• Nenhum resultado encontrado

Causalidade psicofísica e sentimentos espirituais

Capítulo II – A alma no estudo sobre a empatia

3.5 Causalidade psicofísica e sentimentos espirituais

Os sentimentos espirituais são considerados em sua essência como para além do âmbito psicofísico por não se fundarem no corpo vivente próprio249. Mas, por outro lado, é inegável que existe uma relação entre eles, pois apesar de não se fundamentarem no corpo vivente próprio tais sentimentos sofrem influência deste, assim como também o influenciam. Por exemplo, dizemos que na alegria o nosso coração se dilata e na dor ele se fecha. Inegavelmente existe aqui algum tipo de causalidade que não é puramente física, visto que podemos conceber na esfera eidética que um espírito desprovido de um corpo vivente próprio é capaz de experimentar tais sentimentos de alegria e de dor.

Para Edith Stein essa causalidade, que podemos definir em um sentido amplo como psicofísica, pode ser encontrada em outras vivências do Eu. É

psychischen Erlebnissen (die leibgebundenen Empfindungen usw) von denen, die den psychischen Charakter außerwesentlich an sich tragen, den ‘Realisationen’ geistiges Lebens.“ (Idem, ib.).

248 Este tema da causalidade psicofísica foi amplamente trabalhado por Edith Stein no

seu ensaio escrito após a tese sobre a empatia.

249 Edith Stein se posicionará, fundamentada na análise da essência dos sentimentos

espirituais, contra a posição de muitos psicólogos que consideram o ser humano apenas “um complexo de sensações orgânicas” (Idem, ib.). Ela cita um argumento a favor dessa constatação dizendo que ninguém que busque apreender a essência de tais sentimentos afirmará que um sujeito privado de corpo vivente próprio não poderá vivenciar uma alegria, uma dor ou um valor estético. Com essa observação ela compõe um “pano de fundo” que lhe permitirá, no final da obra sobre a empatia, afirmar que o estudo da consciência religiosa poderá trazer luz para o entendimento de como é possível uma relação entre dois sujeitos espirituais, ainda que não por meio da corporeidade.

possível encontrá-la também na relação entre as minhas vivências e as capacidades e propriedades da alma. Deduz dessa afirmação, que ela diz ter sido obtida “observando-se a si própria”250, uma certa “plasticidade” da alma251,

cujas capacidades podem ser aperfeiçoadas mediante sua própria atividade, mas também podem enfraquecer. Com essas observações, Edith Stein chega a concluir que somos capazes de “verificar no plano fenomenal uma influência do psíquico sobre o psíquico”252. Cabe agora passar para o plano eidético e

tentar descobrir que tipo de influência é esta, deixando de lado a proposta da psicologia exata causal-genética, que trata dessa causalidade partindo do modelo da ciência moderna de natureza física.

Buscando apreender o que seria essa causalidade psicofísica, Edith Stein identifica um fenômeno encontrado na manifestação dos sentimentos espirituais, o fenômeno da “expressão dos sentimentos” (Ausdruck der

Gefühle)253. A expressão dos sentimentos é típica do âmbito psicofísico no sentido próprio do termo, como puramente humana. As colorações da alma detectadas até aqui, inicialmente como vida anímica ou psíquica, depois como unidade fundamental, permitem falar dessa possível “fusão” do campo psíquico com o espiritual, mas uma fusão em que ambos os âmbitos permaneçam com

250 „Mich selbst ‚beobachtend‘ [...]“.Idem, ib., p. 67

[Parte III, §4.c]. Essa observação

reflexiva “em primeira pessoa” é uma atitude típica do método fenomenológico.

251 Essa constatação será fundamental para Edith Stein, especialmente para sua

abordagem sobre a estrutura da pessoa humana. Se a alma possui tal “plasticidade” – esse termo não é empregado por ela, mas acreditamos que retrata bem o que ela quer dizer –suas capacidades podem ser aperfeiçoadas pelo “training” – como ela registra textualmente. Logo, torna-se função essencial do pedagogo conhecer bem a estrutura geral do ser humano, assim como as capacidades da alma específicas de cada aluno, buscando catalisar seu desenvolvimento. Esse tema será explorado e apresentado detalhadamente em A

estrutura da pessoa humana, especialmente nas Partes I e II, nas quais tratará da

“Concepção antropológica como fundamento da obra educativa” (I) e da “Antropologia como fundamento da pedagogia” (II).

252 „In allen diesen Fällen liegt phänomenal ein Wirken von Psychischem auf

Psychisches vor.“ (STEIN, O problema da empatia, p. 67 [Parte III, §4.c]).

253 Idem, ibidem, p. 68

[Parte III, §4.d]: “O fenômeno da expressão”. A expressão é o que

aparece por primeiro quando nos deparamos com os sentimentos nossos e dos outros. Esse fenômeno é condição para que a empatia seja vivenciada pelos seres humanos em suas relações, mas disso não podemos inferir que o ato empático nos permite captar, de modo originário, o sentimento profundo que está por trás da expressão do outro.

sua identidade própria. Essa fusão ou transição de âmbitos aparece primeiramente no fenômeno dos sentimentos e suas expressões. Dessa constatação decorre outra:

O sentimento, em sua essência pura, não é algo fechado em si mesmo, mas é, se assim podemos afirmar, um sentimento carregado de energia que deve se descarregar. Essa descarga é possível de diferentes maneiras254.

