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2 MERCADO, CAPITALISMO E GLOBALIZAÇÃO

2.2 POSICIONAMENTOS DO MAGISTÉRIO PONTIFÍCIO

2.2.1 Elementos de análise

Ao tratar da temática de mercado, faz-se necessário trazer algumas considerações acerca da economia. Esta se encontra estritamente relacionada com a política, uma vez que as duas esferas reclamam-se mutuamente – a cada acontecimento no mundo econômico, surtem efeitos no mundo político. Obviamente, há exceções nesse contexto, pois não há como sustentar um Estado Liberal, a não ser sobre uma base política de reformas sociais radicais.

Na tradição burguesa ou liberal, ela é vista mais como uma simples interdependência, ao passo que na tradição marxista a economia é vista antes como a última instância. Mas sejam quais forem as razões desta diferença – que tampouco é nitidamente válida – a vinculação estreita entre as duas raramente é negada (ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 85).

A economia política é vista sob dois aspectos, os quais muitas vezes podem conduzir a equívocos na interpretação dessa temática: (a) interdependência entre a economia e a política ou interdependência das ordens, descartada por alguns autores (ASSMANN, HINKELAMMERT, 1989, p. 87), uma vez que o foco não se reduz apenas à interdependência; e (b) identificação da análise da economia política com a economia política marxista ou, ainda, socialista. Tal separação torna-se importante para compreender a economia atual e seus problemas, provenientes de uma economia política, que possui um contexto histórico mais repleto que o da socialista.

Nesse aspecto, enxergam-se duas polaridades: por um lado, a economia política, com o pensamento socialista; por outro, a teoria econômica neoclássica, a partir do ponto de vista da determinação ótima dos recursos, ou seja, a teoria de que o salário baseia-se na subsistência de que o operário necessita, independentemente da escassez relativa do mercado.

Esta é a perspectiva de Adam Smith, Malthus e Ricardo. Para Malthus, há a necessidade de reprodução da população, pois, para que haja produção contínua, a maquinaria gasta deve ser substituída. Com isso, o fator político é deixado de lado, dando espaço ao fator de reprodução da força de trabalho e do aparelho produtivo. Já para Marx, a problemática da reprodução dos fatores de produção concentra-se em um fator: o ser humano. Ele visualiza o aparelho produtivo acrescido à natureza, como consequência da reprodução material da vida humana, transformando a sociedade burguesa em sociedade socialista. É o que se conhece por socialismo científico.

Em todos os seus representantes – de Smith a Marx – está praticamente ausente e apenas marginalmente mencionado um problema econômico que será a bandeira da escola neoclássica: a alocação ótima dos recursos econômicos. Com isso desaparece todo o enfoque anterior da produção, que na escola neoclássica é mantido apenas ocultamente como reprodução do capital amortizado – sem maior discussão da problemática anterior (ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 89).

Atualmente, busca-se apagar a economia política do pensamento econômico, pois este é visto como o campo de decisões sobre meios escassos em função de fins dados, por conta dos consumidores ou da política, ou seja, estes despendem suas rendas em forma de demanda, uma vez que elas acabam sendo compreendidas pelo mercado como metas; dessa forma, a produção acaba por ser vista como lucro, caso sejam satisfeitas as demandas daqueles consumidores.

A teoria neoclássica, portanto, considera um plano de fins, que é extra econômico e que é expresso pela demanda derivada da renda dos consumidores, em função dos quais são dirigidos os esforços produtivos. Trata-se de uma conceitualização do econômico na qual não teria nenhum sentido a afirmação de algo como uma última instância econômica, tão importante na economia política (ASSMANN;

HINKELAMMERT, 1989, p. 85).

A economia neoclássica transformou o pensamento burguês e suas universalidades, tendo sido agregada pela corrente principal da sociologia e expressa de forma genérica na doutrina de Max Weber, diante dos juízos de valor. Assim, foram confrontadas a economia política e a teoria da destinação dos recursos em sua forma neoclássica, sendo o pensamento burguês dominante, ainda que intrinsicamente ligado à economia política marxista.

