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A ADOLESCÊNCIA E O CULTO DA GRATUITIDADE

CAPÍTULO 3. DUALIDADE CONCEPTUAL

3.3. A ADOLESCÊNCIA E O CULTO DA GRATUITIDADE

No quadro do debate sobre os factores que fomentam a gratuitidade e a tendência para a considerar justa, natural e socialmente irrepreensível está o comportamento típico dos adolescentes urbanos e a necessidade de inscreverem esse pendor para o uso gratuito dos bens culturais na sua dinâmica de comunicação com os outros.

A facilidade com que um adolescente numa sociedade desenvolvida lida com as novas tecnologias, mesmo que a sua linguagem esteja empobrecida ao nível do património vocabular, é absolutamente impressionante e, na realidade, teve início na própria infância.

Torna-se difícil para um jovem utilizador das tecnologias mais avançadas admitir que tem de pagar por aquilo que consome, mormente por duas razões: vivendo, em regra, com os pais tem a noção errónea de que tudo o que é importante na sua vida lhe é naturalmente assegurado por quem cuida da sua educação e bem-estar; porque estando sobretudo a música omnipresente no seu quotidiano, considera que nem tem de se preocupar com o valor daquilo

que consome, refém da ilusão de que tudo foi criado e pensado para lhe proporcionar satisfação e uma sensação de plenitude.

O tempo e a realidade provam que a busca da gratuitidade é muito mais expressiva e intensa no período da adolescência do que na juventude adulta, principalmente a que já trabalha ou procura o primeiro emprego. Quem trabalha, tende a perceber o valor do trabalho.

No ensaio “Teenagers – Uma História Natural”, David Bainbridge (2010), investigador nas universidades de Sidney, Cornell e Oxford, caracteriza da seguinte forma este escalão etário e a sua ágil e natural relação com as novas tecnologias:

Na última década, os adolescentes humanos ainda têm tido a hipótese de demonstrar a sua imensa capacidade de adaptação linguística. A facilidade com que parecem ter incorporado novas tecnologias na sua comunicação pode ser assustadora para os adultos. Claro que os adultos sabem controlar um rato de computador e enviar mensagens de texto, mas a velocidade com que os adolescentes experimentam e aprendem electrónicas é espantosa. Conseguem rapidamente o malabarismo de exigências complexas que existe em ser inteligível para os amigos, incompreensível para os pais e em afirmar uma individualidade linguística electrónica, tudo com uma subtileza que os adultos não conseguem acompanhar.

As novas formas de comunicação fundem-se simplesmente na sua maneira de lidar com o mundo, sem demarcação clara entre conversas, mensagens, chamadas e correio electrónico – por exemplo, a maioria dos adultos nunca teria conversas simultâneas com um amigo ao telemóvel e outro à sua frente. E a ideia de que uma presença em sítios como, por exemplo, o Facebook, MySpace ou Bebo (alguns dos quais parecerão comicamente antiquados nos poucos meses entre o livro sair do meu computador e aterrar nas estantes), poderem ser algo além de uma extensão do eu que é inteiramente estranha à mente adolescente. Até há provas de que os polegares dos adolescentes que teclam ganharam mais músculo e destreza na última década – mutação física que permitiu uma nova era de expressão adolescente (p. 44).

Referindo-se às mudanças operadas pelo intenso convívio quotidiano com as tecnologias comunicacionais mais avançadas, David Bainbridge escreve:

Uma mudança espantosa é o facto de os adolescentes começarem a utilizar competências linguísticas para pensarem de outras formas – criando discussões sobre conceitos abstractos, por exemplo. A interligação da linguagem e do pensamento na

adolescência é tão íntima que há quem sugira que a consciência humana poderá realmente definir-se em termos de conversas verbais internas, dentro da nossa cabeça (p. 53).

Assim se reforça a ideia central de que, sendo esta relação com as tecnologias tão profundamente natural e ágil, é cada vez mais improvável que um adolescente, a quem a cultura consumista do Ocidente, alimentada por pais que temem perder o afecto e a atenção dos filhos, criou a ilusão de que tudo lhe é devido, bastando manifestar essa vontade ou esse desejo, aceite pacificamente a ideia de que tem de pagar o valor correspondente à música que ouve no MP3 ou no computador ou ao filme a que tem acesso em qualquer uma das plataformas que consegue alcançar e manejar.

