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5 A PERTENÇA AO MUNDO E O SENTIDO DA EDUCAÇÃO

5.2 A fé no mundo e a reconciliação

A educação tem, em princípio, a tarefa de acolher os novos – ainda estrangeiros – num mundo de significados compartilhados e de familiarizá-los com ele, isto é, educar é fazer com que as crianças e os jovens possam “se sentir em casa” no mundo. Quando, porém, o mundo é inóspito, surge o impasse.

No momento da crise, de acordo com Arendt, a nossa aposta no mundo humano e nas crianças que vêm a ele tem de se mostrar mais relevante do que a ausência de sentido e as barbaridades cometidas ou, então, abrimos mão do mundo comum. O amor mundi, entretanto, não deve ser confundido com o otimismo de quem ingenuamente diz “Tudo vai ficar bem”, mas está relacionado a uma atitude básica de afirmação do mundo que faz com que, apesar de tudo, dele não desistamos.

Esse acreditar num espaço compartilhado de convivência e nos seres humanos, que, em princípio, são capazes de dar continuidade a ele, ancora-se na confiança de que podemos encontrar um sentido naquilo que acontece entre os homens. Glenn Gray (1977), no artigo

Winds of Thought (Os ventos do pensamento), mostra que a mesma Arendt, que constata que hoje “nada mais parece fazer sentido”, não desiste da busca de sentido (p. 48-49). Isso, a nosso ver, está associado a uma atitude em relação ao espaço comum e às pessoas nele que chamamos de fé no mundo. O termo fé aqui não diz respeito a nada extramundano, mas está intrinsecamente relacionado ao amor mundi, o qual “teima” em não abrir mão do mundo comum, mesmo contra qualquer probabilidade histórica de sucesso. A própria Arendt, em alguns pontos cruciais de suas reflexões, utiliza-se da palavra fé, referindo-se a uma experiência originariamente vivida num contexto religioso, mas que pode ter um profundo significado para a política: o que move nossa ação é a fé no mundo.147

Essa fé pode ser um ponto comum entre as pessoas, independentemente de acreditarem ou não em Deus, de fazerem parte de alguma comunidade religiosa ou não. Gray nos lembra que Arendt teve uma profunda admiração pelo Papa João XXIII, cujo retrato está em sua obra

Homens em tempos sombrios, e destaca que

Ela [Arendt] pega a quintessência de sua fé absoluta em Deus em seu último comentário quando estava morrendo sob dores e o chamou de seu mais grandioso ‘insight’: todo dia

147 Ver, por exemplo, o capítulo sobre ação (cap.5) em A condição humana, especialmente p. 259 e o

ensaio Que é liberdade em Entre o passado e o futuro, especialmente p. 216-217. Sobre a relação de Arendt com o cristianismo ver capítulo 2 deste trabalho.

é um dia bom para nascer e todo dia é um dia bom para morrer (GRAY, 1977, p. 58, tradução nossa).

Essas palavras lembram o que Arendt chamava a “gratidão básica por tudo que é como é” (CORREIA, 2007, p. 12). Em seu trabalho sobre o amor em Agostinho, ela escreve: “A gratidão por a vida ter sido dada de algum modo é fonte da recordação, pois a vida é estimada mesmo na miséria” (ARENDT148 apud CORREIA, 2007, p. 58).

Para a autora, também a poesia de seu amigo Wystan H. Auden é uma expressão dessa fé. Em seu texto sobre ele em Homens em tempos sombrios, Arendt cita vários poemas. Num deles o eu lírico se dirige a um poeta sem nome para que ele, no meio da noite, da maldição e do insucesso, ensine o homem a louvar. O poema termina com um apelo: “In the prison of his days/Teach the free man how to praise” (Na prisão de seus dias/Ensina o homem livre como louvar; ARENDT, 1989a, p. 333). De acordo com Arendt (1989a, p. 333, tradução nossa),

[...] ‘praise’ (louvar, o louvor) é a palavra-chave dessas linhas, não no sentido de louvar o ‘melhor de todos os mundos possíveis’, como se fosse a tarefa do poeta (ou do filósofo) justificar a criação, mas no sentido de um louvor que se opõe a tudo que é especialmente insatisfatório nos seres humanos nesta Terra e que disso retira sua força.