Com essa problemática, logrou-se êxito em resolver a alocação ótima dos recursos, o que concedeu à economia uma nova perspectiva. Assim como à época de Marx, que rompeu os pensamentos outrora considerados pela economia política vigente, passou-se a uma visão socialista, reconhecida pelos neoclássicos – Oscar Lange (nos anos 1930), Horyat e Venek –, voltando a aparecer apenas posteriormente os elementos da economia política que vigorava, com novas teorias – Keynes (insiste na necessária reprodução da força do trabalho, buscando elementos políticos para tanto) e Schumpeter (com menor impacto, mas com as mesmas ideias). Contudo, apesar do retorno desses elementos desta economia política, vê-se que, para o funcionamento do aspecto de reprodução, nem todas as decisões e aspirações subjetivamente aceitáveis são objetivamente possíveis, tendo em vista que a reprodução impõe um padrão objetivo: destinação ótima dos recursos, de suma importância, necessários e imprescindíveis. Por isso, visualiza-se uma diferença entre a economia política e o

pensamento neoclássico: aquela se preocupa com a teoria neoclássica e este, apenas com a destinação ótima dos recursos.

No mundo burguês atual as falhas da reprodução dos fatores de produção se fazem notar de uma maneira nova e inauditamente urgente. Apenas em parte surgiram nos próprios países do centro. Com muito mais força impulsiva se fizeram notar nos países dependentes, ameaçando a própria estabilidade do centro obrigando a um enfoque diferente por parte dos organismos políticos que definem a política imperial dos centros em relação aos países dependentes (ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 92).

Com esse entendimento, observa-se que esses problemas consistem na extrema miséria, na expulsão dos produtores potenciais do sistema de divisão mundial do trabalho, na explosão demográfica, na progressiva destruição do meio ambiente e no desperdício desenfreado de obras notáveis, problemas provenientes dos fracassos da ideia de reprodução dos fatores de produção. A incapacidade de compreensão da teoria neoclássica pode gerar crises que podem conduzir à destruição humana; por isso, voltou a preocupação a enfoques teóricos acerca da reprodução dos fatores de produção, entendendo-se reprodução como reprodução da vida humana, emprego, meio ambiente etc. Entretanto, apenas a partir da Segunda Guerra Mundial houve uma progressiva revitalização da economia política.

A chamada nova economia política, inicialmente, foi baseada nas ideias de Marx; não poderia ter surgido pelo pensamento burguês, para que não entrasse em novo colapso. Assim, acabou surgindo nos departamentos de estudo e planejamento dos próprios organismos políticos que faziam a política do império. Verifica-se que, a partir do fundamentalismo cristão dos Estados Unidos da América, foi formulada uma nova teologia do império, ou seja, passou-se a ver a economia como um todo, de forma mundial, e o sistema de mercado de forma distinta ao que se tinha em outras décadas. Com isso, acabou surgindo o neoliberalismo antiestatal, consequência da visão do sistema mundial.

Recorda-se que, no passado, a chamada ideologia imperial baseava-se em um capitalismo intervencionista, que sustentava uma política reformista no Estado. Essa marca fica muito evidente nos anos 1970, com o surgimento de um ceticismo profundo em relação ao intervencionismo capitalista, assemelhando-se ao reformismo do Estado, subvertendo o próprio caráter opulento da sociedade, pois esse reformismo demonstra que poderia destruir a sociedade abastada.

Um antecedente importante para esta interpretação é a experiência chilena dos anos sessenta. O governo democrata-cristão de Eduardo Frei inicia no Chile um processo de reformas sociais intenso e sério. Expressa-se especialmente na reforma agrária e

no fomento da organização popular pela Promoção Popular nos bairros marginais e no campo. (ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 101).

Antes do século XVI, o império cristão encontrava sua lógica na expansão pela crucifixão de crucificadores, as chamadas cruzadas. Após esse século, a lógica foi substituída pela da sociedade burguesa. Nessa época, a burguesia interpretava a lei de Deus no sentido do

“porei minhas leis em seus corações e em suas mentes a gravarei, e de seus pecados e iniquidades não me recordarei”, de uma forma mais conhecida como lei do mercado, que, a partir de John Locke, é tratada como lei de Deus, nesse sentido, e como lei natural (HINKELAMMERT, 1999, p. 29).

