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2 O NÃO-MUNDO E O AMOR MUNDI

2.1 A alienação da Terra

No último capítulo de A condição humana Arendt faz uma análise histórica das origens da ”alienação moderna do mundo em seu duplo aspecto: a fuga da Terra para o universo e a fuga do mundo para a consciência” (ARENDT, 1960, p. 13, tradução nossa)35. Ponto de partida para essa reflexão é a afirmação de que os seres humanos, como habitantes da Terra, vivem sob determinadas condições. Na Era Moderna, porém, passaram a comportar-se como se fossem habitantes do universo. Nessa nova perspectiva, isto é, do ponto de vista do espaço, a Terra é apenas um planeta entre outros. Assim, para os seres humanos, que perderam sua posição firme, tudo no universo tornou-se relativo, já que a Terra se mover em torno do Sol ou o Sol em torno da Terra depende unicamente da perspectiva que assumimos. Essa perda do ponto de referência fixo e as possíveis mudanças de perspectiva têm consequências radicais – científicas, filosóficas e, finalmente, políticas. O fenecimento de certezas, a desconfiança frente àquilo que vemos e a consequente insegurança acometem nossa relação com a Terra e abalam o mundo humano.

No início do livro, Arendt explica que a existência dos seres humanos na Terra está submetida a determinadas condições – que lhes são dadas e que, portanto, não são nem escolhidas nem criadas por eles. Como vimos, são elas a vida, que implica a necessidade biológica de sobrevivência, a mundanidade, o fato de habitarem um mundo duradouro, e a

pluralidade, o “estar entre os homens” (ARENDT, 1983b, p. 15). A essas condições correspondem as diferentes atividades humanas: trabalhamos para viver, fabricamos artefatos que compõem um mundo objetivo e estável, e ao agir estabelecemos um espaço de convivência. Com as obras e as ações humanas, surgem, por sua vez, novas condições de existência. Assim, as pessoas estão sujeitas às condições da Terra e também às do mundo humano, em cujo futuro podem intervir, mas cujo passado é dado e imutável, tal como as condições terrenas.

Além disso, os homens vivem sob as condições da natalidade e da mortalidade, isto é, sua vida é finita e, em comparação à Terra e ao mundo, ela é passageira. As saídas procuradas pelos seres humanos diante dessa condição mais geral foram diversas ao longo de sua história. Os gregos, por exemplo, para quem a mortalidade era característica do homem frente a um cosmos eterno e à imortalidade dos deuses, enxergavam na pólis uma possibilidade de tornarem imortais não a si mesmos, mas ao menos seus feitos e suas palavras. Encontraram, portanto, uma forma de superar a finitude de cada indivíduo por meio do mundo humano, que, para eles, era por excelência o mundo da política (ARENDT, 1983b, p. 209-210). A resposta grega sofre uma reviravolta fundamental com o cristianismo, que, segundo Arendt, transferiu a imortalidade do mundo para a alma. Assim, o próprio mundo se tornou passageiro, isto é, se transformou numa passagem para a eternidade – resposta divina para a angustiante finitude da vida humana. Para a autora, o cristianismo deprecia o espaço humano, que é negado em favor da transcendência.36

Não obstante viverem sob condições que não podem modificar, os homens são dotados de uma liberdade. Se, por um lado, não têm escolha quanto à necessidade de cuidar de sua sobrevivência, por outro lado, eles podem criar espaços de liberdade. Neles cada um pode se mostrar e agir, sem estar sob o jugo da necessidade, isto é, pode realizar algo que depende unicamente de sua própria iniciativa e dar sua singular contribuição. Nessa ação livre cada ser humano se dirige e responde aos outros diferentes, de modo que surge um espaço-entre, onde todos podem interferir e no qual o exercício da liberdade é possível. A pluralidade, o fato de vivermos sempre no plural, não é empecilho para a liberdade, mas, muito pelo contrário, nos impele a agir com liberdade.37 Se, por um lado, não somos nós que escolhemos a pluralidade, já que ela é dada, por outro lado, é ela que nos dota de uma potencial liberdade. A liberdade, porém, não é ilimitada, mas se restringe a certas esferas da existência, nas quais os seres humanos de fato são poderosos. No entanto, em relação ao universo em sua imensidão, os

36 Trataremos da relação de Arendt com o cristianismo mais adiante, neste capítulo. 37 Sobre os conceitos de pluralidade e liberdade, ver também capítulo 3.

seres humanos, até o advento da Era Moderna, se sentiam pequenos. Eles eram “frágeis, ignorantes, fúteis e limitados” frente à grandeza do cosmos ou da criação.

