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A alienação do mundo: o processo vital e a sociedade

2 O NÃO-MUNDO E O AMOR MUNDI

2.3 A alienação do mundo: o processo vital e a sociedade

De acordo com Arendt (ARENDT, 1983b), outro evento fundamental para o surgimento da sociedade moderna foram as desapropriações de terra no contexto da Reforma Protestante. Além da Igreja, grande número de camponeses ficou sem suas propriedades. Desse modo, camadas inteiras da população perderam seu lugar no mundo e passaram a depender unicamente de sua força de trabalho.

Nesse contexto, é importante ressaltar que Arendt distingue propriedade e posse ou capital43 (ARENDT, 1983b, p. 68-78). Enquanto os últimos precisam ser movimentados para render lucros, a propriedade privada, até o início da Era Moderna, tinha um efeito estabilizador. Ela garantia às pessoas um lugar, ou seja, ela era “o pequeno pedaço do mundo que nos pertence” (ARENDT, 1960, p. 67, tradução nossa)44. Na Antiguidade, o cidadão era necessariamente proprietário e, em oposição a isso, “não ter nenhuma propriedade significava não ter um lugar originário (angestammt) no mundo para chamar de seu, ou seja, ser alguém que o mundo e o corpo político nele organizado haviam previsto” (ARENDT, 1960, p. 60, tradução nossa)45. Entre outros motivos, era por isso que mulheres, escravos, crianças e estrangeiros não tinham cidadania. Possuir um “pedaço do mundo” era como um pré-requisito para a participação na esfera pública, embora a propriedade em si pertencesse ao âmbito privado ou, melhor, tivesse a função de garantir fisicamente o espaço privado que protegia a família e no qual ela podia cuidar de sua sobrevivência e de seu bem-estar.

possibilidade de julgamento e evita a submissão a verdades supostamente inquestionáveis (ARENDT, 2003a, p. 976).

43 No texto em português, aparece também o termo riqueza para se referir a posse ou capital

(ARENDT, 1983b, p. 68-78).

44 Diferente ARENDT, 1983b, p. 80. 45 Diferente ARENDT, 1983b, p. 71.

A idéia moderna de propriedade privada nada tem a ver com esse lugar específico no mundo, mas refere-se muito mais ao que Arendt chama de posse (riqueza, capital). Na Era Moderna, o processo de acumulação de capital iniciou-se justamente com a desapropriação de grandes partes da população, que, enquanto força de trabalho, foram reduzidos ao próprio corpo e assim vieram a ser os primeiros a sofrer uma drástica alienação do mundo.

Essas primeiras desapropriações foram seguidas por uma rápida aceleração dos processos de acumulação, de produção e de consumo. Isso foi possível, entre outros fatores, devido a um deslocamento das atividades econômicas que, extrapolando os limites do espaço privado, tornaram-se uma preocupação “pública”. As questões que, segundo Arendt, são de fato públicas, porque dizem respeito à convivência entre os diferentes e pressupõem uma multiplicidade de pontos de vista, cedem lugar ao interesse convergente e único do crescimento econômico. Dessa forma, surge a esfera social, na qual as atividades privadas ocupam o espaço público, o que faz desmoronar a antiga distinção entre público e privado. Originam-se as “sociedades de operários e assalariados” que “concentram-se imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida – o trabalho” (ARENDT, 1983b, p. 56, tradução modificada46). Assim, o processo vital vem a ser uma preocupação coletiva, mas, alerta Arendt, nem por isso adquire caráter público.

A posse apoderou-se do espaço público na forma de interesses das classes possuidoras. Esse interesse mesmo, o interesse, como diríamos hoje, em um livre desenvolvimento da economia – a economia livre da intervenção política, os empreendedores livres da incômoda preocupação com os assuntos públicos – é, porém, ele mesmo de natureza privada, independentemente de quantos homens o compartilham. O igual interesse dos possuidores não produziu nada comum [...] (ARENDT, 1960, p. 65, tradução nossa)47. A esfera social toma conta do espaço público – no qual ela elimina a pluralidade de perspectivas e ao qual impõe suas exigências econômicas que não deixam espaço para a atividade política livre – e invade o âmbito privado em seu sentido original, do qual sobra apenas uma esfera de intimidade. Sem alternativas todos estão condenados a permanecer no âmbito social, em que um único interesse – a sustentação da vida e o bem-estar – uniformiza a todos. Por conseguinte, a sociedade

[...] exclui a possibilidade de ação [...] Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras,

46 A condição humana traduz aqui “labor”, nós optamos por usar o termo “trabalho”, ver nota 3 do

capítulo 1.

todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los ’comportarem-se’, a abolir a ação espontânea ou a reação inusitada (CH, p. 50).

