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6 ANÁLISE CRÍTICA E CONSIDERAÇÕES FINAIS

6.1 O falso diagnóstico de inutilidade da ADO

A presente pesquisa partiu da seguinte hipótese: a concepção doutrinária de que a ADO seria incapaz de concretizar os fins a que se destina em razão de sua conformação constitucional, a qual restringe seus efeitos à mera cientificação do Poder competente acerca da omissão verificada, não encontra respaldo nos elementos empíricos que retratam os resultados da utilização do instituto desde 1988. A avaliação dessa hipótese exige uma análise comparativa entre as posições teóricas descritas nos capítulos iniciais e o panorama evidenciado pela pesquisa empírica apresentada no último capítulo, e esta avaliação sugere que o posicionamento típico da doutrina não leva em conta os dados empíricos, mas pressupõe, a partir de considerações meramente teóricas, que a impossibilidade de o Poder Judiciário desempenhar, por meio da ADO, uma intervenção mais intensa no exercício das atribuições conferidas aos demais Poderes estatais seria a causa da inefetividade do instituto.

Esta seção destina-se, primordialmente, à análise crítica da concepção doutrinária mencionada, a qual, além de testada empiricamente, mediante sua confrontação com os resultados empíricos obtidos e as inferências que deles podem ser extraídas, também é contestada a partir de elementos teóricos depreendidos, especialmente, do debate travado entre Hans Kelsen (2007) e Carl Schmitt (2007) acerca de quem deve ser o guardião da Constituição. Na realização do exame proposto, considera-se, também, o entendimento sustentado por membros da Assembleia Constituinte de 1987-1988 e do STF acerca de questões pertinentes à ADO, notadamente no que diz respeito aos efeitos da decisão de procedência proferida em seu julgamento, à sua efetividade para a tutela de direitos e interesses de diferentes tipos e à natureza do órgão competente para o seu julgamento.

No capítulo dedicado a retratar o entendimento da doutrina jurídica brasileira a respeito da ADO, observou-se que a quase totalidade dos autores consultados defende a necessidade da superação do precedente fixado no julgamento da MI 107 QO (BRASIL, 1990), em que o STF concluiu que a decisão de procedência proferida em ações dessa espécie deve limitar-se a declarar a ocorrência da omissão inconstitucional verificada e a cientificar o órgão ou a autoridade responsável. As argumentações utilizadas pelos juristas mencionados para sustentar

sua conclusão podem ser simplificadas nas duas alegações descritas a seguir24: a limitação dos efeitos produzidos pela ADO à declaração da omissão verificada e à cientificação do responsável por sua ocorrência torna o instituto de efetividade baixa ou praticamente irrelevante; deve-se permitir a aplicação de medidas diversas das expressamente previstas no artigo 103, § 2º, da Constituição pelo tribunal competente para julgar a ADO em razão da sua natureza imparcial, técnica ou jurídica, não sendo recomendável relegar o suprimento da omissão inconstitucional à discricionariedade dos órgãos políticos omissos, de cujo comprometimento em cumprir a Constituição se desconfia.

Quanto ao primeiro dos argumentos referenciados, observa-se que se trata de afirmação desprovida de embasamento empírico e que contraria as constatações obtidas a partir dos dados levantados e apresentados no capítulo anterior. Como visto, embora tenham adotado o entendimento fixado na MI 107 QO (BRASIL, 1990), praticamente todas as decisões de procedência integral proferidas em sede de ADO até dezembro de 2013 foram cumpridas pelos órgãos considerados como omissos em prazo médio de, aproximadamente, 3 (três) anos, contados da data do julgamento respectivo. Por sua vez, das 27 (vinte e sete) decisões de procedência parcial prolatadas em ações dessa espécie, todas relacionadas ao cumprimento do dever de revisão geral anual das remunerações dos servidores públicos, 5 (cinco) foram cumpridas em período inferior a 1 (um) ano, ao passo que outras 19 (dezenove) contribuíram para que as autoridades omissas mudassem de postura, passando a editar, regularmente, leis concessivas de revisões e reajustes, destinadas a atender, ainda que de modo progressivo, ao disposto pelo artigo 37, inciso X, da Constituição. Além disso, a mera propositura de ação direta por omissão foi suficiente, em 20 (vinte) casos, para provocar a edição dos atos faltantes em período médio inferior a 10 (dez) meses, contados do ajuizamento da causa. Isso tudo ocorreu independentemente da fixação, pelo STF, de prazo a ser obrigatoriamente observado pelas autoridades omissas ou de qualquer espécie de sanção pelo eventual descumprimento das decisões do tribunal.