No início da Era Moderna, o “descobrimento”38 de novos continentes por navegadores europeus faz com que a Terra perca suas dimensões não cognoscíveis. Depois, os meios de transporte eliminam, cada vez mais, as distâncias reais, com o resultado de que hoje “cada homem é tanto habitante da Terra como habitante do seu país” (ARENDT, 1983b, p. 262). Ao mesmo tempo, a ciência é capaz de reduzir o que é fisicamente imenso a números, símbolos e modelos que são manejáveis. Assim, a Terra perdeu sua admirável imensidão e tornou-se um objeto: o globo terrestre foi trazido para “nossa sala de estar, para tocá-lo com as mãos e fazê- lo girar diante dos olhos” (ARENDT, 1983b, p. 263).

Mais marcante ainda foi a invenção do telescópio. Esse instrumento permitiu que os homens percebessem com os próprios olhos aquilo que sempre fora inacessível ao conhecimento humano, sendo apenas objeto de especulação.

O que Galileu fez e que ninguém havia feito antes foi usar o telescópio de tal modo que os segredos do universo foram revelados à cognição humana ‘com a certeza da percepção sensorial’; isto é, colocou diante da criatura presa à Terra e dos sentidos presos ao corpo aquilo que parecia destinado a ficar para sempre fora do seu alcance e, na melhor das hipóteses, aberto às incertezas da especulação e da imaginação (ARENDT, 1983b, p. 272).

Com isso os limites impostos ao olhar de qualquer ser terreno deixaram de existir para os homens. O conhecimento do ser humano não se restringe mais à Terra, mas alcança o universo, o que leva à perda da Terra como único e necessário ponto de referência. Desde então podemos olhar para a Terra e operar com elementos da natureza como se não pertencêssemos a ela, mas sim ao universo.

Assim, a invenção do telescópio representa um evento totalmente inesperado para as criaturas terrestres. Surge com ele “a assombrosa capacidade humana de pensar em termos de universo enquanto permanecia com os pés neste planeta, e a outra capacidade humana, ainda mais assombrosa, de empregar as leis cósmicas como princípios guiadores da ação da Terra” (ARENDT, 1983b, p. 276).

Se, por um lado, a invenção abriu caminho para novas potências humanas, por outro, esse instrumento mostrou que não podemos confiar em nossos próprios olhos e em nossa experiência diária de que o Sol nasce de um lado da Terra e se põe do outro. Despertam assim a desconfiança e a dúvida em relação a nossas percepções, que podem ser não somente

limitadas, mas enganosas. Por isso, a invenção do telescópio, de acordo com Arendt, não representa apenas um momento fundamental para a ciência, mas se torna o momento desencadeador da filosofia moderna, que começa com a dúvida cartesiana.

A dúvida arrasadora em relação a tudo que se encontra fora de nós mesmos provoca a retirada do mundo para o self, que passa a confiar apenas em verdades que não podem ser afetadas pela realidade, ou seja, aquelas obtidas por dedução. Tudo que percebemos pode ser uma ilusão, mas podemos afirmar com segurança que “2+2=4”. Nessa ótica, só a correção lógica ou a matemática – as ciências formais – podem garantir um solo estável.

Para Arendt, a grande descoberta de Descartes foi reparar que se podia resolver o problema da relatividade e da falta de referências seguras transferindo o ponto de referência para dentro da própria mente humana. As faculdades de deduzir e concluir são

[...] o jogo da mente consigo mesma, jogo este que ocorre quando a mente se fecha contra toda realidade e ‘sente’ somente a si própria. Os resultados desse jogo são ‘verdades’ convincentes porque, supostamente, a estrutura mental de um homem não difere mais da de outro que a forma do seu corpo (ARENDT, 1983b, p. 296).

