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2 MERCADO, CAPITALISMO E GLOBALIZAÇÃO

2.6 A AGRICULTURA E A INDÚSTRIA NA ECONOMIA DE MERCADO

Agricultura é o conjunto de técnicas utilizadas para cultivar plantas, com o objetivo de obter alimentos, fibras, energia, matéria-prima para roupas, construções, medicamentos, ferramentas ou apenas para contemplação estética. Indústria é toda atividade humana que, pelo trabalho, transforma matéria-prima em outros produtos, que em seguida podem ser, ou não, comercializados. De acordo com a tecnologia empregada na produção e a quantidade de capital necessária, a atividade industrial pode ser artesanal, manufatureira ou fabril.

O processo de produção industrial é também conhecido como setor secundário, em oposição à agricultura (setor primário) e ao comércio e serviços (setor terciário), de acordo com a posição que cada atividade normalmente está na cadeia de produção e consumo. Hoje, o processo industrial é capitaneado pelas multinacionais.

2.6.1 Posicionamentos do magistério pontifício

No início dos anos 1960, João XXIII entendia que as questões sociais não eram apenas problemas locais, mas mundiais. Havia a questão dos trabalhadores, as inovações industriais e, ao lado delas, os problemas da agricultura, do subdesenvolvimento, demográficos e aqueles referentes à necessidade de cooperação econômica mundial. As desigualdades não eram mais locais, mas internacionais. Continuava decisiva, principalmente nos países no caminho do desenvolvimento, a distribuição equitativa da terra.

Atenção especial merece desde então o trabalho agrícola, pela importância social, cultural e econômica que detém nos sistemas econômicos de muitos países, pelos problemas

que enfrenta numa conjuntura de economia globalizada e pela sua gravidade na preservação do meio ambiente. João Paulo II, em sua encíclica Laborem exercens8 (LE), que enfatiza a questão do trabalho, discorre também sobre o trabalho na agricultura, afirmando que “são necessários mudanças radicais e urgentes, para restituir à agricultura e aos homens dos campos o seu justo valor como base de uma economia, no conjunto do desenvolvimento da comunidade social” (LE 21).

As grandes mudanças nos planos social e cultural, na agricultura e no amplo mundo rural exigem um aprofundamento sobre o significado do trabalho agrícola em toda a sua grandeza. É um importante desafio, que se deve encarar com políticas agrícolas e ambientais capazes de superar uma compreensão assistencial e de criar novas expectativas para uma agricultura moderna, que possa exercer uma função expressiva na vida social e econômica.

O aumento da eficiência dos sistemas econômicos, em cada vez maior número de países, evidencia mais ainda os desequilíbrios econômicos e sociais entre o setor agrícola, por um lado, e o setor da indústria e dos serviços de utilidade geral, por outro; entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas menos desenvolvidas no interior de cada país; e no plano internacional, são mais melindrosos ainda os desequilíbrios econômicos e sociais entre países economicamente desenvolvidos e países economicamente em vias de desenvolvimento (MM 48).

Em muitos países, principalmente naqueles em vias de desenvolvimento, é crucial a questão da redistribuição da terra, no campo das políticas de reforma agrária. A Doutrina Social condena o latifúndio improdutivo, pois entende que ele é um impedimento ao verdadeiro desenvolvimento econômico: “Sabemos que produzir bens, sobretudo agrícolas, para além das necessidades de um país, pode ter repercussões economicamente negativas para algumas categorias de pessoas” (MM 161).

Os países em desenvolvimento podem combater com eficiência o atual processo da concentração da propriedade da terra, afrontando situações que se podem classificar como verdadeiros nós estruturais, como os atrasos em nível legislativo, o reconhecimento dos títulos de propriedade da terra e o desinteresse pelo desenvolvimento da agricultura. Por isso, a reforma agrária não é apenas uma necessidade política, mas principalmente uma obrigação moral, uma vez que, se não realizada, impedirá os benefícios procedentes da abertura de mercado e as ocasiões de crescimento que a globalização proporciona.