Num outro poema, o céu, apesar do desespero e revolta do eu lírico, exige: “Bless what there is for being” (Abençoe o que existe porque existe; ARENDT, 1989a, p. 333, tradução nossa), uma solicitação que – segundo o poema – deve ser seguida, mesmo sem ser entendida.

[...] não era exatamente nele [Auden], enquanto pessoa, que ela [Arendt] procurava sentido, mas sim na obediência, enquanto poeta, àquele ‘comando singular’. Auden obedeceu, não para justificar a criação de Deus, mas para ‘abençoar o que existe porque existe’, mesmo em sua incompreensão da condição insatisfatória da vida humana. A compulsão de Auden para louvar, apesar de toda a miséria pessoal, derivava, ela estava convencida disso, da fé cristã, uma fé que ela levou muito a sério em sua última obra filosófica, embora não a partilhasse (GRAY, 1977, p. 57, tradução nossa).

O que Arendt, no entanto, divide com Auden é a confiança no mundo. Em seu Diário de

pensamento encontramos uma nota sobre Schelling, onde ela escreve que confiança é o

148 ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine, Chicago: University of Chicago Press, 1996, p. 51-

52. Trata-se de uma versão posterior de sua tese de doutorado Der Liebesbegriff bei Augustin (O conceito de amor em Agostinho), na qual nos baseamos no segundo capítulo deste trabalho. Love and

Saint Augustine foi traduzido por E. B. Ashton, sendo que a própria Arendt revisou o conteúdo de uma parte do texto, já que estava planejando uma publicação revisada do livro. Entretanto, não chegou a terminar a revisão. Ver a esse respeito YOUNG-BRUEHL, 1986, p. 503. Sobre a informação bibliográfica, ver <http://hannaharendt.net/bibliography/biblio_Prim.html>.

significado original da fé (ARENDT, 2002a, p. 768). Essa confiança fundamental é a base para aquilo que ela chama de busca de sentido.

É interessante observar que o pensamento de Arendt nesse ponto vai ao encontro de uma teologia que, por sua vez, busca uma linguagem nova para compartilhar com outros a experiência radical da fé no mundo – independentemente de ela estar relacionada à fé em Deus ou não. A teóloga Dorothee Sölle, em seu livro Sofrimento (Leiden), alerta que “a limitação de nossa fala a uma linguagem científica leva a uma mudez crescente” (SÖLLE, 1987, p. 14, tradução nossa). Deixamos de falar sobre aquilo que não podemos dizer com clareza e descartamos linguagens, como a filosófica, a teológica e a simbólica, que foram testemunhas da possibilidade de compreender e comunicar a experiência da fé no mundo. A autora realça a importância de traduzir alguns aspectos dessa experiência para uma linguagem que não pressuponha uma fé cristã, uma linguagem compartilhada por mais pessoas, buscando, assim, contribuir para superar uma compreensão de mundo unidimensional.

Essas afirmações remetem à reflexão de Arendt sobre a predominância do conhecer em detrimento do pensar no mundo moderno. Assim, embora em outras palavras e num contexto diferente, Sölle concordaria com Arendt que ficar restrito ao conhecer significa perder a dimensão fundamental do pensar, o que empobrece nossa relação com o mundo e com as pessoas.

Arendt, como vimos, recorre a Kant, segundo o qual o pensar vai além dos limites do conhecimento. Nesse mesmo contexto ela observa que o filósofo havia “achado necessário negar o conhecimento para abrir espaço para a fé”. Arendt, porém, não concorda: “Mas [Kant] não abriu espaço para a fé, e sim para o pensamento, assim como não negou o conhecimento, mas separou conhecimento e pensamento” (ARENDT, 1993b, p. 13). Em lugar da fé Arendt coloca o pensamento, mas podemos notar que, sem dúvida, há uma relação entre pensamento e fé, se entendermos esta não apenas como uma relação com Deus ou alguma outra entidade além-mundo, mas também como fé no mundo.

