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A perda da autoridade e da tradição e suas consequências

1 A CRISE NA EDUCAÇÃO

1.4 A perda da autoridade e da tradição e suas consequências

Para Arendt, um dos principais equívocos presentes na educação hoje é a pretensão de libertar as crianças da autoridade dos adultos (ARENDT, 1990a, p. 230), como se fossem “uma minoria oprimida” (ARENDT, 1990a, p. 240), e, por consequência, isentar os adultos de decisões – que somente a eles cabem – a respeito do processo educativo. Essa postura,

24 Isso não significa que, num mundo assentado na autoridade da fundação, fique impedido o exercício

da liberdade. Muito pelo contrário, vimos que a liberdade diz respeito à possibilidade de iniciar algo novo no e para o mundo, mas não a despeito dele ou fora dele. A liberdade política pressupõe a existência do mundo e há critérios (a constituição, por exemplo) que são essenciais ao mundo e que a ação livre não pode simplesmente abolir, a não ser que se passe a realizar uma nova fundação, que seria o propósito das revoluções. Sobre a relação entre liberdade e mundo, ver capítulo 3.

25 Tradição vem do latim traditio, que, por sua vez, vem do verbo tradere: entregar, passar para a

frente, relatar, confiar, entre outros (PONS, 1986, p. 1050).

segundo a autora, está vinculada à recusa quase geral de assumir responsabilidade pelo mundo. Ele não é da forma como pais e professores gostariam que fosse e – assim pensam – não foram eles que o construíram desse modo. Negando sua participação (ativa ou não) no mundo, recusam seu papel como co-autores em sua constituição. Fazendo livre uso de uma expressão idiomática, poderíamos dizer que se recusam a “assinar embaixo”. Essa conduta de desresponsabilização pelo mundo ou até de rejeição a ele impossibilita, em princípio, a tarefa educativa.

Isso, no entanto, é válido apenas se concebemos a educação como indissoluvelmente ligada ao compromisso com o mundo comum, como Arendt o faz. Evidentemente existem outras concepções. Se, por exemplo, o principal objetivo for a aquisição de competências demandadas pelo mercado de trabalho ou, em outras palavras, se a meta se resume a instruir nas técnicas de sobrevivência, o mundo perde relevância e é relegado a um segundo plano, cedendo lugar ao desenvolvimento das habilidades necessárias para realizar da melhor forma possível os propósitos individuais. Nesse quadro não há responsabilidade dupla – pelas crianças e pelo mundo –, mas o educador é apenas uma espécie de “suporte técnico”27 para os seus alunos e, consequentemente, há uma perda substancial de autoridade.

Nesse caso, o passado enquanto fonte da autoridade deixa de desempenhar um papel na educação. O olhar dirige-se exclusivamente para o futuro, o qual, porém, não é mais o tempo de transformação do mundo, mas se dissolve no eterno fluxo da vida e na constante preocupação com a organização e as melhores tecnologias para satisfazer suas exigências. Se a educação deixa de se preocupar com as heranças do passado, os novos também não poderão cuidar do mundo do futuro. Com a perda do legado, resta apenas a subjugação às necessidades incessantes. “Sem tradição [...] parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado e nem futuro, mas tão-somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem” (ARENDT, 1990a, p. 31).

Baseado nessas reflexões de Arendt, Brayner aponta que o professor, como mediador entre os novos e aquilo que já se passou, e a escola, como um “elo de ligação entre gerações” (2008, p. 86-87), se tornam figuras anacrônicas.

Ora, estas idéias se transformaram tão completamente – idéias de infância, de aprendizagem, de relação intergeracional – a ponto de aquilo que se tratava de

27 O “suporte técnico” certamente é avaliado pela sua utilidade e é substituível quando há outros

‘transmitir’, quer dizer, algo que herdamos e que precisamos passar aos outros, agora é tratado como algo a ‘construir’ (BRAYNER, 2008, p. 87).