A ação na qual a singularidade de cada um se revela, transformando o espaço comum, não encontra lugar numa sociedade uniforme. O grande processo de produção e consumo não admite individualidades que interferem no mundo (ou no que restou dele), mas apenas a adaptação. Restringir a possibilidade de ação, no entanto, é tornar os homens menos humanos. Em outras palavras: limitá-los exclusivamente a sua faceta de animal laborans é reduzir a humanidade a só uma espécie de seres vivos.

O último estágio de uma sociedade de trabalhadores, que é a sociedade de detentores de empregos, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie, e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade, as dores a as penas de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e ‘tranqüilizante’ (ARENDT, 1983b, p. 335).

Abrir mão da individualidade é adaptar-se ao deserto da sociedade. Uma completa adaptação é a total ausência de experiências singulares que pudessem provocar qualquer ato não previsto, o que, por si só, já representaria uma resistência ao deserto. O deserto, no entanto, possui mecanismos eficazes de acomodação:

Na pretensão de nos ‘ajudar’, a psicologia nos ajuda a nos ‘adaptarmos’ a essas condições [do deserto], tirando a nossa única esperança, a saber: que nós, que não somos do deserto, embora vivamos nele, podemos transformá-lo num mundo humano. A psicologia vira tudo de cabeça para baixo: precisamente porque sofremos nas condições do deserto é que ainda somos humanos e ainda estamos intactos; o perigo está em nos tornarmos verdadeiros habitantes do deserto e nele passarmos a nos sentir em casa (2008, p. 266-267).

No deserto, o sofrimento é sinal de humanidade e representa a possibilidade de resistirmos a ele. É muito interessante que nessa perspectiva o sofrimento adquire um sentido e uma dignidade: ele abre o caminho para a transformação do deserto. Por isso, é essencial que não percamos a capacidade de sofrer, de nos deixar atingir pela destruição do mundo. A indiferença nos torna perfeitos habitantes do deserto. “Tanto a psicologia [...] quanto os movimentos totalitários [...] colocam em risco iminente as duas faculdades humanas que nos permitem transformar pacientemente o deserto, e não a nós mesmos: as faculdades conjugadas da paixão e da ação.” (2008, p. 267).

É surpreendente o destaque que Arendt, nesse texto, confere à paixão, posicionando-a à altura da ação – conceito chave de seu pensamento. O sofrimento aqui não é algo que deve ser

evitado a todo custo, mas, pelo contrário, pode ser o motor que nos faz agir.48 A tendência moderna de amenizar qualquer sofrimento, de prevenir qualquer dor com analgésicos e qualquer tristeza com antidepressivos49, de transformar envelhecimento e morte em anormalidades, é sinal de uma sociedade na qual não há espaço para experiências mais profundas – que não excluem momentos de prazer, mas sempre também incluem o sofrimento. Quando vida e bem-estar configuram os valores supremos e exclusivos, ocorre um empobrecimento das paixões humanas. Assim, Arendt afirma que “se comparamos o mundo moderno com o mundo do passado, veremos que a perda da experiência humana [...] é extraordinariamente marcante” (ARENDT, 1983b, p. 335). Mesmo o sofrimento inerente ao trabalho, que na modernidade supera qualquer outra atividade humana, está em vias de desaparecer, já que “conseguimos eliminar as fadigas e penas inerentes ao processo vital até tal ponto que é possível prever o momento em que também o trabalho e a experiência de vida nele possível serão eliminados do âmbito das experiências humanas” (ARENDT, 1960, p. 314)50. Finalmente, explica Arendt,

[...] é perfeitamente concebível que a era moderna – que teve início com um surto tão promissor e tão sem precedentes de atividade humana – venha a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu (ARENDT, 1983b, p. 335-336).

A sociedade nos conforma a todos num único e necessário fluxo vital. A minimização de sofrimento e de qualquer esforço aperfeiçoa a submissão a esse processo.

