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4 A ADO SEGUNDO A DOUTRINA JURÍDICA BRASILEIRA

5.7 Ações julgadas parcialmente procedentes

5.7.1 O cumprimento das decisões das ADOs

O grupo de ADOs julgadas parcialmente procedentes é composto por 27 (vinte e sete) causas, sendo que cada uma delas tinha por objeto a omissão do chefe do Poder Executivo de algum Estado-membro, da União ou do Distrito Federal quanto ao encaminhamento, ao respectivo Poder Legislativo, de projeto de lei destinado a dar cumprimento ao artigo 37, inciso X, da Constituição, que assegura aos servidores públicos a revisão geral anual de sua remuneração. A avaliação sobre os resultados produzidos pelas decisões proferidas em tais ações envolve, portanto, a análise da legislação editada por cada um desses entes federados após a data do julgamento que lhe é pertinente. Por envolver a descrição de algumas centenas de diplomas legais, a análise específica de cada processo está apresentada no apêndice desta dissertação.

O exercício dessa avaliação depende do enfrentamento de algumas dificuldades relevantes. É necessário definir, por exemplo, as características que um ato normativo deve apresentar a fim de que sua edição seja considerada como suficiente para satisfazer a exigência contida no artigo 37, inciso X, da Constituição. Essa definição será realizada a partir de critérios extraídos da jurisprudência do STF, já que se trata de verificar o cumprimento de decisões proferidas por essa corte.

Como dito, o dispositivo constitucional referido determina que cada ente da Federação conceda, anualmente, revisão remuneratória aos servidores públicos respectivos, sem que haja distinção de índice e data, sendo necessária, para tanto, a edição de lei específica (BRASIL, 2007b). Quanto ao significado da expressão “revisão geral”, o STF define-o por contraposição ao conceito de “reajuste setorial” (BRASIL, 2007b) ou de “reajuste individualizado” (BRASIL, 2004b): ao passo que a “revisão geral” se destina a recompor o poder aquisitivo das remunerações conferidas a todos servidores públicos vinculados a determinado ente federado,

os quais estão uniformemente sujeitos às perdas decorrentes do processo inflacionário, o “reajuste setorial ou individualizado” corresponde a aumento do valor real das remunerações atribuídas aos ocupantes de cargos ou categorias funcionais específicos (BRASIL, 2012c). Nota-se, portanto, que, para diferenciar os institutos da revisão e do reajuste, o STF utiliza dois critérios básicos, consistentes no universo de servidores abrangidos pela alteração remuneratória e na finalidade que se pretende atingir por meio de sua concessão.

A dificuldade mencionada não se refere, no entanto, à diferenciação conceitual desses institutos, mas à sua utilização em situações concretas, que se revela frequentemente problemática. De fato, a pretensão de desvendar a finalidade que se busca obter mediante determinada alteração remuneratória é dificultada pelo descuido dos legisladores quanto ao emprego criterioso dos termos “revisão” e “reajuste”. Nas legislações examinadas e descritas no apêndice, referidas expressões assumem, com frequência, significados diversos dos fixados pelo STF, bem como são, por vezes, utilizadas de maneira inconsistente por um mesmo legislador em momentos distintos. Além disso, os diplomas legais analisados não se atêm ao uso dos termos mencionados, sendo comum o emprego de expressões diversas, tais como “aumento”, “atualização”, “alinhamento”, “majoração”, “reposição” e “recomposição”, para indicar a concessão de revisão ou reajuste remuneratórios.

Ainda sobre a tentativa de revelar o objetivo que motivou determinada alteração remuneratória, o STF utiliza como parâmetro o quantitativo do acréscimo deferido. Em seu entendimento, o legislador pretende conceder revisão remuneratória quando aprova acréscimo em percentual que sirva para refletir a perda do poder aquisitivo da moeda (BRASIL, 2012c). Não há, entretanto, um índice de inflação oficial a ser necessariamente observado, competindo ao legislador defini-lo em patamar que não seja manifestamente inadequado para o fim a que se destina (BRASIL, 2004c).

