• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II – A alma no estudo sobre a empatia

3.6 A alma e o âmbito da vontade

Edith Stein analisa em seguida as vivências da vontade buscando verificar se nelas também se manifesta esse tipo de “transbordamento” de um âmbito puramente psicofísico, tal como ela identificou na expressão dos sentimentos, para um âmbito espiritual.

No ato de vontade existem elementos típicos do âmbito psicofísico e elementos que só podem correr no âmbito espiritual. Edith Stein define a ação, resultante de um ato de vontade, como um ato essencialmente espiritual, pois ela cria algo que não estava presente. Mas para que a ação ocorra, outros atos

Nesse capítulo, Husserl explica que toda vivência intencional é dita atual quando é efetuada “à maneira do cogito”, no qual o sujeito se dirige para o objeto intencional. Ou seja, faz parte do cogito esse olhar imanente (interno ao Eu) para o objeto. Cita alguns exemplos: no ato de percepção temos um “olhar para” percipiente, na ficção temos um “olhar para” ficcional, no ato de prazer um “olhar para” prazeroso, num ato de vontade um “olhar para” volitivo etc. Conclui Husserl: “esse ter ao olhar, esse ter diante do olho do espírito, inerente à essência do

cogito, do ato como tal, não é de novo ele mesmo um ato próprio, e não pode,

sobretudo, ser confundido com um perceber (por mais amplo que seja o seu sentido), nem com todas as outras espécies de ato aparentadas com as percepções. É preciso notar que o objeto intencional de uma consciência (tomado assim como pleno correlato dela) não diz de modo algum a mesma coisa que objeto apreendido [erfates Objekt]” (Idem, ibidem).

262 A presença do âmbito espiritual por meio da forma do cogito, já no fenômeno das

expressões dos sentimentos, evidencia que mesmo no âmbito psicofísico o indivíduo tem certa liberdade para escolher as expressões que quer tratar de modo intencional, e se tornam para ele objeto de reflexão, das que ele deixa passar, ao simplesmente ignorá-las. Logo, não podemos aventar qualquer determinismo no agir humano, nem mesmo no âmbito psicofísico, aquele no qual mais se assemelha aos animais. Todo o sentir (fühlen) para o ser humano, que está para além das puras sensações dado que inclui em si o momento intencional da consciência, é um sentir tipicamente humano, já direcionado para um objeto e por isso partícipe da vida espiritual da consciência.

são importantes: “ao ‘fiat’ da decisão volitiva corresponde o ‘fieri’ do que é querido e o ‘facere’ do sujeito”263.

A vontade pode se manifestar nos atos do tender, do querer e do agir. Para explicar como se dá a relação entre esses atos, que não ocorre no modo de uma causalidade física, mas aponta para uma relação essencial entre eles, Edith Stein traça um paralelo com o que foi observado no campo da expressão dos sentimentos: “a vontade se serve do mecanismo psicofísico para se [fazer] cumprir [sich erfüllen] e realizar o que é querido [por ela], assim como o sentimento se utiliza do mesmo mecanismo para realizar a própria expressão”264. Ou seja, o tender, primeiro ato da vontade, que ainda possui

raízes profundas no âmbito do psicofísico, pode ocasionar um ato ou simplesmente passar despercebido como objeto intencional. Se ele é apreendido como ato de vontade, então o simples tender se torna querer, que tende a se realizar em uma ação objetiva e intencional. Nesse sentido, tender e querer podem ser vistos como contrapostos, ambos lutando para dominar o organismo: “se prevalece a vontade, eventualmente cada passo é agora singularmente querido e a atualização do movimento é vivida como uma superação da influência contrária”265. Da característica do ato de vontade

podemos afirmar, em um sentido amplo, que ela predomina tanto sobre a alma266 quanto sobre o corpo vivente próprio, mas não de modo absoluto,

sempre experimentando a rebeldia por parte do obediente.

Os atos de vontade, que podem realizar-se no sentido próprio quando passam do tender ao querer e desse para a ação, encontram seu limite não apenas internamente, na alma e no corpo vivente próprio, mas também no

263 STEIN, O problema da empatia, p. 72 [Parte III, §4.e].

264 „Der Wille bedient sich des psychophysischen Mechanismus, um sich zu erfüllen,

um das Gewollte zu realisieren, wie das Gefühl ihn benützt, um seinen Ausdruck zu realisieren.“ (Idem, ibidem).

