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3 A ADO NA JURISPRUDÊNCIA DO STF

3.2 O primeiro leading case: a Questão de Ordem no Mandado de Injunção

Ainda em 1989, o STF enfrentou a questão relativa aos efeitos decorrentes da decisão que julga procedente o pedido veiculado em ADO. No MI 107, o tribunal enfrentava a questão da autoaplicabilidade do artigo 5º, inciso LXXI, da Constituição, em cujos termos “conceder- se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” (BRASIL, 1988i), e o relator min. Moreira Alves considerou ser previamente necessário definir a “natureza jurídica” do MI, sem o que seria impossível avaliar adequadamente seus efeitos. Foi, então, suscitada questão de ordem no MI 107 (BRASIL,

1990), na qual o debate dos ministros acerca das características e da eficácia do MI exigiu uma análise também das características da ADO.

A MI 107 QO foi decidida, por unanimidade, nos termos do voto proferido pelo relator, que ressaltou o fato de a Constituição não conter preceito expresso a respeito da natureza do MI e dos efeitos da providência jurisdicional dele decorrente, bem como propôs uma solução que avaliou as duas posições sustentadas, à época, acerca dessas questões. De acordo com a primeira delas, o MI destinar-se-ia a propiciar uma decisão que declarasse a ocorrência da omissão inconstitucional, a fim de que a entidade, autoridade ou órgão omisso adotasse as providências necessárias à sua eliminação. Já a segunda posição era no sentido de que uma decisão de procedência em MI deveria ser uma sentença constitutiva em favor do autor, que veiculasse a regulamentação necessária para o exercício do direito, liberdade ou prerrogativa mencionados no inciso LXXI do artigo 5º da Constituição.

Segundo Moreira Alves, a segunda orientação possuía algumas variantes. A primeira decorria de uma divergência relativamente ao momento em que deveria ser aplicada a regulamentação veiculada pela decisão: enquanto alguns juristas defendiam que o MI deveria ordenar ao réu que aplicasse ao autor as regras definidas no MI, outros sustentavam que o MI deveria ter um caráter constitutivo (regulando a matéria), mas não mandamental (ordenando o imediato cumprimento). A segunda variante se referia aos limites da eficácia do julgado proferido: debatia-se se a regulamentação expedida teria eficácia restrita às partes do processo ou se ela seria extensível a todas as pessoas em situação idêntica à do impetrante.

Ao avaliar qual dessas orientações era compatível com os dispositivos constitucionais relacionados ao MI, Moreira Alves rejeitou a tese de que somente decisões de natureza constitutiva seriam capazes de viabilizar o exercício de direitos limitados pela omissão impugnada porque a mera cientificação da autoridade omissa, sem qualquer sanção, não combateria eficazmente a inércia. No entendimento de Moreira Alves, esse argumento era insubsistente por três motivos:

a) Limitação constitucional do âmbito possível de regulação. Mesmo que permitisse ao Poder Judiciário expedir normas regulamentadoras, a Constituição não permitia desrespeitar as regras financeiras e orçamentárias ou alterar a definição de políticas e estratégias de melhor aplicação de dinheiros públicos. Portanto, estaria fora do campo regulável pelo STF a maior parte dos casos de omissão existentes, cuja supressão dependeria da organização prévia de serviços ou da alocação específica de recursos públicos;

b) Falta de condições técnicas para a regulação judicial. Em diversas hipóteses, o órgão do Poder Judiciário competente para julgar o MI não possuiria condições técnicas para expedir a regulamentação necessária;

c) Sistemática constitucional. A Constituição não permite ao Poder Judiciário regulamentar dispositivo constitucional sequer por meio da ADO, que possui natureza abstrata e destina-se a produzir eficácia erga omnes. Assim, com maior razão, tal providência de caráter constitutivo seria inviável em sede de MI, sob pena de afronta aos princípios da separação de Poderes e da legalidade, previstos, respectivamente, pelos artigos 2º e 5º, inciso II, da Constituição.

Foi na análise desse último argumento que o tribunal avaliou, pela primeira vez, as características e efeitos da ADO, fixando diretrizes que interessam diretamente ao presente estudo. Especificamente quanto à ADO, Moreira Alves indicou que a providência jurisdicional decorrente de seu julgamento deveria possuir eficácia meramente declaratória e mandamental, restringindo-se a declarar a ocorrência da omissão inconstitucional verificada e a cientificar o órgão ou autoridade responsável. As justificativas utilizadas para fundamentar seu entendimento foram três (BRASIL, 1990, p. 34):

a) A impossibilidade de expedição de regulamentação normativa pelo STF em sede de ADO decorreria do próprio texto constitucional, o qual conteria vedação expressa nesse sentido;

b) Nos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, verificar-se-ia, “[...] claramente, que não se deu ao Supremo Tribunal Federal [...] o poder de legislar, ainda que provisoriamente, na ação direta de inconstitucionalidade por omissão [...]”;

c) A interpretação por proposta “[...] é, sem dúvida alguma, a que se compatibiliza com o sistema constitucional vigente [...]”, tendo em vista, especialmente, os referidos princípios da separação de Poderes e da legalidade.