Sölle descreve a fé como uma atitude fundamental de afirmação – “algo como dizer sim a esta vida”. Essa fé não é cega em relação à destruição real presente no mundo, mas ciente e atingida por ela. A teóloga explica (valendo-se de palavras de Simone Weil) que, mesmo assim,

“não aceitar um acontecimento do mundo significa desejar que o mundo não seja”. Essa formulação de Simone Weil soa extrema, mas expressa exatamente o pecado do desespero no qual a afirmação radical e incondicional da realidade foi destruída. [...]

“Desejar que o mundo não seja significa desejar que eu, do modo que sou, seja tudo” (SÖLLE, 1987, p. 135, tradução nossa).

O ser humano, porém, não é auto-suficiente. Ele, segundo Arendt, vem a ser uma pessoa somente na medida em que estabelece relações com outros e constitui assim o que ela chama de espaço-entre, isto é, o mundo humano. Agir e falar com os outros são “os modos pelos quais se revela a própria humanidade” (ARENDT, 1960, p. 165, tradução nossa)149. Em seu

Diário de pensamento ela anota que a fé é a base imprescindível para as relações que estabelecemos:

Faz-se tanto estardalhaço em relação à fé em Deus porque é tão difícil admitir para si mesmo que todas as relações humano-pessoais se fundamentam na fé. [...] Sem fé, as circunstâncias humanas [menschliche Verhältnisse, o mundo humano] não poderiam subsistir em nenhum grau, nem sequer por minutos. Desconfiança total é ausência total de contato, assim como confiança total é tolice total. Visto bem, a fé não é uma virtude, mas surge do fato de os homens precisarem uns dos outros. A mera fé [der bloβe Glaube], indispensável para qualquer relação, sempre pode ser corrigida (ARENDT, 2002a, p. 125, tradução nossa).

Na obra de Arendt, essa fé está intrinsecamente ligada à esperança pelo mundo, talvez a única coisa que resta quando nos deparamos com barbaridades que destroem até a própria humanidade das pessoas. A esperança permanece graças à natalidade, que possibilita a ação como realização de algo novo e inesperado. “Só o pleno exercício dessa capacidade [de agir] pode conferir aos negócios humanos fé e esperança, as duas características essenciais da existência humana” (ARENDT, 1983b, p. 259).

A relação entre ação e fé se estabelece em dois sentidos: por sermos capazes de iniciar algo novo podemos confiar e acreditar na possibilidade de convivermos num espaço comum. Essa confiança, por sua vez, é necessária para agir e transformá-lo. Podemos dizer que o “dizer sim ao mundo” como ele é e a ação transformadora são interdependentes. Vimos que, em seu ensaio Que é liberdade?, Arendt explica que a potência inerente à liberdade humana “não é a vontade, e sim a fé”, “que nas palavras do Evangelho é capaz de remover montanhas” (ARENDT, 1990a, p. 220).

A fé no mundo se desdobra em dois tempos. Por um lado, ela está voltada para o futuro e confia na capacidade de agir e na possibilidade do imprevisto. Por outro lado, ela olha para o

passado e apela à faculdade do pensamento que busca o sentido daquilo que já aconteceu, na intenção de reconciliar-se com um mundo que nunca é da forma como desejaríamos.

Reconciliar-se com o mundo não é tudo aceitar nem conformar-se com o que passou, mas significa que temos de entrar em algum acordo com este espaço comum do qual dependemos e que depende de nós. Talvez haja coisas que não podemos perdoar, mas elas não devem, em princípio, nos fazer abrir mão da possibilidade de criar e preservar o lugar da convivência. Pensando-o podemos atribuir-lhe algum sentido. É a tentativa de compreender os acontecimentos no mundo que nos ajuda a lidar com o ocorrido de modo que ele não destrua a possibilidade de continuarmos convivendo.

Em seu ensaio Compreensão e política Arendt escreve sobre o que vem a ser essa busca de compreender o mundo, em particular o evento do totalitarismo e de que modo a luta contra as tendências totalitárias depende da compreensão.

O compreender – diferentemente da informação correta e do conhecimento científico – é um processo complexo, que nunca leva a resultados precisos. É uma atividade sem fim, por meio da qual apreendemos a realidade, em constante transformação e mudança, e nos reconciliamos com ela, isto é, tentamos estar em casa no mundo (ARENDT, 2000, p. 110, tradução nossa).