265 „Wird der Wille Herr, so ist ev. nun jeder Schritt einzeln gewollt und das Bewirken

der Bewegung erlebt im Überwinden der Gegenwirkung.“ (Idem, ib., p. 72-73).

266 O termo alma aparece aqui novamente no seu sentido amplo, quase idêntico à

vida psíquica. Mas como está sendo apresentado de que modo a vida psíquica humana é, essencialmente, vida espiritual, a alma reaparecerá mais adiante sob uma nova forma ou coloração. Digamos que aqui ela adquire uma coloração ainda indefinida aos nossos olhos, mas que se revelará nitidamente no âmbito espiritual.

mundo exterior. Por exemplo, posso querer me voltar em direção a um objeto percebido, sentido e presente diante de mim, mas não tenho como me voltar para um objeto ausente.

Essa “recusa” do mundo objetivo de se integrar totalmente às minhas sensações, sentimentos e vontades, não significa que o mundo objetivo fique de fora do âmbito da minha vontade, mas apenas que “posso produzir uma modificação no mundo dos objetos, mas não posso produzir voluntariamente sua percepção se o mundo objetivo não existe [está disponível, à mão]”267. Isso

será essencial para a análise da alma e será retomado no âmbito do espírito de modo mais detalhado, mas Edith Stein já antecipa que aqui se apresenta a questão da liberdade:

Esse atuar do querer e do tender sobre a alma e o corpo vivente próprio entra no âmbito da causalidade psicofísica ou temos aqui a tão discutida causalidade que deriva da liberdade, a ruptura da cadeia causal “ininterrupta”?268.

Edith Stein propõe aqui o mesmo argumento que elaborou no âmbito das sensações e dos sentimentos: não podemos negar que existe uma relação essencial e até “causal” entre o tender e o querer, assim como existe entre as nossas sensações, os sentimentos e suas expressões, mas essa relação não se dá de um modo causal tal como ocorre na natureza física. Ou seja, existe liberdade nos sentimentos, na vontade e nas ações humanas, e esse é o traço

267„Ich kann eine Veränderung in der Objektwelt herbeiführen, aber ich kann nicht ihre

Warhnemung willentlich herbeiführen, wenn sie selbst nicht vorhanden ist.“ (STEIN, O problema da empatia, p. 73 [Parte III, §4.e]). Ao tratar do âmbito da

vontade, Edith Stein parece implicitamente sugerir que o sujeito transcendental de Husserl, aquele que pensa e quer de modo intencional, não é como o sujeito transcendental de Kant. Neste, o sujeito cria, por meio das formas da sensibilidade, o objeto no interior de si, sendo sempre inatingível o que ele seria em si mesmo, aquilo que Kant chamou de “Coisa-em-si”. Para Husserl e Edith Stein não poderíamos falar de atos da vontade, tampouco de atos da percepção e apreensão, se não levássemos em consideração a existência real de um mundo exterior ao sujeito. Mas também não poderíamos fundamentar a liberdade, nem os atos da vontade, tampouco os do pensar, se não nos déssemos conta de que por meio das vivências intencionais a consciência se “descola” do mundo agindo e pensando sobre ele.

268„Ist dieses Wirken des Wollens und Strebens auf Seele und Leib psychophysische

Kausalität oder haben wir hier die vielbesprochene Kausalität aus Freiheit die Durchbrechung der ‘lückenlosen‘ Kausalkette?“ (Idem, ibidem).

característico do âmbito espiritual. No entanto, tal liberdade não significa que o ser humano possa sentir, querer e agir de modo totalmente livre, pois ele está, em grande medida, determinado, internamente, por seu corpo vivente próprio e sua psique e, externamente, pelos outros e pelo mundo. Dessa constatação podemos passar para a análise da intersubjetividade, na qual o conceito de alma será conduzido para uma nova coloração, abrindo-nos o campo que é específico do espírito em sentido próprio.

3.7 O reconhecimento do corpo vivente próprio alheio como portador de