Desse modo, nota-se que os resultados produzidos pelo instituto não são adequadamente retratados pelas afirmações doutrinárias de que a ADO não prosperou (FERREIRA, 1996), é praticamente inútil (BASTOS; MARTINS, 2000; SILVA, 2011a) ou minimamente eficaz (FERRAZ, 2004), carece de efetividade (CLÈVE, 2012), encontra-se em estado letárgico (MENDES; BRANCO, 2012) e tem sido letra morta (FERREIRA FILHO, 2007), posto que de

24 Ressalte-se que os dois argumentos descritos não são utilizados ou compartilhados por todos os autores que

“nada adianta cientificar o Poder Legislativo que existem normas constitucionais dependendo de regulamentação” (BULOS, 2012a, p. 1119).

A inveracidade de semelhantes afirmações doutrinárias não as impediu, no entanto, de motivar ou justificar a ocorrência de alterações legislativas e jurisprudenciais tendentes a modificar os efeitos decorrentes da decisão de procedência proferida em sede de ADO. Com essa finalidade, editou-se a Lei n. 12.063/09, que, como visto, atribuiu “[...] ao Supremo Tribunal a tarefa de conceber providência adequada a tutelar a situação jurídica controvertida” (MENDES, 2012, p. 414). Esse diploma legal foi editado em decorrência da aprovação do Projeto de Lei n. 2.277/07, de autoria do então deputado federal Flávio Dino (2014, p. 4), segundo o qual sua proposta se originara de sugestão feita por Gilmar Ferreira Mendes em vista da suposta necessidade de “[...] melhor concretizar a vontade constitucional registrada no artigo 103, §2º da Carta de 1988”. Durante sua tramitação perante a Câmara dos Deputados, a proposição recebeu parecer favorável do relator da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (BRASIL, 2014qq), o então deputado Regis de Oliveira, que citou o entendimento de José Afonso da Silva no sentido da possibilidade de a decisão proferida em ADO ser ineficaz, bem como considerou como um avanço o acórdão prolatado na ADI 3.682 (BRASIL, 2007c), em que o STF, sob a relatoria do min. Gilmar Mendes, fixara prazo como parâmetro para o suprimento de omissão inconstitucional.

Medida semelhante foi adotada pelo min. Dias Toffoli em decisão monocrática proferida na ADO 24 (BRASIL, 2013b), por meio da qual deferiu o pedido de medida cautelar formulado pelo requerente e definiu o prazo de 120 (cento e vinte) dias como parâmetro para que a omissão constatada fosse sanada. Ademais, a tendência de superação do entendimento fixado na MI 107 QO revelou-se, também, no julgamento conjunto das ADIs 875, 1.987, 2.727 e 3.243 (BRASIL, 2011), em que prevaleceu a proposta apresentada pelo min. Gilmar Mendes no sentido de que as normas declaradas inconstitucionais por omissão parcial fossem provisoriamente mantidas em vigor, embora não houvesse previsão constitucional expressa a permitir a determinação de semelhante providência de caráter positivo. A aplicabilidade das normas declaradas inconstitucionais no julgamento das referidas ADIs 875, 1.987, 2.727 e 3.243 foi postergada, ainda, por decisão monocrática proferida pelo min. Ricardo Lewandowski na ADO 23 (BRASIL, 2014ss).

Observa-se, pois, que, embora o STF não atribua à ADO os efeitos mais amplos propostos pela doutrina e permaneça conferindo-lhe interpretação distinta da concedida ao Mandado de Injunção, o entendimento doutrinário prevalecente a respeito da matéria tem sido utilizado pelo legislador federal e pelo próprio STF para justificar a reaproximação entre tais

institutos quanto aos efeitos por eles produzidos, em tendência de expansão dos poderes e da intervenção exercidos pelo tribunal sobre atribuições constitucionalmente conferidas a outros órgãos constitucionais.