Há, portanto, diversos fatores que favorecem o funcionamento do processo de trabalho e consumo. Também da educação se espera que faça sua parte para “facilitar” o processo vital – tanto no que diz respeito ao comportamento que ele demanda, quanto no que se refere à instrução da mão-de-obra e, cada vez mais, no que tange ao preparo de um consumidor à altura do mercado. Nesse sentido, queremos apontar, a título de exemplo, para algumas questões dentre inúmeros aspectos da educação que poderiam ser abordados a esse respeito.

A preocupação com um bem-estar raso e estéril – que preenche todas as necessidades e desejos vitais, mas não deixa mais espaço para paixões nem para o desejo daquilo que não é

48 O papel positivo que a autora atribui, neste ponto, à paixão que faz agir não é constante em sua obra.

Em outros momentos, ela afirma que as paixões não devem se localizar no espaço público. Sobre esse tema, ver item O amor mundi.

49 É claro que há casos em que esse tipo de remédios é necessário, o que não desvalida a crítica a uma

sociedade que desaprendeu a lidar com as diversas formas de sofrimento.

50 Na versão em português consta uma frase semelhante, porém não aparece nela a “eliminação da

experiência”: “No entretempo, demonstramos ser suficientemente engenhosos para descobrir meios de atenuar as fadigas e penas da vida, ao ponto em que a eliminação do labor do âmbito das atividades humanas já não pode ser considerada utópica.” (ARENDT, 1983b, p. 335).

alcançável de imediato – tem refletido numa educação que evita, na medida do possível, expor o aluno a eventuais frustrações e, muitas vezes, até tenta resguardá-lo de fazer algum esforço. Assim, por exemplo, entre as metodologias de ensino, as que pregam uma aprendizagem lúdica, fácil e prazerosa têm sido privilegiadas. Arendt, em A crise na

educação, já menciona a tendência de diluir a “distinção entre brinquedo e trabalho – em favor da primeira” (ARENDT, 1990a, p. 232).51 Muito embora o “facilitar” faça parte do ensino e uma situação agradável contribua para seu sucesso, se deixa de considerar que uma aprendizagem sem esforço é uma ilusão e sequer parece desejável, já que, quando por demais “facilitada” e exclusivamente prazerosa, exige pouco crescimento do aluno.

Em contraposição a isso, o processo de formação exige mudanças do aluno e amadurecer significa, em parte, aprender a abrir mão de satisfações imediatas em favor de um bem maior. A aquisição de conhecimentos, por exemplo, pode ser interessante para o aluno, mas por vezes exige dele que se submeta a procedimentos e exercícios cujo sentido nem sempre está posto para ele num primeiro momento, além da necessidade de aprender também o que não lhe interessa. Conquistar uma habilidade, muitas vezes, depende do exercício repetitivo e cansativo e exige perseverança. Em suma, a educação deve proporcionar crescimento e a superação de dificuldades, isto é, transformar o modo de se inserir no mundo e de lidar com as coisas, e não perpetuar o modo de vida da criança. Além disso, ela tem por tarefa familiarizar a criança com temas, questões e preocupações que justamente extrapolam as necessidades e os desejos individuais.

Se o processo vital e seus critérios têm produzido efeitos na relação pedagógica, também se apoderaram dos fins da educação. Para muitos, educar tornou-se sinônimo de capacitar para o mercado de trabalho. Muito embora preparar para o trabalho seja parte necessária da educação, é preocupante quando isso se transforma no objetivo educativo supremo, não deixando mais espaço para outros fins. Contudo, é claro que num tempo em que o processo vital ganha feições de uma força natural e inevitável, à qual precisamos submeter nossa existência por completo, a educação só pode se adequar a “demandas da natureza” – quer isso se refira às exigências supostamente inquestionáveis do processo de produção e consumo que devem ser atendidas, quer remeta à “natureza da criança”, que necessita de uma pedagogia a

51 O “aprender brincando” estaria mais próximo da “natureza” da criança. A autora comenta que “é

perfeitamente claro que esse processo tenta conscientemente manter a criança mais velha o mais possível ao nível da primeira infância. Aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar, é extinto em favor da autonomia do mundo da infância” (ARENDT, 1990a, p. 233).

ela adequada. Porém, quando os interesses vitais se impõem, não sobra espaço para o mundo e não há mais liberdade.