• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3. DUALIDADE CONCEPTUAL

3.5. O GATO, O RATO E A REDE

Em meados de Dezembro de 2013 assistiu-se a uma situação singular que colocou do mesmo lado da barricada criadores e grandes operadores em nome das liberdades individuais, essas mesmas liberdades que, geridas pelos operadores, frequentemente se convertem na auto- estrada que se abre à prática da pirataria.

Descreva-se a situação.

Google, Microsoft, Apple, Yahoo, Facebook, Twitter, AOL e Linkdin reivindicaram, junto do Presidente dos Estados Unidos uma limitação efectiva e urgente da vigilância sobre os seus clientes. Na prática, e tentando talvez encobrir as cumplicidades mantidas no fornecimento de muitos desses dados, oito companhias pediram à Administração de Washington que limitasse no mais breve prazo, com regras claras, a vigilância exercida sobre os usuários.

É sabido que, no centro desta polémica se encontra a Agência de Segurança Nacional (NSA) que, em nome da necessidade de prevenir actos terroristas, começou a exercer uma verdadeira devassa das vidas privadas dos utilizadores daqueles serviços, em busca de pistas que possam conduzir à identificação de novas ameaças para a segurança do Estado. Esta situação foi denunciada por Edward Snowden, ainda com asilo provisório concedido por Moscovo.

A novidade reside no facto de estas poderosas companhias concorrentes aparecerem a falar a uma só voz e de terem apresentado um plano para regular a espionagem praticada na rede de que elas são o principal suporte.

Lê-se no documento subscrito pelas Administrações das oito companhias:

“O equilíbrio em muitos países inclinou-se demasiado a favor do Estado e contra os direitos dos indivíduos, direitos que estão consagrados na nossa Constituição.” Este documento, que tem a forma de uma carta endereçada ao Presidente Obama, foi publicado como anúncio pago nos principais jornais norte-americanos.

Por seu turno, a Administração Obama anunciou a disponibilidade e o propósito de rever os procedimentos adoptados nesta matéria pela Agência de Segurança Nacional. Obama declarou mesmo, numa entrevista a uma estação de televisão, que, após ter analisado o assunto com assessores e juristas, decidira propor à NSA uma revisão dos procedimentos de forma a devolver a confiança aos cidadãos em matéria de privacidade das suas vidas expostas nas chamadas “redes sociais”.

Há uma contradição e até uma hipocrisia latente em todo este processo, já que as companhias que protestaram junto do Presidente americano fazem assentar o seu negócio justamente num detalhado conhecimento e armazenamento de dados relacionados com os utilizadores dos seus serviços que circulam livremente, sendo o melhor exemplo dessa contradição o Facebook.

O que faz tremer a confiança das empresas é um factor de natureza económica, já que um estudo encomendado pelo jornal “New York Times” aponta para que a redução da partilha de dados pelos usuários pode custar àquelas empresas perdas para a indústria, até 2016, da ordem 180 mil milhões de dólares, o que corresponde a um quarto dos seus lucros.

As oito companhias exigem o “reforço da transparência” e reafirmam a legitimidade da sua luta em defesa da privacidade dos seus usuários. Entretanto, aquelas companhias anunciaram uma intensa campanha de marketing e de combate legal para garantirem a privacidade dos dados de quem, sem prudência, se expõe na rede como se estivesse a manter a dois uma reservada conversa de amigos.

O documento enviado ao Presidente dos Estados Unidos é, porém, omisso sobre as próprias práticas das companhias em relação aos usuários e sobre a forma, no mínimo vergonhosa, como deixaram dados a descoberto ou avançaram mesmo para uma colaboração activa com vários governos. Aqui reside a contradição e a hipocrisia de uma história sobre a qual há ainda muito a contar e que não deixa nenhuma das partes “bem no retrato”, para utilizar uma expressão corrente e popular.

Entretanto, 562 intelectuais de 82 países assinaram um manifesto contra a vigilância exercida na Internet, em 2011, exigindo aos Estados e empresas o respeito efectivo da privacidade dos cidadãos, exigindo da ONU uma Carta Internacional dos Direitos dos Cidadãos.

Recordam os subscritores do manifesto que:

O pilar básico da democracia é a integridade inviolável do indivíduo. (...) Todos os seres humanos têm o direito de não ser observados nem molestados pelos seus pensamentos, posições pessoais e comunicações. Este direito humano fundamental ficou anulado e esvaziado de conteúdo por culpa do mau uso dos avanços tecnológicos que permitem a Estados e empresas levarem a cabo programas massivos de vigilância. Uma pessoa vigiada deixa de ser livre; uma sociedade vigiada deixa de ser uma democracia. Se queremos que os nossos direitos democráticos continuem a ser válidos, é necessário que sejam respeitados tanto no espaço virtual como no físico.

Este manifesto subscrito por grandes figuras da intelectualidade mundial, com destaque para a europeia e para a norte-americana, tem o mérito de evitar que o odioso da situação seja colocado apenas nos Estados, com relevo para os Estados Unidos, envolvendo nesta responsabilidade também as empresas que, em nome da ganância e da mais feroz concorrência, jogando com as próprias vulnerabilidades do ser humano, abriram a “caixa de Pandora”.

Os Estados mais não têm feito, em nome da segurança nacional e do controle dos cidadãos, do que utilizar o imenso acervo informativo que é posto à sua disposição e disponibilidade de algumas destas empresas no sentido de com eles colaborarem activamente, violando os próprios protocolos éticos e morais em que assenta a sua actividade.

Numa triste manifestação de hipocrisia, como se o lobo pudesse pedir para que o seu irmão de espécie fosse vigiado e controlado, vimos grandes empresas que sustentam e obtêm lucros astronómicos com a Rede a colocarem-se do lado das vítimas, como se as suas culpas não fossem bastantes para que toda a sua prática fosse revista e avaliada.

E acresce referir que é em nome das “liberdades individuais” que a maior parte destas empresas pirateia conteúdos protegidos, sejam eles informativos, culturais ou científicos, não demonstrando qualquer prurido ético ou moral relativamente aos conteúdos de que lançam mão.

Compete agora às Nações Unidas emitirem opinião sobre a proposta criação de uma Carta dos Direitos Digitais, ideia dos subscritores do manifesto dos intelectuais de 82 países.