Só assim a certeza pode ser absoluta porque, como aponta Arendt com ironia, “nem um Deus nem um mau espírito pode alterar o fato de que dois e dois são quatro” (ARENDT, 1983b, p. 297).

Descartes pensou [worked out] as implicações filosóficas dessa nova suspeita, duvidando de tudo e confiando somente em sua própria mente. [...] Os objetos mundanos [...] que apareciam a todos eram dissolvidos em sensações experimentadas por indivíduos na privacidade de suas próprias mentes, e os filósofos representavam os seres humanos como sendo unidos por nada mais do que uma estrutura mental comum que assegurava que os raciocínios solitários de cada homem devem chegar à mesma conclusão. Em lugar de seres humanos que compartilham um mundo comum, comparando suas diferentes perspectivas sobre ele e, assim, desenvolvendo um senso comum, os homens eram somente ‘animais que são capazes de raciocinar’ (CANOVAN, 1992, p. 151, tradução nossa).

O senso comum que informava sobre a realidade – baseado no fato de que além de mim há pessoas que vêem a mesma coisa a partir de outros pontos, e que ao comunicar-se comigo confirmam sua existência – começa a desmoronar, já que as coisas que todos vêem e sobre as quais podem trocar opiniões podem não ser verdadeiras. A correção das afirmações passa a depender de leis que não são afetadas por percepções e nem sequer pela realidade, mas somente por um raciocínio dedutivo. Agora é a ciência e, por excelência, a matemática que delibera sobre a verdade que se expressa em leis de validade geral.

Ainda em relação ao telescópio, Arendt aponta um outro fator relevante. Esse aparelho evidenciou que a contemplação não era o caminho adequado para obter a verdade, já que esta não se revelava, mas se escondia por trás de aparências enganosas. Era preciso uma investigação ativa, a construção de aparelhos e a realização de experimentos –uma espécie de armadilha capaz de arrancar os segredos da natureza que ela não manifestava por si. “Realmente, nada merecia menos fé para quem quisesse adquirir conhecimento e aproximar- se da verdade que a observação passiva ou a mera contemplação. Para que tivesse certeza o homem tinha que verificar e, para conhecer, tinha que agir” (ARENDT, 1983b, p. 303). Arendt alega que, desse modo, acontece uma inversão entre contemplação e ação, provocada pela experiência de que a “sede humana de conhecimento só pôde ser mitigada depois que o homem depositou sua fé no engenho das próprias mãos” (ARENDT, 1983b, p. 303).

A nova relação que se estabelece com o conhecimento produz um efeito catalisador na ciência, mas também tem consequências em outras esferas, como ainda veremos de modo mais detalhado. Neste ponto, queremos assinalar apenas uma delas, que atinge o âmbito educacional e que é mencionada explicitamente pela autora em seu ensaio sobre educação. Em sua discussão sobre os reflexos da crise do mundo moderno na educação, ela aborda alguns pressupostos básicos que, ao serem aplicados nesse campo, contribuíram para precipitar os problemas nele. Um dos pressupostos está diretamente vinculado a sua análise em A condição humana, em que ela aponta para a crença da nova ciência física de que o homem, “embora não possa conhecer a verdade como algo dado e revelado, [...] pode, pelo menos, conhecer o que ele próprio faz” (ARENDT, 1983b, p. 295). Em A crise na educação, Arendt usa quase a mesma formulação quando se refere ao pressuposto de que “só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fizemos” (ARENDT, 1990a, p. 232). De acordo com ela, ele teria sido aplicado diretamente a uma educação que “[substitui], na medida do possível, o aprendizado pelo fazer” (ARENDT, 1990a, p. 232).

