• Nenhum resultado encontrado

4 POR UMA ECONOMIA DE MERCADO FUNDADA NA JUSTIÇA E NO BEM

4.3 O DESAFIO DE UMA HUMANIZAÇÃO DO MERCADO

O termo ‘humanização’ pode ser definido como qualquer movimento filosófico que tome como fundamento a natureza humana ou os limites e interesses do homem. Humanizar o mercado é fazer com que as empresas, a tecnologia, a mídia e também o Estado voltem-se para os interesses reais do ser humano, fazendo do seu bem-estar o maior objetivo.

4.3.1 Posicionamentos do magistério pontifício

As incertezas e complicações do mercado exigem de quem dele participa uma limitação de ânimo. É grande o número daqueles que julgam serem lícitos todos os meios de fazer crescer os lucros e proteger sua riqueza, conquistada com muito esforço, contra as adversidades. A facilidade dos lucros, oferecida pelo mercado, conduz muitos a praticar o comércio não o entendendo como uma forma de serviço, mas simplesmente para enriquecer sem muito trabalho, com exagerada especulação. Esses muitos devem saber que “nunca será demasiado reprovar tais abusos, lembrando mais uma vez, solenemente, que a economia está ao serviço do homem” (PP 24). Isso porque a solidariedade deve ser o princípio social ordenador das instituições humanas, pois “as estruturas de pecado que dominam as relações entre as pessoas e os povos devem ser superadas e transformadas em estruturas de solidariedade, mediante a criação ou modificação de leis e regras do mercado” (SRS 36).

A Doutrina Social não condena o lucro, mas reconhece que ele tem uma função, podendo servir como um indicador do funcionamento da empresa, pois, quando ela apresenta lucro, significa que está sendo bem gerida. Contudo, o lucro não deve ser o exclusivo indicador das condições da empresa, uma vez que pode acontecer que se tenha bom lucro e, ao mesmo tempo, as pessoas que trabalham na empresa sejam afrontadas na sua decência.

A Solicitudo rei socialis disserta que há uma espécie de absolutização dos comportamentos humanos e que o lucro e o poder são, no mercado, os únicos objetivos.

Entre as ações e as atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do próximo e as estruturas a que elas induzem, as mais características hoje parecem ser sobretudo duas: por um lado, há a avidez exclusiva do lucro; e, por outro lado, a sede do poder, com o objetivo de impor aos outros a própria vontade. A cada um destes comportamentos pode juntar-se, para os caracterizar melhor, a expressão: a qualquer preço. Por outras palavras, estamos diante da absolutização dos comportamentos humanos, com todas as consequências possíveis (SRS 37).

É evidente que não apenas as empresas ou pessoas são atingidas por esse modo de pecado, mas também as nações.

Se certas formas modernas de imperialismo se considerassem à luz destes critérios morais, descobrir-se-ia que por detrás de certas decisões, aparentemente inspiradas só pela economia e pela política, se escondem verdadeiras formas de idolatria: do dinheiro, da ideologia, da classe e da tecnologia (SRS 37).

A crise financeira atual, que abarca, em maior ou menor grau, o mundo todo, traz um grande desafio: “mostrar que devem ser observados os princípios tradicionais da ética social,

como a transparência, a honestidade e a responsabilidade” (CV 36); no mercado, os princípios da gratuidade e fraternidade devem também encontrar espaço dentro da atividade econômica.

A Caritas in veritate define solidariedade e afirma que sem ela não pode haver justiça.

Afirma também que, no mercado, deve haver lugar para empresas com finalidades sociais.

A solidariedade consiste primariamente em que todos se sintam responsáveis por todos e, por conseguinte, não pode ser delegada só ao Estado. Se, no passado, era possível pensar que havia necessidade primeiro de procurar a justiça e que a gratuidade intervinha depois como um complemento, hoje é preciso afirmar que, sem a gratuidade, não se consegue sequer realizar a justiça. Assim, temos necessidade de um mercado, no qual possam operar, livremente e em condições de igual oportunidade, empresas que persigam fins institucionais diversos. Ao lado da empresa privada orientada para o lucro e dos vários tipos de empresa pública, devem poder-se radicar e exprimir as organizações produtivas que perseguem fins mutualistas e sociais (CV 38).

Pode-se, dessa maneira, esperar que das relações entre vários modelos de empresa surja tanto uma mistura de comportamentos quanto, em consequência disso, um mercado mais solidário. “Neste caso, caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização àquelas iniciativas econômicas que, embora sem negar o lucro, pretendam ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si mesmo” (CV 38).