8A encíclica Laborem exercens foi promulgada pelo papa João Paulo II, em 1981. Há nela uma clara afirmação da prioridade da pessoa humana sobre qualquer interesse econômico; em outras palavras, há sempre a prioridade do trabalho sobre o capital, seja num sistema capitalista ou coletivista. Mostra que os dois sistemastêm em comum o economicismo e o materialismo, que terminam subordinando a pessoa humana aos interesses econômicos, reduzindo-a a mero “instrumento de produção”.

O papa Pio XI, na Quadragesimo anno, analisa o passado à luz de uma situação socioeconômica em que a industrialização liga-se à expansão do poder dos grupos financeiros, em âmbito nacional e internacional – um período de pós-guerra em que, na Europa, se firmavam os regimes totalitários, enquanto se acentuava a luta de classes. Contudo, principalmente nos países desenvolvidos, o trabalho passava por uma fase que marcou a passagem de uma economia industrial para uma economia concentrada nos serviços. Estes, assinalados por grande quantidade de informações, cresceram mais rapidamente do que as atividades do setor primário e secundário, criando consequências de grande alcance no que concerne à produção e trocas. Perdeu terreno o modelo econômico social ligado à fábrica e ao trabalho de uma categoria operária, enquanto melhoraram as probabilidades de emprego no setor de serviços.

A Doutrina Social observa defeitos nas transações internacionais, que, devido às políticas protecionistas de países desenvolvidos, não valorizam os artigos produzidos nos países mais pobres e impedem o crescimento das atividades industriais. Na encíclica Populorum progressio9 (PP), afirma-se que isso contribui para “os países pobres ficarem ainda mais pobres enquanto os países ricos ficam cada vez mais ricos” (PP 57).

2.6.2 Elementos de análise

Quase todas as nações da América Latina têm um programa de reforma agrária. Nesse contexto, o mundo rural estudado pela primeira vez numa encíclica social por João XXIII – Mater et magistral – tem características particulares. Entende-se que uma empresa agrícola com muitos funcionários tem poucas chances de êxito, prestando-se melhor a uma estrutura familiar ou comunitária. Contudo, a desapropriação dos latifúndios, prevista nas leis de reforma agrária, realizou-se em poucos países e em pequena escala (BIGO; ÁVILA,1982, p.

257)

9A encíclica Populorum progressio foi promulgada, em 1967, pelo papa Paulo VI. Seu objetivo era concretizar a doutrina da Constituição Pastoral Gaudium et spes, no sentido de fazer uma chamada urgente à ação. Ela denuncia os mecanismos causadores da exploração dos povos menos avançados. Partindo da prioridade do

“ser” sobre o “ter”, Paulo VI propõe duas grandes diretrizes de ação: a primeira refere-se à necessidade de uma transformação radical e planejada das economias do Terceiro Mundo, pois só assim se evitará que terminem tendo razão as alternativas da revolução violenta; a segunda tem por objeto a forma de proceder dos países industrializados, afirmando-se a obrigação que esses países têm de “ajudar” os mais pobres, como compensação por comportamentos injustificáveis em épocas passadas. A encíclica termina fazendo um convite a todos os povos, para que se empenhem em construir uma ordem internacional baseada na justiça, uma vez que “desenvolvimento é o novo nome da paz”.

A Mater et magistra insiste que “a empresa agrícola é principalmente familiar” (MM 142) e propõe que a distribuição de glebas realize-se dentro de uma estrutura de serviços cooperativos de crédito, compra e venda, com assistência do poder público:

é indispensável que os cultivadores sejam instruídos, modernizados continuamente e assistidos na técnica de sua profissão. É também indispensável que eles estabeleçam ampla rede de instituições cooperativas, estejam profissionalmente organizados e tomem parte ativa na vida pública, tanto nos organismos administrativos como nos movimentos políticos (MM 140) (BIGO; ÁVILA, 1982, p. 257).