O modo como nos inserimos no tempo, portanto, tem consequências fundamentais para o lugar da educação. Em seu âmbito tornam-se visíveis os efeitos de “uma época que perdeu [...] suas referências temporais, [e que] sente-se como condenada a eternamente construir e reconstruir, como uma espécie de Sísifo28 cognitivo, emocional, moral, etc.” (BRAYNER, 2008, p. 87-88).29

A falta de compromisso com o mundo frequentemente reforça a tendência de orientar a ação educativa pelo tempo da criança – um presente que, no entanto, sem a dimensão do passado corre o risco de perder seu sentido e que visa preponderantemente ao bem-estar momentâneo e individual. Os adultos deixam de assumir a responsabilidade de contribuir para que a criança supere o exclusivamente imediato e urgente e de ampliar o horizonte, num primeiro momento restrito ao privado e vital, para as dimensões de um mundo comum que se estende além do individual e além do presente.

Arendt descreve, de modo muito ilustrativo, que forma a rejeição da responsabilidade pelo mundo comum pode tomar na educação das crianças:

O homem moderno [...] não poderia encontrar nenhuma expressão mais clara para sua insatisfação com o mundo, para o seu desgosto com o estado de coisas, que sua recusa a assumir, em relação às crianças, a responsabilidade por tudo isso. É como se os pais dissessem todos os dias: - Nesse mundo, mesmo nós não estamos muito a salvo em casa, como se movimentar nele, o que saber, quais habilidades dominar, tudo isso também são mistérios para nós. Vocês devem entender isso do jeito que puderem; em todo caso, vocês não têm o direito de exigir satisfações. Somos inocentes, lavamos as nossas mãos por vocês (ARENDT, 1990a, p. 241-242, grifo nosso).

Essa postura não é simplesmente produto de uma falta de ética (embora também possa ser isso), mas está relacionada ao não se sentir “em casa” no mundo, isto é, dificilmente queremos nos responsabilizar por algo que não nos diz respeito, que não é nosso ou com o qual não nos identificamos.

Na relação com os mais novos, porém, esta atitude em nada se justifica, já que, frente aos recém-chegados que ainda não tiveram nenhuma chance de intervir no mundo e que ainda não assumem responsabilidade, o adulto se caracteriza por ser aquele que teve parte no percurso

28 O autor se refere aqui ao personagem da mitologia grega que se rebela contra os deuses e recebe

como castigo a tarefa de empurrar eternamente uma pedra ladeira acima, sendo que esta, cada vez que quase alcança o topo, rola de novo para baixo.

histórico, tendo ou não participado ativamente nele. Arendt afirma categoricamente: “Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação” (ARENDT, 1990a, p. 239). Além de criticar a problemática ausência de autoridade no âmbito da educação, podemos destacar que as posições de Arendt, embora ela não aborde essa questão de modo direto, também entram em confronto com os discursos pedagógicos atuais que pregam a superação da educação tradicional. Não obstante algumas vozes críticas, parece hoje haver quase um consenso em torno dessa questão. Devido à ampla difusão da idéia no “imaginário pedagógico”, pensamos ser válido destacar alguns pontos de atrito entre ela e a posição de Arendt, sem, no entanto, pretender esgotar o assunto.

O termo educação tradicional permanece em geral vago, servindo, muitas vezes, como “pano de fundo” negativo para realçar os avanços da “educação nova” centrada na criança e os “métodos ativos”. Nesse contexto, os “métodos tradicionais” são com frequência associados à imagem de alunos submissos e de professores autoritários. Assim, muitos discursos pedagógicos dão a entender que a escolha do método de ensino e a seleção de conteúdos resultam, automaticamente e sem influência de outros fatores, numa determinada

conduta do professor frente aos alunos. Dessa forma, “autoridade”, “tradição”, “métodos verbalistas”, “alunos passivos” e “submissos” formariam inevitavelmente um conjunto de elementos interligados, como também haveria uma vinculação necessária entre a “criança ativa”, a “cooperação”, o “trabalho em grupo” e o “respeito mútuo”. Em consequência, a “educação tradicional” é criticada porque se supõe que ela implica automaticamente em métodos e condutas reprováveis não somente por motivos de ordem prática, mas por razões de natureza moral.