A esse respeito, ressalte-se que, no julgamento do Agravo Regimental no MI 634 (BRASIL, 2005c), o STF considerou ser suficiente para satisfazer a exigência veiculada pelo artigo 37, inciso X, da Constituição a aprovação de lei que deferira revisão remuneratória aos servidores federais pelo índice de 3,5% (três vírgula cinco por cento), incidente em janeiro de 2002. Embora se tratasse de percentual nitidamente inferior ao IPCA e ao INPC calculados para o exercício de 200120, a corte decidiu pela perda do objeto do mandado de injunção mencionado.

20 O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e o Índice Nacional de Preços ao Consumidor

(INPC), ambos calculados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2014), corresponderam, no exercício de 2001, a 7,67% (sete vírgula sessenta e sete por cento) e 9,44% (nove vírgula quarenta e quatro por

Em relação ao universo de servidores abrangidos por certa alteração remuneratória, a legislação referenciada no apêndice contém poucos diplomas normativos aplicáveis à generalidade dos servidores de determinado ente, o que não impede, porém, que sejam compreendidos como diplomas concessivos de revisões remuneratórias. O STF (BRASIL, 1998) decidiu, por exemplo, que um acréscimo remuneratório deferido aos militares deveria ser estendido aos servidores públicos civis da União por considerar, inclusive em razão da abrangência do ato que o concedera, que se tratava de revisão remuneratória dissimulada. Por outro lado, a corte referida entendeu, no julgamento da ADI 3.599 (BRASIL, 2007b), que uma alteração remuneratória aplicável aos servidores do Congresso Nacional não configurava revisão, mas mero reajuste setorial.

Quanto à regra que veda a distinção de índices e datas aplicáveis aos servidores públicos, o STF entende que, “se se tratou de revisão geral [...], não se pode admitir distinção de espécie alguma [...]” (BRASIL, 2005b). Não obstante, a corte mencionada (BRASIL, 2004b) já decidiu que não viola o artigo 37, inciso X, da Constituição o deferimento, a determinada categoria, de revisão remuneratória antecipada, a ser deduzida da próxima correção ordinária.

Todos os critérios expostos foram levados em conta na avaliação, retratada na sequência, sobre o efetivo cumprimento das decisões proferidas nas 27 (vinte e sete) ações diretas por omissão julgadas parcialmente procedentes pelo STF. Considerou-se, a partir deles, que tais julgados foram integralmente cumpridos somente nos casos em que o ente federado omisso concedera, a todos os servidores públicos respectivos e sem distinção de datas e índices, revisão remuneratória relativa ao ano em que fora declarada sua omissão. Tomou-se como parâmetro, em especial, o entendimento acolhido no julgamento da ADI 2.495 (BRASIL, 2002), que versava sobre matéria idêntica à suscitada nas ações diretas por omissão julgadas parcialmente procedentes. Ao julgá-la prejudicada, o STF decidiu que o mero envio, pelo governador do Estado de Santa Catarina ao Poder Legislativo desse ente federado, de projeto de lei tendente a conceder revisão geral remuneratória aos servidores públicos estaduais fora suficiente para suprir a omissão estatal relacionada ao cumprimento do artigo 37, inciso X, da Constituição.

À época em que proferida essa decisão, que data de maio de 2002, referida corte considerava que, após desencadeado o processo legislativo, não mais se haveria de cogitar de omissão inconstitucional do legislador, de modo que a inertia deliberandi do Poder Legislativo

cento), respectivamente. Saliente-se, ainda, que, no julgamento do RE 376.846 (BRASIL, 2004c), o STF considerou o INPC como o índice maisadequado para a revisão dos benefícios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social.

não poderia ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Esse entendimento não prevalece atualmente na jurisprudência do STF (BRASIL, 2007c), razão pela qual, na análise realizada a seguir, reputa-se cumprida a decisão de procedência parcial apenas quando aprovado o projeto de lei e efetivamente editado o diploma legal concessivo de revisão remuneratória.