No campo educacional, a idéia de que a aquisição de conhecimentos ocorre de modo ativo, quando os alunos experimentam e manipulam eles mesmos objetos e natureza, foi valorizada, sobretudo, pela escola nova ou ativa. Esta surge no final do século XIX na Europa e passa a ter adeptos também nos Estados Unidos. Manacorda resume suas principais características, explicando que nessa escola de tipo novo

[...] não existiam mais traços de métodos de ensino através de palavras que não fossem traduzidas em ato pelos alunos e [...] os alunos eram treinados para encontrar sozinhos as verdades, a resolver sozinhos os problemas científicos; [...] enfim, o critério fundamental era aprender fazendo, o learning by doing (MANACORDA,1999, p. 309).

Um dos princípios dessa pedagogia é que o conhecimento não seja mais transmitido pelo professor. É a criança que faz descobertas e investiga por conta própria os conteúdos, e que, portanto, não precisa de um professor propriamente dito, mas, sobretudo, do ambiente adequado e de orientações.

Esse princípio tem se tornado um lugar-comum nos discursos pedagógicos. Alguns autores, porém, têm apontado que a aquisição ativa dos conhecimentos tem por “pano de fundo” a idéia equívoca de que pode haver algo como um aprendizado passivo. Ora, qualquer apropriação de conhecimentos precisa de um esforço ativo por parte do aluno: utilizando o raciocínio, a imaginação ou as mãos. Carvalho aponta que o próprio Piaget, um dos principais teóricos da “aprendizagem ativa”, alerta que a ação não ocorre somente no plano físico ou material e que seria uma confusão “pensar que toda ‘atividade’ do sujeito ou da criança se reduz a ações concretas”, posto que, por exemplo, “uma redescoberta pessoal de verdades a conquistar” também pode ser considerada uma atividade (PIAGET apud CARVALHO, 2001, p. 47).

No que diz respeito a um maior envolvimento do aluno no aprendizado, a contribuição da escola nova e de seus sucessores construtivistas pode ter proporcionado alguns ganhos. Contudo, é problemático quando se passa a acreditar que tudo que não parte da própria criança é suspeito de imposição. Tem-se então uma espécie de “auto-educação”, cujo fim não está mais em que o aluno se aproprie de algo que está além dele, ou seja, não se amplia mais o horizonte, mas tudo é reduzido a uma única perspectiva egocêntrica. Esquece-se, portanto, que “no ensino ministrado pelo professor educa-se não só na esperança do desenvolvimento e da realização dos indivíduos, como também na esperança de preservar certas tradições culturais públicas às quais atribuímos valor” (CARVALHO, 2001, p. 67). Consequentemente, a função do professor enquanto mediador entre o mundo e a criança perde seu sentido. Brayner afirma que

[...] os ‘construtivismos’ correspondem, no fundo, a uma nova forma de relação com a cultura e a tradição, que vê as relações intergeracionais como horizontalmente democráticas, as relações pedagógicas como entre iguais, o aluno como cidadão, a cultura como algo que, antes de entendê-la e recebê-la para poder significá-la, eu a ‘construo’ dentro de mim, para que ela faça sentido para ‘mim’, num movimento que apenas ratifica a gramática individualista, em que perdemos pouco a pouco o contato com o mundo [...] (2008, p. 90).

Arendt já aponta para a tendência de a educação voltar sua atenção exclusivamente para o desenvolvimento psicológico dos alunos e para a aquisição de algumas habilidades, em detrimento dos conteúdos. “Sob a influência da Psicologia moderna e dos princípios do Pragmatismo, a Pedagogia transformou-se em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada”, o que resultou “em um negligenciamento extremamente grave da formação dos professores em suas próprias matérias” (ARENDT, 1990a, p. 231). E, no entanto, a matéria de cada professor é exatamente o “pedaço de mundo” que ele deve conhecer bem para apresentar às crianças.

Desse modo, a convicção moderna de que não podemos confiar em nada que não advenha de nós mesmos produz seus efeitos também na esfera da educação. Não se trata evidentemente de negar a importância de cada criança encontrar seu modo de se apropriar dos conteúdos, mas a questão levantada nos alerta que, havendo uma fundamental desconfiança frente à possibilidade de aprender com os mais velhos algo que vale a pena, a educação corre o risco de perder seu vínculo com o mundo.