Nessa ótica, o termo “tradicional” transforma-se num atributo da conduta do professor em relação à criança. Perde-se de vista a própria tradição enquanto elemento substantivo do ensino. Carvalho, numa referência a Passmore, aponta que a atividade do ensino se caracteriza por sua estrutura triádica. Alguém ensina algo a alguém (2001, p. 73). Esse algo, poderíamos dizer, são os diversos aspectos do mundo humano apresentados aos alunos em forma de disciplinas escolares. A “tradição” é o legado que confiamos aos alunos, o que entregamos em suas mãos. De que modo procedemos para fazer isso é uma questão importante, mas não necessariamente inerente à “tradição” enquanto objeto da educação.

Arendt se abstém de discutir práticas pedagógicas específicas, alegando que isso é a tarefa dos pedagogos (ARENDT, 1990a, p 222 e p. 247). Nós também não aprofundaremos a questão dos métodos de ensino; somente lembramos que o objetivo de familiarizar os alunos

com as tradições públicas não está necessariamente atrelado a uma ou outra metodologia determinada. Contudo, independentemente da escolha de um método mais ou menos “ativo”, a responsabilidade do ensino é do professor.

Brayner, inspirado numa narrativa de Umberto Eco, sugere uma metáfora para a educação que ilustra o lugar central que a tradição tem nela. Vir ao mundo, aponta ele, é como entrar numa peça de teatro depois de ela ter começado. Para participar do enredo, isto é, para se tornar um ator no palco do mundo público, é necessário saber o que ocorreu antes, qual o sentido da encenação e quais as regras a serem seguidas. Isso não significa que a peça siga um roteiro pronto ou predeterminado (com a atuação dos novos atores, ela pode tomar rumos inesperados), mas demanda que se ofereça aos recém-chegados condições mínimas de se orientar e movimentar no palco (BRAYNER, 2008, p. 142-144). Nesse sentido, sempre chegamos ”atrasados” ao mundo, da mesma forma que o teremos de deixar sem ver o final da peça. A educação tem a tarefa de situar os “atrasados”, mostrando-lhes o que ainda não tiveram oportunidade de conhecer.30

A metáfora evidencia o lugar fundamental ocupado por tradição e autoridade na educação. No entanto, e esse é o ponto central de A crise na educação, temos de lidar com uma situação na qual a perda de ambas é definitiva.31 “Isso quer dizer que não se pode, onde quer que a crise haja ocorrido no mundo moderno, ir simplesmente em frente, e tampouco simplesmente voltar para trás”, “como se apenas nos houvéssemos como que extraviado do caminho certo, sendo livres para, a qualquer momento, reencontrar o rumo”, mas “ao considerar os princípios da educação temos de levar em conta esse processo de estranhamento do mundo” (ARENDT, 1990a, p. 245).

A educação, portanto, está diante de um impasse. Deve apresentar aos mais novos o mundo como ele é, o que supõe que os educadores saibam como ele é. Esse saber, por sua vez, não se refere ao seu ponto de vista particular, mas ao mundo comum, do qual são representantes e cuja tradição, que se perdeu, devem transmitir.

O problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar num mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição (ARENDT, 1990a, p. 245-246).

30 Sobre “chegar atrasado ao mundo”, ver também N. Levinson, que constata que, na educação, os

alunos sempre se defrontarão com as injustiças que os precedem, pelas quais não têm culpa nenhuma, mas com as quais, apesar disso, deverão lidar (2001, p. 11-36).

Esse é o ponto central da crise na educação – uma crise para a qual também Arendt não indica nenhuma solução. A autora apenas constata que é preciso “aplicar exclusivamente a ele (o âmbito da educação) um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados mas não possuem validade geral” (ARENDT, 1990a, p. 246). Ela, porém, não explica o que vem a ser esse “conceito apropriado”.