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3 VIRTUDES E ANOMALIAS DA ECONOMIA DE MERCADO

3.4 CAPITALISMO, MERCADO E CONSUMISMO

Consumismo é o ato de utilizar produtos e/ou serviços, indiscriminadamente, sem noção de que podem ser nocivos ou prejudiciais para a saúde ou o ambiente. Aliás, há várias discussões a respeito do tema, entre elas, o tipo de influência que as empresas, por meio da propaganda e da publicidade, bem como a cultura industrial, por intermédio da televisão e do cinema, exercem nas pessoas. Muitos alegam que elas induzem ao consumo desnecessário, sendo este fruto do capitalismo e fenômeno da sociedade atual.

O fenômeno do consumismo insiste em orientar mais para o ter que para o ser, evitando separar corretamente as mais nobres formas de satisfação das necessidades humanas daquelas artificialmente criadas, que influenciam de modo negativo o amadurecimento da personalidade.

3.4.1 Posicionamentos do magistério pontifício

Para opor-se a esse fenômeno, é preciso estabelecer estilos de vida que procurem o verdadeiro e o bom em harmonia com os outros, a fim de que ocorra o desenvolvimento de todos. Esses estilos de vida deveriam pautar-se na sobriedade, na moderação e na autodisciplina, tanto no nível pessoal quanto social. É certo que as influências do contexto social sobre os estilos de vida são importantes. A Populorum progressio ensina que o consumismo deve ser encarado de modo mais contundente, pois as gerações futuras correm o risco de herdar um mundo difícil de viver devido ao consumo exagerado e caótico atual.

Naquilo que lhes é proposto, os povos em via de desenvolvimento devem saber escolher, criticar e eliminar os falsos bens que levariam a uma diminuição do ideal humano, e aceitar os valores verdadeiros e benéficos, para desenvolvê-los, juntamente com os seus, segundo a própria índole (PP 41).

Muitos problemas sociais podem ser solucionados mediante uma análise sobre as necessidades reais de cada pessoa. Com a rapidez no desenvolvimento de novos produtos, criam-se também novas necessidades, que fazem o homem interrogar-se sobre o sentido do seu próprio ser e da sobrevivência coletiva. Nesse sentido, a encíclica Octagesima adveniens13

13A encíclica Octagesima adveniens foi promulgada pelo papa Paulo VI, em 1971, e está impregnada pela questão do pluralismo da presença cristã no mundo atual. O papa reconhece a impossibilidade de oferecer soluções com validade universal e anima as comunidades a chegar a opções concretas. Destaca a aspiração à

(OA) adverte que a competição e a publicidade aliciam as pessoas para o uso de coisas desnecessárias, tornando o ser humano escravo daquilo que ele mesmo produz.

Uma competição desmedida, que utiliza os meios modernos de publicidade, lança sem cessar novos produtos e procura aliciar o consumidor. E, assim, enquanto vastíssimas camadas da população não podem ainda satisfazer as suas necessidades primárias, emprega-se o engenho em criar as necessidades supérfluas. Poder-se-á, pois, perguntar, com toda a razão, se, apesar de todas as suas conquistas, o homem não está voltando contra si próprio os frutos da sua atividade. Depois de se ter assegurado um domínio necessário sobre a natureza, não estará agora se tornando escravo dos objetos que ele mesmo fabrica (OA 9).

Isso significa que a qualidade das relações humanas deve ser mais importante que a quantidade e variedade de bens que se podem produzir e consumir. Por isso, a variação nas exigências e preferências dos consumidores não deve se sobrepor às relações pessoais. O bem-estar material não deve ser um bem superior a tudo ou tornar-se a única razão da vida.

A Solicitudo rei socialis faz importantes alusões ao consumismo quando diz que deveria ser altamente instrutiva a desconcertante verificação de que, ao lado das misérias do subdesenvolvimento, que não podem ser toleradas, a humanidade encontra-se perante uma espécie de superdesenvolvimento, igualmente inadmissível, porque, como o primeiro, é contrário ao bem e à felicidade autêntica.

Com efeito, este superdesenvolvimento, que consiste na excessiva disponibilidade de todo o género de bens materiais, em favor de algumas camadas sociais, torna facilmente os homens escravos da «posse» e do gozo imediato, sem outro horizonte que não seja a multiplicação ou a substituição contínua das coisas que já se possuem, por outras ainda mais perfeitas. É o que se chama a civilização do

«consumo», ou consumismo, que comporta tantos «desperdícios» e «estragos». Um objeto que se possui, e já está superado por outro mais perfeito, é posto de lado, sem tomar em conta o possível valor permanente que ele tem em si mesmo ou para benefício de outro ser humano mais pobre (SRS 28).