Se, no âmbito da ação, o perdão e a punição são mecanismos relevantes para assegurar a convivência futura150, no âmbito do pensamento buscamos compreender os acontecimentos. Assim tentamos nos reconciliar com o mundo, porque somente quando os fatos fazem algum sentido podemos aceitá-los. Isso não é resignação, mas é dizer que esse mundo continua sendo nosso, mesmo que não concordemos com muitas coisas nele. Ele não deixa de ser constitutivo para cada um de nós e não podemos desistir dele sem perdermos a nós mesmos. Por isso, Arendt afirma que compreender

[...] é a maneira especificamente humana de estar vivo, porque cada pessoa precisa se reconciliar com o mundo, no qual nasceu como estrangeiro e onde, na medida em que é singular, sempre será um estrangeiro. Compreender começa com o nascimento e termina com a morte. Na dimensão em que o surgimento de regimes totalitários é o evento principal de nosso mundo, compreender o totalitarismo não significa desculpar qualquer coisa, mas reconciliar-se com um mundo no qual essas coisas, em princípio, são possíveis (ARENDT, 2000, p. 110, tradução nossa).

Quando olhamos para o passado e somos capazes de contar uma história, isto é, quando encontramos palavras que atribuem um sentido ao acontecido, saímos do estágio do puro sentimento. O horror ou a alegria que, num primeiro momento, tomam conta de nós diante do ocorrido passam a ser compreensíveis.

Aquele que diz o que é [...] sempre narra uma estória, e nessa estória os fatos particulares perdem sua contingência e adquirem algum sentido humanamente compreensível. É perfeitamente verdadeiro que ‘todas as desgraças podem ser suportadas se você as colocar em uma estória ou narrar uma estória a respeito delas’, nas palavras de Isak Dinesen [...]. Ela poderia ter acrescentado que também a alegria e a felicidade somente se tornam compreensíveis e significativas para os homens quando eles podem falar acerca delas e contá-las em forma de uma estória. Na medida em que o contador da verdade dos fatos é também um contador de estórias, ele efetiva aquela ’reconciliação com a realidade’. [...] A transformação da matéria-prima de pura ocorrência, que o historiador, assim como o ficcionista [...], deve efetivar, é bem análoga à transformação pelo poeta dos estados ou atividades do coração – do pesar em lamentos ou do júbilo em louvor (ARENDT, 1990a, p. 323).

O espanto da dor ou do prazer é mudo, mas depois de ganhar distância podemos procurar falar para nós mesmos o que aconteceu. Assim, pensar é lembrar e buscar a reconciliação. Por meio dele aceitamos que este mundo, que está “fora dos eixos”, é nosso e que, portanto, somos responsáveis não só por salvar nossa pele, mas por cuidar do mundo, isto é, por consertá-lo e renová-lo. Nessa perspectiva, o pensar que reconcilia e o agir que transforma

estão fundamentalmente inter-relacionados, não como se houvesse um nexo de causa e efeito entre eles ou se tratasse da realização de um plano, mas por estabelecerem uma relação de sentido.

Se a essência de todo agir, e em especial da ação política, consiste em começar algo novo, então o compreender [Verstehen] se torna o outro lado do agir, isto é, aquele modo de (re)conhecimento [Erkenntnis] por meio do qual [...] os homens agentes [...] finalmente podem compreender [begreifen] aquilo que aconteceu de modo irreversível e reconciliar-se com o que existe de modo inevitável (ARENDT, 2000, p. 125-126, grifo nosso, tradução nossa).

Devido ao fato de que nunca temos o controle sobre nossa ação – porque agimos num espaço plural e aquilo que iniciamos será continuado ou interrompido por outros – a reconciliação se faz necessária constantemente. No espaço-entre, as coisas sempre acontecem de modo imprevisto e a cada vez temos de entrar novamente em acordo com elas.

No mundo, somente o coração humano – tão distante da sentimentalidade como da burocracia – está disposto a carregar o peso que o dom divino do agir, do ser-um-começo, e a decorrente capacidade de iniciar nos impuseram. Salomão pede esse dom especial, porque era rei e sabia que somente um ‘coração compreensivo’ [...] torna suportável o fato de vivermos no mesmo mundo com outros homens, sempre estranhos, e possibilita que também eles nos suportem (ARENDT, 2000, p. 126, tradução nossa).