Com o passar do tempo, ultrapassando a Idade Média, Lúcifer/Satanás aparece como o caos e a lei natural não é mais a lei de mercado, visto que ela salva desse caos. Outrossim, Lúcifer é dos nomes mais primitivos de Jesus.

A lei natural, como lei do mercado, mantém em xeque o caos. Em todo lugar em que se vê ameaçada, vê-se a ameaça deste caos, e com isso, a ameaça do despotismo. O caos leva ao despotismo, que não passa de um caos organizado. Não obstante, despotismo é qualquer resistência contra as leis de mercado ou qualquer tentativa de intervir nelas (HINKELAMMERT, 1999, p. 30).

Isso significa que a nova lei de Deus, ou lei natural, substitui a lei religiosa do império cristão medieval e, por isso, todos aqueles resistentes a esta são considerados inimigos da humanidade ou, ainda, inimigos da espécie humana, como diz John Locke, assim como na Idade Média, quando aqueles que desprezavam o “sangue de Cristo” eram inimigos. Dessa feita, vê-se que são exatamente esses sujeitos que querem submeter a população a viver sob a égide das leis de mercado, isto é, aqueles que querem o despotismo, tornando essa população escrava e tirando-lhe a liberdade. Nesse sentido, afirma John Locke, citado por Hinkelammert, que há três legítimos poderes: o poder patriarcal na família (pai e mãe, em benefício dos filhos, durante a menoridade destes, para poder gerir e administrar suas propriedades); o poder político no Estado (os governantes em benefício de seus súditos, para garantir-lhes segurança na posse e desfrute de suas propriedades); e o poder despótico diante de todos que não têm propriedade, especialmente os escravos (o sequestro ou a perda de liberdade, por outorga de terceiro, em benefício próprio, sobre aqueles que não possuem propriedade).

Parece que, para John Locke e Adam Smith, quase todos os países do mundo são despóticos, exceto a Inglaterra, não havendo dúvidas, para Smith, que esse poder é exercido pela burguesia. Em virtude disso, Hinkelammert cita que o despotismo é tudo que não se

submete às leis do mercado, sendo um poder absoluto e sem leis, necessário para pôr em xeque outro despotismo, ou seja, seria muito mais simples a execução de lei favorável aos escravos do que a elaboração de outras leis, visto que tal ação à época era praticamente impossível, devido aos próprios membros das Assembleias serem amos que praticavam violência contra os escravos.

Consequentemente, se a sociedade burguesa efetua uma crítica de violações dos direitos humanos, ela o faz sempre contra estes pretensos despotismos, comprovando que suas próprias violações dos direitos humanos são necessárias como consequência de sua luta contra as violações de per si cometidas pelos outros.

Desde essa perspectiva, as violações burguesas dos direitos humanos perdem toda importância, e a sociedade burguesa chega a ser uma sociedade sem nenhuma consciência moral perante às próprias violações desses direitos (HINKELAMMERT, 1999,p. 35).

Verifica-se que todas essas violações a direitos e violências cometidas são sacrifícios do mundo ocidental para chegar a um futuro, em nome de uma lei natural do mercado, fonte do despotismo dos sacrifícios humanos e das violações dos direitos humanos. Da mesma forma, atualmente pode-se considerar um sacrifício quando um banco cobra dívidas externas de um país de Terceiro Mundo ou em desenvolvimento, levando-o a sacrificar a si mesmo ou outros, provocando genocídios para cumprir o dever ou por razões morais de determinado Estado a título de manter sua soberania.

O mundo ocidental cometeu inúmeros sacrifícios humanos em prol de uma lei de mercado; na realidade, eles eram cometidos com a finalidade de destruir o despotismo, para lograr a liberdade. Assim, quanto mais o mercado viola os direitos humanos, mais tende a se expandir e a demonstrar que apenas se expandirá por meio da violência, acusando outros países que não seguem essa linha frenética de mercado, de violações a direitos (HINKELAMMERT, 1999, p. 39-40).