Este fenómeno torna cada vez mais imperativo o desenvolvimento de uma acção pedagógica que permita criar nos adolescentes a noção de que todos os bens culturais têm um valor de mercado, de que, por trás de cada um deles, existe pelo menos um autor e de que não pagar o que se consome empobrece inevitavelmente os criadores e a cultura em sentido lado.

Trata-se de um processo de grande complexidade que deve envolver os adolescentes preferencialmente enquanto potenciais criadores. Aqueles que querem ser músicos, escritores ou cineastas estão em melhor posição do que os outros para perceberem que a generalização da prática da gratuitidade os impedirá de mais tarde virem a fazer da criação cultural e artística o seu ofício e a sua legítima e regular fonte de rendimento, sendo crescente o número dos que têm essa perspectiva de futuro.

No ensaio “In The Bubble – Designing a Complex World”, John Thackara (2006) inventaria os factores que caracterizam o mundo global em que vivemos: leveza, velocidade, mobilidade, o local, situação, convivialidade, aprendizagem, literacia, perspicácia e fluxo.

No capítulo dedicado à leveza (2010: 11-26), o investigador escreve:

Tenho pensado no facto de o mundo da Internet não ter trazido à nova economia a “ausência de peso” que havia sido vaticinada. Ao contrário do que se previu e anunciou, a vida parece ter-se tornado muito mais pesada – física e psicologicamente – do que nunca.(...) compramos mais hardware do que alguma vez comprámos. Imprimimos muito mais papel. Embalamos muito mais encomendas. Movimentamos muito mais material, a própria população mundial duplicou, o consumo de energia triplicou, a velocidade do processamento e armazenamento informático aumentou um milhão de vezes.(...) Imaginámos que a “sociedade da informação” iria substituir a “sociedade industrial”, com a correspondente dinâmica de desmaterialização, mas acabámos por

verificar que uma se acrescentou à outra aumentando a sua intensidade global.(...) A pegada ecológica da informática não ficou limitada aos chips. A manufactura de peças electrónicas passou a envolver intensivos processos materiais, sempre mais complexos. Muitos componentes deste processo requerem o uso de substâncias de origem mineral que podem ser obtidas através de complexas operações de mineração e de processos de transformação de energia intensiva.

Noutra passagem do seu ensaio, referindo-se ao factor “velocidade”, também traduzível por “pressa” o autor afirma (p. 73):

Todos queremos computadores mais rápidos, mas, ao mesmo tempo, reclamamos o direito de viver vidas mais equilibradas – as vidas devem ser vividas à velocidade que nós determinamos e não condicionadas pela lógica de sistemas que transcendem a nossa capacidade de controle. (....) Uma das razões que impõem uma mudança de ritmos é que a própria velocidade não é grátis, tem um preço. Como o ambientalista Wolfgang Sachs demonstrou, a vitória sobre a distância e sobre o tempo que é preciso para a percorrer tem um custo muito elevado. (...) para conseguirmos avançar mais depressa fazemos consumos energéticos desproporcionados cujo custo raramente equacionamos e temos extrema dificuldade em calcular.

E conclui (2010: 225):

Enchemos o mundo com sistemas e tecnologias de grande complexidade que são muito difíceis de compreender, de formatar e de redireccionar. Mas nós somos pessoas e não formigas. Temos uma cultura, uma linguagem e a capacidade de compreender e partilhar conhecimentos acerca de fenómenos abstractos. As formigas não o têm. Também não têm as ferramentas e o design necessários para lhes darmos forma. Nós temos.

As reflexões expostas por John Thackara contribuem para reforçar a ideia de que nada, no domínio das tecnologias avançadas, existe sem preço, gratuito ou free como, ambiguamente, a língua inglesa refere a gratuitidade. Por tudo se paga um preço, situação com a qual as formigas também não têm que se preocupar.

A “leveza” e a “pressa” referidas pelo autor são também factores que levam o consumidor a reivindicar a gratuitidade, considerando que esse é um direito já conquistado e que a leveza da desmaterialização e a pressa fortalecem. O consumidor comum deixou que

nele se enraizasse a convicção de que, tendo pago o aparelho difusor, todos os conteúdos que ele armazena já fazem parte do preço pago para o poder utilizar. A “pressa” e a “leveza” ajudam a estruturar e a tornar cada vez mais inalterável essa visão errónea.