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O lugar da autoridade e da tradição na educação

1 A CRISE NA EDUCAÇÃO

1.3 O lugar da autoridade e da tradição na educação

Conhecer o mundo não significa simplesmente ter acesso a informações sobre ele. Para isso, hoje não precisamos da escola. O papel do educador é, muito mais, o de mediador entre o mundo e os jovens. Isso vai além de um “abrir portas”, que poderia ser feito pelo professor de modo mecânico e até indiferente.

Seu papel de mediador lhe exige uma responsabilidade dupla. Como professor ele é responsável pela educação de seus alunos, mas também faz parte de seu papel assumir, diante deles, a responsabilidade pelo mundo. Esta provém do fato de ele mostrar aos novos o lugar no qual ele, adulto, toma parte e ao qual pertence. Por isso, o professor está em condições não só de apresentar, mas também de representar o mundo diante dos “forasteiros”. Como representante deste, sua tarefa é protegê-lo e conservá-lo, mostrando sua relevância para os novos. Se sua qualificação consiste em seu conhecimento, sua autoridade frente aos recém- chegados reside nesse seu ofício de representante que o autoriza a introduzi-los neste lugar

(ARENDT, 1990a, p. 239). Esse atributo do professor não é arbitrário e não se origina em sua pessoa, mas nos saberes, nos valores e nos princípios do mundo comum e da instituição escolar que ele representa. É o lugar que ele ocupa e sua tarefa específica que lhe conferem uma autoridade que, contudo, não se estende a outras esferas fora da escola.22

Para ser representante do mundo o professor não precisa consentir com tudo que existe neste, porém não pode deixar de ter um apreço por ele. De alguma forma, precisa reconhecer este mundo como seu e como o lugar que foi (e é) constitutivo para ele. Arendt realça que o nosso descontentamento com o mundo não pode fazer com que deixemos de assumi-lo como nosso, porque desse modo abriríamos mão daquilo que é capaz de dar sentido a nossa existência – o lugar onde é possível sentir-se em casa.

A metáfora da casa23 requer alguma cautela, pois não se refere à esfera privada, mas sim ao âmbito público e político. Arendt, embora a mencione em sua reflexão sobre educação, nesse texto não se detém nela. Entretanto, há na imagem alguns aspectos sugestivos no que tange ao lugar que a autoridade ocupa na educação. O professor, que precisa ter o mundo como sua casa, tem por tarefa receber nela os “forasteiros”. Costumamos dizer às pessoas que nos visitam: “Sinta-se em casa!”. As crianças, porém, não só estarão no mundo até o final de sua vida, mas este será também sua habitação. Ao chegar, contudo, elas ainda não conhecem o lugar das coisas, não sabem o que realmente importa neste lugar, nem como se movimentar nele. Por isso, não podemos cobrar ações e decisões delas que dizem respeito a modificações na casa, como as cobraríamos de um adulto. Diante das crianças é o professor que, como conhecedor e co-autor desse espaço comum e incumbido de acolher os novos, responde pela casa. Desse modo podemos entender a afirmação de Arendt que “na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade” (ARENDT, 1990a, p. 239). A autoridade dos adultos face às crianças, porém, é apenas temporária (ARENDT, 1990a, p. 246). Ela se limita ao tempo em que os novos se familiarizam e se apropriam do mundo, adquirindo saberes e aprendendo as práticas necessárias para se movimentar nele. Após esse

22 É importante destacar que Arendt distingue entre autoridade e certas formas de força ou violência.

Embora em ambos os casos possa se falar de uma relação caracterizada pela hierarquia e pela obediência, quem obedece ao mais forte o faz por medo ou por ser forçado fisicamente a obedecer, enquanto quem obedece à autoridade o faz por consentimento. Isto é, tanto o detentor da autoridade como o outro a reconhecem como legítima e válida por assentar-se no bem comum. Arendt ressalta também que a autoridade não opera por meio da persuasão, já que a necessidade de convencer o outro por meio de argumentos é característica de uma relação entre iguais, na qual não pode haver obediência (ARENDT, 1990a, p. 129). Nesse sentido, o professor pode constituir uma autoridade frente ao aluno, se ambos reconhecem a legitimidade do mundo comum e a necessidade de sua continuidade.

período, os jovens assumirão sua cidadania por completo e, junto a outros cidadãos, isto é, em companhia de seus iguais, serão eles mesmos responsáveis pelo mundo.