Sem essas condições, a reforma agrária fracassa, seja pela intervenção indevida de organismos estatais, seja porque, isolados em suas glebas individuais, os camponeses acabam por vendê-las, permitindo a reconstituição dos latifúndios.

O problema dos minifúndios também não está resolvido, pois requer a constituição de lotes de tamanho suficiente e a alocação em outras áreas ou em outras tarefas. Demanda, também, organizações cooperativas e assistência técnica. Ainda, é de conhecimento que, em alguns países, lavradores e indígenas são expulsos de forma violenta de suas terras por latifundiários ou empresa transnacionais, não poucas vezes com a ajuda de autoridades policiais. Bigo e Ávila (1982, p. 257) afirmam que uma reforma agrária justa e eficaz deveria preservar o direito à propriedade ancestral desses lavradores, com a proteção necessária, pois, muitas vezes, esses lavradores ocupam terras devolutas e não cultivadas, porém não possuem títulos de propriedade. A Doutrina da Igreja propõe sempre que, em caso de extrema necessidade, o pobre tem direito a apropriar-se daquilo de que necessita realmente para sobreviver e não está obrigado a restituir enquanto permaneça essa necessidade (BIGO;

ÁVILA, 1982, p. 257).

Ademais, a expulsão de lavradores devido à expansão de um capitalismo agropecuário ou à instalação de grandes usinas hidroelétricas e de exploração do subsolo resulta na formação de um proletariado rural, recrutado entre os pequenos proprietários privados de suas terras. Isso transforma o campo em área de graves e frequentes conflitos, na qual a Igreja é conclamada a intervir para defender os oprimidos e mediar as tensões resultantes dessas injustiças.

Fala-se demasiadamente em reforma agrária, porém vê-se que essa necessidade está ligada principalmente a países de Terceiro Mundo, em que a agricultura, apesar de pouquíssimo desenvolvida, não encontra distinções em relação aos demais países. Denota-se que a encíclica Mater et magistra, quanto ao campo, observa um sério problema: o êxodo rural, o abandono do campo, do meio rural, em virtude não apenas de exigências quanto à

produção e ao desenvolvimento, mas quanto ao ambiente social de um bem-estar desfrutado por pessoas da cidade (MM 124-125).

Na realidade, João XXIII está propondo de novo um problema de distribuição. Por isso é que põe tanta ênfase no tema dos preços agrícolas, destacando algumas características peculiares do setor. Neste sentido são várias as alusões feitas aos riscos especiais da agricultura (MM 133, 134, 137); e também se destaca o conflito que os agricultores enfrentam, injustamente, quando o restante da sociedade exige que eles contenham os preços dos seus produtos porque a maior parte desses produtos, destina-se a satisfazer as necessidades mais básicas da população (MM 140). Essas características fazem da agricultura um setor bastante vulnerável e sempre destinado à marginalização ou a uma participação decrescente na renda (CAMACHO LARAÑA, 1995, p. 205).

Reconhece-se que a iniciativa dos agricultores é insubstituível (MM 144,146,149), porém se observa que deve haver mais intervenção compensatória por parte do Estado, visto que deve ser elevado o nível de vida da população do campo (MM 127), bem como integrada a agricultura em um desenvolvimento harmônico do país, para que todos possam usufruir dos progressos técnicos e econômicos (MM 128). Devem existir medidas que propiciem e facilitem a vida do agricultor, tais como: medidas fiscais que levem em conta o lento retorno da renda dos agricultores; política de acesso ao crédito; sistema de seguros, considerando os riscos da atividade; evitar a flutuação de preços dos produtos; política compensatória visando ao desenvolvimento; e reforma nas empresas agrícolas, com fomento às cooperativas.