É fácil constatar a sujeição cega ao simples consumo, que não deixa de ser uma forma de materialismo grosseiro, e, com ela, um descontentamento radical. Isso se dá porque

“aqueles que mais consomem parece não estar preparados contra o forte apelo publicitário e a intensa oferta de produtos, pois quanto mais se tem mais se deseja, enquanto as aspirações mais profundas permanecem insatisfeitas, e talvez fiquem mesmo sufocadas” (SRS 28), pois possuir bens não aperfeiçoa o ser humano se eles não contribuem para a maturação e enriquecimento do seu ser.

igualdade e à participação, ambas formas oriundas da dignidade e liberdade do homem, e indica a democracia como resposta mais adequada para organizar a convivência social.

Apesar de não negar que o ser humano tem necessidade de consumir aqueles novos produtos criados graças aos avanços tecnológicos, que podem trazer bem-estar, a encíclica chama atenção para o risco do excesso de consumo, que nenhum benefício poderá trazer. “O perigo do abuso do consumo e o aparecimento das necessidades artificiais não devem, de modo algum, impedir a estima e a utilização dos novos bens e dos novos recursos postos à nossa disposição; devemos mesmo ver nisso um dom de Deus” (SRS 29).

A Centesimus annus concorda que se pode e deve dar à vida mais qualidade, mas manifesta-se uma determinada cultura, como concepção global da vida. É aqui que surge o fenômeno do consumismo. Individuando novas necessidades e novas modalidades para a sua satisfação, é necessário deixar-se guiar por uma imagem integral do homem, que respeite todas as dimensões do seu ser e subordine as necessidades materiais e instintivas às interiores e espirituais (CA 36).

Caso contrário, explorando diretamente seus instintos e prescindindo, de diversos modos, da sua realidade pessoal consciente e livre, podem-se criar hábitos de consumo e estilos de vida objetivamente ilícitos e frequentemente prejudiciais à saúde física e espiritual.

O sistema econômico, em si mesmo, não possui critérios que permitam distinguir corretamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas daquelas artificialmente criadas, que se opõem à formação de uma personalidade madura.

A encíclica alerta, ainda, para a necessidade de educar os consumidores e chama atenção para a responsabilidade daqueles que produzem bens, dos meios de comunicação e do Estado em relação à correta maneira de consumir, sem que esse ato seja gerador de mais problemas, que tenderiam a causar ainda mais prejuízos ao indivíduo e à sociedade.

Torna-se por isso necessária e urgente, uma grande obra educativa e cultural, que abranja a educação dos consumidores para um uso responsável do seu poder de escolha, a formação de um alto sentido de responsabilidade nos produtores, e, sobretudo, nos profissionais dos mass-media, além da necessária intervenção das Autoridades públicas. Um exemplo flagrante de consumo artificial, contrário à saúde e à dignidade do homem, certamente difícil de ser controlado, é o da droga. A sua difusão é índice de uma grave disfunção do sistema social, e subentende igualmente uma leitura materialista, em certo sentido, destrutiva das necessidades humanas.

Deste modo a capacidade de inovação da livre economia termina atuando-se de modo unilateral e inadequado. A droga, como também a pornografia e outras formas

de consumismo, explorando a fragilidade dos débeis, tentam preencher o vazio espiritual que se veio a criar (CA 36).

Ora, se a produção e o consumo das coisas tornarem-se o único valor social, independentemente de qualquer outro, a causa disso deverá ser procurada, principalmente no fato de que todo o sistema sociocultural, ignorando as dimensões ética e religiosa, ficou debilitado, limitando-se apenas à produção de bens e serviços, sem observar a integralidade da pessoa.

A liberdade econômica é apenas um elemento da liberdade humana. Quando aquela se torna autônoma, isto é, quando o homem é visto mais como um produtor ou um consumidor de bens do que como um sujeito que produz e consome para viver, então ela perde a sua necessária relação com a pessoa humana e acaba por a alienar e oprimir (CA 39).

Por sua vez, a Caritas in veritate anuncia uma nova força política mundial: a força dos consumidores e suas associações, considerando-a desejável como fator de democracia econômica.

A interligação mundial fez surgir um novo poder político: o dos consumidores e das suas associações. Trata-se de um fenômeno carecido de aprofundamento, com elementos positivos que hão de ser incentivados e excessos que se devem evitar. É bom que as pessoas ganhem consciência de que a ação de comprar é sempre um ato moral, para além de econômico. Por isso, ao lado da responsabilidade social da empresa, há uma específica responsabilidade social do consumidor. Este há de ser educado sem cessar, para o papel que exerce diariamente e que pode desempenhar no respeito dos princípios morais, sem diminuir a racionalidade econômica intrínseca ao ato de comprar (CV 66).