De acordo com Moreira Alves, todos os elementos de interpretação que poderiam ser extraídos dos textos constitucionais pertinentes ao instituto em exame conduziriam à interpretação por ele defendida. A Constituição teria partido “[...] da premissa de que, com a procedência da ação direta [...], o Poder competente, declarada a inconstitucionalidade de sua omissão, não persistirá em sua atitude omissa” (BRASIL, 1990, p. 38), o que, a seu ver, seria

razão suficiente para concluir que a eficácia declaratória e mandamental é constitucionalmente satisfatória para a ADO.

O voto condutor do acórdão proferido no julgamento da MI 107 QO (BRASIL, 1990) utilizou-se da abordagem hermenêutica tradicional ao reconhecer a presença de uma lacuna que impedia a realização de uma interpretação literal (que seria suficiente para o tratamento dos efeitos da ADO) e suprir esse problema mediante uma combinação de elementos teleológicos baseados na “vontade do legislador” e de elementos sistemáticos baseados no cotejo entre institutos similares (no caso, MI e ADO). Embora não se fale explicitamente em “lacuna”, que naquele momento já era uma argumentação pouco usual no âmbito da dogmática constitucional, é sintomático que os argumentos utilizados para enfrentar a questão dos efeitos sejam justamente aqueles empregados para lidar com as lacunas pela Escola da Exegese e pela Jurisprudência dos Conceitos, que exerceram especial influência na cultura jurídica durante o século XIX (HESPANHA, 1998). Essas correntes se distinguiam quanto à solução preferencial definida para as situações em que a letra da lei era considerada insuficiente: para a Escola da Exegese, o sentido gramatical somente poderia ser ultrapassado quando evidentemente incompatível com a intenção do legislador, ao passo que a Jurisprudência dos Conceitos propunha a busca da integração do sentido particular de uma norma com o sentido do sistema jurídico como um todo, valorizando a mens legis acima da mens legislatoris (COSTA, 2014). No caso específico, os dois argumentos se reforçaram porque a identificação da vontade do legislador (quanto ao MI) foi feita mediante uma análise sistemática, e ambos apontavam para a impossibilidade de uma interpretação que conferisse ao MI efeitos amplos (que seriam, a priori, compatíveis com os sentidos literais possíveis das disposições constitucionais que o criaram).

Essa combinação de critérios hermenêuticos foi retomada na fundamentação de outros votos que compuseram o acórdão (BRASIL, 1990). A exemplo de Moreira Alves, o min. Aldir Passarinho referiu-se aos trabalhos da Constituinte, ao texto expresso do artigo 103, § 2º, da Constituição e aos princípios da legalidade e da separação de Poderes para sustentar a impossibilidade de o Judiciário suprir omissões de órgãos dos Poderes Legislativo ou Executivo. De modo semelhante, o min. Octavio Gallotti asseverou que Moreira Alves havia esgotado todas as possibilidades práticas e teóricas de se atribuir ao MI efeitos constitutivos, e o min. Sydney Sanches sustentou que a eficácia das sentenças proferidas em MI só poderia corresponder àquela apontada no voto do min. Moreira Alves, não havendo razão para presumir que elas seriam descumpridas pelos órgãos omissos.

Também participou do julgamento o min. Sepúlveda Pertence (BRASIL, 1990, p. 45), que, logo de início, asseverou “[...] que repetiria, em grande extensão, a linha logicamente exaustiva do voto do Relator”. Em consonância com Moreira Alves, Sepúlveda Pertence salientou que a ideia de atribuir ao STF competência para suprir a omissão normativa fora proposta à Assembleia Nacional Constituinte e por esta expressamente rejeitada. Aduziu, também, ser inadequado presumir o descompromisso do Poder Legislativo quanto à concretização das normas constitucionais e a insuficiência da decisão de caráter mandamental, cuja prolação, a seu ver, teria, “[...] quando menos, um papel de grande relevância como instrumento de legitimação das pressões sociais para a conquista efetiva da regulamentação necessária à implementação constitucional” (BRASIL, 1990, p. 50). Por fim, em discordância com Moreira Alves, Sepúlveda Pertence não compreendeu a atribuição de eficácia mandamental à ADO e ao MI como sendo a única interpretação possível da Constituição, embora considerasse essa solução a mais adequada para o contexto da época. De modo semelhante, os ministros Paulo Brossard e Célio Borja consideraram como adequada a solução proposta por Moreira Alves quanto à eficácia atribuída aos institutos referidos, embora não tenham rejeitado a possibilidade de posterior modificação desse entendimento, diante de eventuais necessidades futuras.

A minuciosa discussão ocorrida na MI 107 QO (BRASIL, 1990), reforçada pela unanimidade das conclusões alcançadas, fez com que essa decisão se tornasse o leading case sobre a eficácia decorrente das decisões proferidas em sede de MI e de ADO.