4.3.2 Elementos de análise

Acerca do que os homens fazem, Arendt (2001, p. 14-15) define três atividades centrais correspondentes às condições de se manter vivo, como condição de vida comum a homens e animais sujeitos à necessidade de prover a própria subsistência, levando à continuidade da espécie: o trabalho, como atividade de criação de um universo artificial e não do ambiente natural, transcendente ao individual; a ação, como atividade política, para condição de existência do homem sobre a terra; e o Homo faber (evolução do trabalho, fabricador de coisas) e o Animal laborans.

Ação [...] Atividade exercida entre homens, independentemente da produção de coisas ou da manutenção da vida, devido ao fato de que os homens e o homem vivem na terra e habitam o mundo (ARENDT, 2001, p. 15).

Quando trata dos homens, definem-se vontade, pensamento e julgamento – três estados que demonstram a vida do intelecto. Arendt destaca, ainda, que a era moderna não produziu nenhuma teoria que distinga o Animal laborans do Homo faber, porém inverteu as

tradições, como, por exemplo, a tradicional hierarquia dentro da vita activa, a qual tratava o trabalho como fonte de todos os valores. A autora também faz críticas a Karl Marx e Adam Smith, por menosprezarem o trabalho improdutivo; segundo Marx, a necessidade de se vestir, por exemplo, forçou o homem a confeccionar seu vestuário durante milhares de anos, antes que alguém se tornasse alfaiate, visto que o trabalho como produtor de valores de uso é, independentemente das formas de sociedade, condição da existência do homem. Acerca desse contexto, cita Arendt (2010, p. 98):

em outras palavras, a distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo contém, embora eivada de preconceito, a distinção mais fundamental entre obra e trabalho. Realmente, é típico e todo trabalho nada deixa atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido quase tão depressa quanto o esforço é despendido. E, no entanto, este esforço, a despeito de sua futilidade, decorre de enorme premência;

motiva-o um impulso mais poderoso que qualquer outro, pois a própria vida depende dele. A era moderna em geral e Karl Marx em particular, fascinados, por assim dizer, pela produtividade real e sem precedentes da humanidade ocidental, tendiam quase irressistivelmente a encarar todo o trabalho como obra e a falar do animal laborans em termos muito mais adequados ao homo faber, como a esperar que restasse apenas um passo para eliminar totalmente o trabalho e a necessidade.

Aduz, ainda, que na era moderna não há uma distinção entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, havendo foco na produtividade do trabalho. Portanto, não importa ao capitalismo os diferentes tipos de trabalho, preocupando-se apenas com a compra e venda no mercado de trabalho e com a força de trabalho, priorizando a produtividade; já a vida activa resume-se à experiência humana que existe, inspira e mostra o mundo como um todo:

Vistos como parte do mundo, os produtos da obra – e não os produtos do trabalho – garantem a permanência e a durabilidade sem as quais o mundo simplesmente não seria possível. É dentro desse mundo de coisas duráveis que encontramos os bens de consumo com os quais a vida assegura os meios de sua sobrevivência. Exigidas por nosso corpo e produzidas pelo trabalho deste último, mas sem estabilidade própria, essas coisas destinadas ao consumo incessante surgem e desaparecem num ambiente de coisas que não são consumidas, mas usadas, e às quais, à medida em que as usamos, nos habituamos e acostumamos. Como tais, elas geram a familiaridade do mundo, seus costumes e hábitos de intercâmbio entre os homens e as coisas, bem como entre homens e homens. O que os bens de consumo são para a vida humana, os objetos de uso são para o mundo do homem. É e a linguagem, que não permite que a atividade do trabalho produza algo tão sólido e não-verbal como um substantivo, sugere a forte probabilidade de que nem mesmo saberíamos o que uma coisa é se não tivéssemos diante de nós 'o trabalho de nossas mãos (ARENDT, 2010, p. 106).

Dessa feita, para a autora, a natureza, o movimento cíclico que ela expressa, a força e as coisas vivas não sabem como funciona o nascimento e a morte, assim como se conhece.

Entende ainda que, levando em consideração o pensamento de Marx, ou seja, sendo o homem

um ser que trabalha, ocorre uma problemática: para uma sociedade igualitária, socialista, o homem seria apenas aquele que trabalha, o que o reduz a um ser que apenas fabrica e não um ser politizado.