O ser humano não deve viver somente para uma realidade material, não pode transformar-se em escravo do consumo de bens, tampouco existir para falsas utopias, pois se alienaria. O homem alienado é aquele que se recusa a transcender e viver a experiência do dom de si e da formação de uma autêntica comunidade humana, orientada para seu destino último, que é Deus. Alienada é a sociedade que, no seu modo de organização social, produção e consumo, torna mais difíceis a efetivação desse dom e a construção da solidariedade entre os homens.

3.4.2 Elementos de análise

As relações do homem com a natureza conduzem à necessidade, à propriedade, ao trabalho e à criação do capital. Quando se trata desse ponto, surgem as empresas, que são como comunidades, as quais possuem como elemento fundamental as relações sociais,

sobretudo, relações de troca. Marx vê os trabalhadores unidos, na mesma força social, como um produto social, porém acaba por sofrer uma problemática de distribuição do produto a ser consumido. No sentido econômico, o respeito às pessoas faz-se com a livre troca, apesar de a Igreja não concordar com o livre comércio, mas entender sua importância (CALVEZ, 1995, p.

173).

Espiritualidade, na tradição cristã, é o seguimento de Jesus, mas pouco tem sido escrito sobre outra espiritualidade, muito presente em nossas sociedades: a espiritualidade de mercado, mística que move os homens e mulheres dentro do sistema de mercado, principalmente os empresários e consumidores de alto poder aquisitivo. Shopping centers são novos espaços sagrados, onde os devotos, que vão contemplar ou comprar as mercadorias-fetiche, merecem maior atenção. Nesse contexto, a queixa de que pessoas vão pouco às igrejas carece de fundamentos. As pessoas “modernas” vão às igrejas, mas não mais às tradicionais;

elas vão aos novos templos: shopping centers.

No passado, não tão distante, quando alguém se sentia deprimido, menos gente, ia à igreja rezar para recuperar sua humanidade no contato com o sagrado, pois este tem a capacidade de restaurar a humanidade perdida. Por isso, as sociedades criaram diversos espaços (templos) e tempos (festas litúrgicas) sagrados para propiciar mais oportunidades de contato com o sagrado que “purifica” as pessoas. Hoje, quando alguém com um pouco de poder aquisitivo sente-se deprimido, indignado, vai ao shopping center fazer compras para resgatar seu valor, sua dignidade. É no contato com o novo sagrado que as pessoas sentem-se mais fortalecidas para enfrentar o seu dia a dia de competição e concorrência no mercado.

A mística que move as pessoas no capitalismo é ganhar dinheiro para ganhar mais dinheiro ou comprar cada vez mais. Parece que no consumo elas se reconhecem como gente e, por isso, se sentem mais gente. Ter se torna a condição para ser (SUNG, 1992, p. 104). Daí vem a ansiedade de consumo vista no cotidiano. De fato, numa sociedade capitalista, a pessoa tem sua dignidade reconhecida no mercado, de modo que os pobres são marginalizados precisamente pela sua impossibilidade de acesso ao mercado. Como eles não possuem dinheiro que lhes permita a entrada no mercado, não têm sua dignidade humana reconhecida pela sociedade, tornando-se as “não pessoas” da sociedade (SUNG, 1992, p. 105). Para reafirmar sua humanidade e resistir à pressão imposta pela sociedade, buscam outro espaço sagrado, o templo tradicional, onde talvez sejam reconhecidos. Em outras palavras, buscam na igreja sua humanidade perdida no mundo.

Um dos espaços abertos a essas necessidades dos pobres é a igreja pentecostal, que tem como característica a livre participação de todos os fiéis nos cultos, certos de que o

Espírito Santo os ouve, além de seus irmãos na fé. Isso os faz reconhecidos como pessoas, recuperando em parte sua dignidade humana, pois é o contato com o sagrado que lhes devolve a humanidade. Quando um crente diz: “O sangue de Jesus tem poder!”, quer dizer, na verdade, que ele, que não é nada no mundo, que tem poder, porque se sente incluído entre aqueles que participam dos poderes de Jesus. Nesse espaço, realiza a esperança de ser alguém, de ser reconhecido por outros.

Contudo, essa forma de resistência dos pobres tem limites, que os fazem ser facilmente cooptados pelo sistema de mercado. Em não poucas igrejas pentecostais, a reconquista da humanidade, via comunidade dos “salvos”, é feita novamente pelos mecanismos de mercado: compra-se a salvação, ou seja, a pertença a esse povo eleito está condicionada a diversos tipos de contribuição financeira. Além disso, reproduzem-se os mecanismos excludentes de mercado: os que não são consumidores dessa religião, os que pertencem à outra religião ou igreja, são excluídos da salvação, tornando-se, novamente, não pessoas (SUNG, 1992, p. 106).