Arendt, ao atribuir uma especial importância ao papel da autoridade na educação, manifesta sua crítica a uma conjuntura em que tanto as práticas como os discursos educacionais tendem a negar a importância da autoridade ou até a rejeitá-la. Segundo a autora, desse modo, hoje nos deparamos com uma situação em que “as relações reais e normais entre crianças e adultos [...] são [...] suspensas” (ARENDT, 1990a, p. 230). Assim, “por causa de determinadas teorias, boas ou más, todas as regras do bom senso foram postas de parte” (ARENDT, 1990a, p. 227). A falência do bom senso, por sua vez, aponta, “como uma vara mágica”, para o desmoronamento “de alguma parte do mundo, alguma coisa comum a todos nós” (ARENDT, 1990a, p. 227).

De acordo com Arendt, essa situação na esfera educacional está intrinsecamente relacionada à ausência de autoridade no âmbito político. Em seu ensaio sobre o tema em

Entre o Passado e o Futuro, ela explica que a autoridade desapareceu do mundo moderno e que a perda se manifesta no fato de que “não mais podemos recorrer a experiências autênticas e incontestes comuns a todos” (ARENDT, 1990a, p. 127). Durante séculos a tríade autoridade-religião-tradição tinha oferecido critérios últimos aos homens, nos quais podiam se apoiar para formar julgamentos sobre o mundo e aquilo que nele se passava. A modernidade questiona o que anteriormente era sagrado e, no entanto, não estabelece nada em seu lugar. Desse modo, deixou de existir uma medida que fosse válida por si mesma e aceita por todos. Quando não há mais nada tido como intocável, quando tudo pode ser questionado e precisa de justificação, a autoridade perde o seu fundamento. Segundo a autora, é sinal da profundidade da crise o fato de ela se estender à esfera pré-política da educação, abalando até a autoridade de pais e professores sobre as crianças – que sempre fora vista como “necessidade natural” (ARENDT, 1990a, p. 128).

Arendt, depois de constatar a ausência da autoridade, se propõe a “reconsiderar o que a autoridade foi historicamente e as fontes de sua força e significação” (ARENDT, 1990a, p. 129). Ela encontra o modelo por excelência na vida política da república romana. O que, segundo Arendt, marca essa experiência é “a convicção do caráter sagrado da fundação, no sentido de que, uma vez alguma coisa tenha sido fundada, ela permanece obrigatória para todas as gerações futuras” (ARENDT, 1990a, p. 162). A fundação da cidade de Roma representa, para seus cidadãos, “o central, decisivo e irrepetível princípio de toda sua história, um acontecimento único” (ARENDT, 1990a, p. 162). Esse princípio servia como guia e medida, de modo que as ações políticas eram avaliadas conforme sua capacidade de

acrescentar algo a esse momento primeiro. A autoridade da fundação, portanto, não operava por meio da coerção, nem por meio da persuasão, mas se baseava no reconhecimento de sua legitimidade por todos os envolvidos.24

Para os romanos a fundação pertencia a um tempo sagrado. Ela era intocável e não dependia mais da ação humana. Os cidadãos, no entanto, deviam garantir a tradição dessa experiência, ou seja, assegurar que o testemunho da fundação fosse transmitido de geração para geração.25 A tradição oferecia uma forma de olhar para o passado, isto é, ela não apenas relatava um conjunto de acontecimentos passados, mas os interpretava e avaliava com base em determinados princípios.

Hoje, aponta Arendt, a situação é totalmente diversa – o que pode trazer algumas vantagens, como ainda veremos, mas também envolve perigos.

[...] sem uma tradição firmemente ancorada [...], toda a dimensão do passado foi também posta em perigo. Estamos ameaçados de esquecimento, e um tal olvido [...] significaria que, humanamente falando, nos teríamos privado de uma dimensão de profundidade na existência humana. Pois memória e profundidade são o mesmo, ou antes, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não se através da recordação (ARENDT, 1990a, p. 131).

Assim, a perda do tripé autoridade-religião-tradição26 ensejou profundas mudanças no modo de nos situar no mundo, o que finalmente refletiu também na esfera da educação.