.

Com efeito, das 120 (cento e vinte) ações ajuizadas, 70 (setenta) têm por objeto questões de interesse dos servidores públicos, das quais 60 (sessenta) dizem respeito, exclusivamente, a aspectos remuneratórios de seu vínculo com o Estado. Ademais, das 34 (trinta e quatro) ações julgadas total ou parcialmente procedentes, 29 (vinte e nove) eram pertinentes a interesses desse grupo, sendo 27 (vinte e sete) delas relativas a questões remuneratórias.

Diante disso, observa-se que os dados empíricos relatados constituem argumento contrário à alegação doutrinária de que o Poder Judiciário se distingue dos “Poderes políticos” por se manter afastado dos conchavos e controvérsias políticos, bem como por não atuar para a promoção de interesses políticos conjunturais ou eventuais de indivíduos ou grupos específicos, o que justificaria a intensificação da intervenção exercível pelo STF em sede de ADO.