Por isso os países socialistas devem aparecer como despóticos, para que as próprias violações dos direitos humanos apareçam como passos necessários para impedir tais despotismos e, portanto, como sacrifícios sobre o altar da humanização. A condição continua sendo a tese de que a expansão de mercado é necessariamente a expansão, para poder sustentar todo esse processo como promessa utópica (HINKELAMMERT, 1999, p. 41).

Com essas passagens históricas, observa-se que o mercado traduz-se em certa anarquia, com foco em confusões e consequentes crises, sendo a interpretação cristã no sentido de um problema de ordenação, pois a doutrina da Igreja atribui ao Estado um papel indispensável, mas subsidiário. A encíclica Quadragesimo anno contém a formulação clara

desse princípio, conhecido como subsidiariedade: “A mudança de condições sociais faz com que só as grandes sociedades possam hoje levar a efeito o que antes podiam até mesmo as pequenas” (QA 79).

O Papa afirma, com certa solenidade, o princípio que anteriormente mencionado:

Permanece, contudo, imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para confiar à coletividade, do mesmo modo, passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e uma perturbação da boa ordem social.

O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, e não destruí-los nem absorvê-los (QA 79).

Denota-se que há necessidade de uma sociedade orgânica, de instituições intermediárias, a fim de evitar a todo custo uma situação na qual indivíduos e Estado afrontem-se sem mediações, ou seja, o individualismo não pode ser considerado maior do que a coletividade, visto que é preciso haver a organização da economia. Por esse motivo, o princípio da subsidiariedade é exatamente o contrário de um princípio individualista, havendo necessidade de uma concepção orgânica sobre a sociedade, uma vez que a função subsidiária do Estado é, ao mesmo tempo, necessária e abrangente, assim como Pio XI mostra no texto da Quadragésimo anno, 80. Além disso, João Paulo II cita que seria preciso libertar-se do domínio econômico avassalador, devendo-se distingui-lo para evitar a massificação, contando com uma autoridade para controlar o mercado (BIGO; ÁVILA, 1981, p. 248).

João XXIII, na encíclica Mater et Magistra, designa, pela primeira vez, essa organização social como um processo de socialização, definindo-se como: crescente intervenção dos poderes públicos “mas também como resultado da tendência natural, quase incontrolável, dos homens em comum” (MM 69) (BIGO; ÁVILA, 1981, p. 248).

Leão XIII, na Rerum Novarum, falando nas associações de trabalhadores para a defesa de seus direitos, já recomendava a mesma doutrina, como acima mencionados (RN 35). Esta concepção orgânica da sociedade responde a uma dupla preocupação: pela unidade e pela pluralidade, isto é, nem o homem isolado nem o homem massificado (BIGO; ÁVILA, 1981, p. 248).

Observa-se que ambos tratam da necessidade de buscar os interesses de toda a coletividade e não apenas do indivíduo, visto que o mundo econômico é uma criação da iniciativa pessoal dos cidadãos, mas visa a buscar interesses comuns.

João XXIII, na encíclica Mater et Magistra, enumera as vantagens de um processo de socialização, sem ignorar as ameaças que o podem cometer, a propõe na mesma dupla dimensão: “Como tese inicial, devemos afirmar que o mundo econômico é

criação da iniciativa pessoal dos cidadãos, quer desenvolvam a sua atividade individualmente quer façam parte de alguma associação destinada a promover interesses comuns. Mas nele, pelas razões já mencionadas pelos Nossos Predecessores, devem intervir também os poderes públicos com o fim de promoverem devidamente o acréscimo de produção para o progresso social e em benefício de todos os cidadãos” (MM 48-49) (BIGO; ÁVILA, 1981, p. 249).

Assim, conclui-se que a problemática do mercado resulta de uma articulação da legítima iniciativa dos indivíduos e dos grupos com um planejamento racional, sendo indispensável a coordenação por parte dos poderes públicos para que não haja um livre jogo de oferta e procura, desde que as empresas gozem de autonomia, para que possa haver um equilíbrio entre a iniciativa privada e a intervenção pública, com vistas à eficiência econômica e à justa distribuição da renda, para funcionamento normal das instituições democráticas.