Se o cumprimento integral de cada uma das decisões examinadas depende da concessão de revisão aplicável a todos os servidores públicos, sem distinção de datas e índices, e em patamar que não seja manifestamente inadequado para a reposição das perdas inflacionárias, não se pode concluir, por outro lado, que as leis desvestidas dessas características são, necessariamente, irrelevantes para tal finalidade. Estas podem, de modo diverso, conferir atendimento parcial às decisões ao deferirem, por exemplo, revisão remuneratória a parcela dos servidores públicos; ou a todos eles, mas em datas distintas; ou, ainda, por índice inferior ao patamar que se considere devido.

Em verdade, o cumprimento parcial e, até mesmo, o descumprimento do artigo 37, inciso X, da Constituição em determinado exercício financeiro podem, em certas situações, corresponder aos comportamentos compatíveis com a ordem constitucional. Isso porque, conforme salienta Marcelo Neves (2013), referido dispositivo constitucional contém regra que está sujeita à ponderação com outras regras e princípios constitucionais, podendo deixar de ser aplicada em face das possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto. Veja-se:

O enunciado completo da regra só pode ser formulado no final da cadeia concretizadora, servindo como fundamento definitivo da norma de decisão do caso. Se considerarmos, por exemplo, o art. 37, inciso X, da Constituição Federal, que assegura a “revisão geral anual” da remuneração dos servidores públicos, a que se atribui uma regra cuja determinação tem sido entendida no sentido da exigência de recuperar a perda de valor decorrente da inflação, pode-se confrontá-la com regras constitucionais que exigem uma destinação de um percentual mínimo para a manutenção e o desenvolvimento do ensino nas três esferas federativas (art. 212 da CF). É claro que as possibilidades fáticas são relevantes neste caso, mas não exclusivas. Pode surgir, nessa hipótese, uma situação em que o reajuste, tendo em vista as receitas vinculadas conforme regra constitucional, possa implicar o afastamento dessa regra. A questão depende de considerações de peso. A negação do reajuste no nível do percentual da inflação por força de um maior peso dado à regra que determina o percentual vinculado à educação importa um sopesamento: a consideração de que, na situação, o interesse público protegido por essas regras seria gravemente atingido no âmbito do sistema público de educação altamente precário, enquanto a restrição ao reajuste não trará maiores prejuízos aos servidores, tendo em vista o alto padrão remuneratório já existente. Mas, em outra situação, seria imaginável uma orientação no sentido oposto. (NEVES, 2013, p. 78-79).

De modo semelhante, o STF não atribui ao artigo 37, inciso X, da Constituição o caráter de regra absoluta e de aplicação inafastável em qualquer situação concreta. No julgamento dos Agravos Regimentais nos REs 557.945 (BRASIL, 2007d) e 501.054 (BRASIL, 2006), a corte ressaltou que a iniciativa para desencadear o procedimento legislativo tendente a conceder revisão geral anual aos servidores públicos é ato discricionário do chefe do Poder Executivo, estando sujeito à sua avaliação política.

A questão ainda não está consolidada na jurisprudência do tribunal. Pende de conclusão, por exemplo, o julgamento do RE 565.089 (BRASIL, 2014uu), em que o min. Roberto Barroso, abrindo divergência em relação aos votos proferidos pelos min. Marco Aurélio e Cármen Lúcia, sustentou que o artigo 37, inciso X, da Constituição não impõe um dever de majoração anual da remuneração dos servidores públicos em percentual correspondente ao da inflação, exigindo, tão somente, uma avaliação anual, que pode resultar ou não em concessão de aumento, consideradas as circunstâncias econômicas de cada momento. Confira-se, a esse respeito, o seguinte excerto do Informativo de Jurisprudência n. 741 do STF:

Por outro lado, o min. Roberto Barroso inaugurou a divergência e negou provimento ao extraordinário. Ressaltou não vislumbrar no artigo em questão dever específico de que a remuneração dos servidores fosse objeto de aumentos anuais e, tampouco, em percentual obrigatoriamente correspondente à inflação apurada no período. Aduziu que a exegese do termo “revisão” abarcaria entendimento no sentido de que o art. 37, X, da CF exigiria uma avaliação anual, que poderia resultar, ou não, em concessão de aumento. Destacou, outrossim, que o preceito deveria ser interpretado em conjunto com outros dispositivos que se distanciariam da lógica de reajustes automáticos e de indexação econômica (CF, artigos 7º, IV, e 37, XIII). Assinalou que a tese segundo a qual a adoção de índice inferior à inflação de determinado período importaria automaticamente em degradação do direito de propriedade mereceria temperamentos. Consignou que a indexação, embora legítima na tentativa de neutralizar o fenômeno inflacionário, teria como efeito colateral a retroalimentação desse mesmo processo de inflação. Advertiu para a necessidade de que os reajustes fossem condicionados às circunstâncias econômicas de cada momento. Por fim, concluiu que o art. 37, X, da CF imporia ao Chefe do Poder Executivo o dever de se pronunciar anualmente e de forma fundamentada sobre a conveniência e a possibilidade de reajuste anual do funcionalismo. Na sequência, pediu vista dos autos o min. Teori Zavascki. (BRASIL, 2014uu).

A prevalecer o entendimento sustentado pelo min. Roberto Barroso, o mero pronunciamento anual e de forma fundamentada do chefe do Poder Executivo acerca da possibilidade de revisão remuneratória bastará para que se considere atendido o comando contido no artigo 37, inciso X, da Constituição. Não foi esse, no entanto, o parâmetro adotado para a avaliação retratada na sequência. Optou-se, como visto, pela interpretação que confere

significado mais rigoroso ao dispositivo constitucional referido, nos termos dos julgamentos proferidos nas ADIs 2.495 (BRASIL, 2002) e 3.682 (BRASIL, 2007c).

Por fim, é necessário reconhecer as limitações da avaliação que se segue. A pretensão inicial era a de realizar uma pesquisa tão minuciosa quanto possível, o que dependia, a rigor, da análise de toda a legislação editada, desde janeiro de 2002, pelos entes federados reconhecidos como omissos a respeito de questões remuneratórias dos servidores públicos respectivos. Para atingir esse objetivo dentro do limite temporal estabelecido para a conclusão desta dissertação de mestrado, o autor decidiu evitar a leitura do texto integral de cada uma das dezenas de milhares de leis editadas pelo conjunto de entes omissos no período examinado. Optou, ao invés disso, por triar esses diplomas legais a partir da leitura de sua ementa, com o objetivo de identificar quais deles poderiam versar sobre matéria relacionada à revisão remuneratória de servidores públicos. Apenas as leis selecionadas por meio desse procedimento é que tiveram seu teor integral analisado, no qual se verificou a ocorrência de alguma das expressões mencionadas a seguir e de suas derivações: “revisão”, “reajuste”, “aumento”, “atualização”, “alinhamento”, “majoração”, “reposição” e “recomposição”

Diante do elevado volume de dados consultados, não se descarta a possibilidade de que diplomas legais concessivos de revisão remuneratória tenham deixado de ser identificados e, por essa razão, não constem da descrição feita no apêndice. Absteve-se, propositalmente, de mencionar diversas leis que concederam reajustes ou reestruturaram o sistema remuneratório de cargos e carreiras específicos, também devido ao excessivo número de documentos catalogados. Ademais, a avaliação circunscreve-se, de forma praticamente exclusiva, às leis ordinárias e complementares dos entes envolvidos, dado que as demais espécies normativas revestidas de força de lei, tais como as medidas provisórias e as leis delegadas, frequentemente não se encontram disponíveis para consulta nos bancos de leis consultados.

Em síntese, quer-se esclarecer que, além das leis expressamente mencionadas no apêndice do presente trabalho, outros diplomas normativos podem ter contribuído para o cumprimento das decisões de procedência parcial proferidas em sede de ADO. Passa-se, então, à avaliação sobre o atendimento conferido a esses julgados.