Apesar dessas diversas maneiras possíveis, a expressão do sentimento não é algo aleatório, mas tampouco algo totalmente determinado. Constatamos que existe um tipo de influência mútua e recíproca. Esse novo fenômeno, em sua “abertura” característica, manifesta uma nova vivência, a motivação, que direcionará a análise do ser humano para o campo da vontade.

O sentimento interno prescreve qual a forma de expressão a ser adotada, e para isso é necessário uma motivação que se vincule a um ato da vontade, pois um mesmo sentimento pode se manifestar de diferentes formas. Nesse âmbito dos sentimentos e suas expressões aparece o conceito, ainda geral e amplo, de motivação255, que aos poucos será aprofundado até chegarmos à motivação propriamente dita, que se dá no âmbito do espírito que é capaz de gerar atos livres256. Para isso é preciso constatar que entre a

254 „Das Gefühl ist seinem reinen Wesen nach etwas nicht in sich Abgeschlossenes,

es ist gleichsam mit einer Energie geladen, die zur Entladung kommen muß. Diese Entladung ist auf verschiedene Weise möglich.“ (Idem, ib, p. 68 [Parte III, §4.d]).

255 A motivação, em sentido geral, refere-se a tudo que impulsiona e direciona a nossa

atenção, nosso pensamento, nossa ação a um objetivo visto pelo indivíduo como positivo, que o atrai. As motivações também podem ocasionar um impulso de rejeição. Os impulsos de atração e rejeição podem ser instintivos ou conscientes. A atração ou rejeição a algo pode ser ocasionada em diferentes indivíduos por diferentes razões. De modo geral nós chamamos tudo o que atrai ou causa rejeição de motivo.

256 Nos atos livres, no sentido propriamente dito do termo e não em um sentido

apenas geral, é onde encontramos a última coloração da alma, identificada com o núcleo da personalidade humana (Kern). Abordaremos o assunto mais adiante, mas já assinalamos que sua análise nos conduzirá a investigar essa profunda camada da alma, com os recursos dispostos até aqui. O núcleo da personalidade é que possibilita que os diferentes âmbitos da estrutura do ser humano não possam ser compreendidos, nem como totalmente dependentes uns dos outros, nem como totalmente independentes. A partir dessa observação, fica evidente que o conceito de alma serve como “fio condutor” para compreender de que modo

motivação, a expressão e os sentimentos não existe uma causalidade necessária, do tipo físico, mas cabe ao indivíduo encadeá-los, ou não, com certa liberdade.

Edith Stein apresenta a possibilidade de nossos sentimentos não se manifestarem em uma expressão de nosso corpo vivente próprio, como ocorre seguidamente entre os “homens civilizados”257. O sentimento pode encerrar em

si um ato de reflexão, que o torna objeto. Por exemplo, quando me proponho a falar com uma pessoa de quem não gosto. Com a objetivação nós passamos do âmbito puramente motivacional, que pode se realizar, ou não, nas expressões do corpo vivente próprio, para o âmbito da reflexão, que pode se realizar, ou não, em um ato de vontade.

Após essas constatações Edith Stein afirma que, se por um lado podemos afirmar que entre nossos sentimentos e suas expressões não existe necessariamente uma conexão causal (Kausalzusammenhang), por outro não podemos negar que entre eles exista uma conexão essencial e significativa (Wesens und Sinnzusammenhang). Cabe agora ver como se dá essa relação, visto que Husserl indicava a possibilidade de se encontrar o fundamento dos atos empáticos “na percepção das exteriorizações corporais próprias [leiblichen

Äußerungen] dos outros”258.

Edith Stein cita o caso de alguém que manifesta sua alegria por meio de um sorriso. A vivência do sorriso lhe é dada no mesmo instante em que seus lábios se entreabrem. Vivendo a alegria, vive também sua expressão no modo da atualidade. Mas a percepção do corpo vivente próprio pode se realizar de modo não atual, ou seja, de modo que não tenha conhecimento dela no

se interligam os diversos âmbitos, isto é, evidencia-se que as dimensões do indivíduo fundem-se, de modo anímico/espiritual, em uma unidade, sem com isso sofrerem qualquer “diluição”, o que garante à alma uma “forma” particular.

257 Edith Stein cita o caso de uma pessoa que não gosta de seu chefe e não o

demonstra por uma expressão, mas deseja-lhe o mal, valendo-se da fantasia para imaginar que algo de ruim acontecerá a ele. Nesse caso, não podemos dizer que a expressão externa reflita o que está se passando no interior daquela pessoa, que até pode aparentemente tratar o chefe de modo amigável e respeitoso. (Idem, ib.).

momento em que acontece, mas depois posso dirigir minha atenção à mudança percebida. No exemplo dado, os lábios se entreabriram e só depois apareceu para mim o sentimento. Logo, conclui Edith Stein:

Junto da unidade de significado vivenciada por mim, se constitui também uma relação causal entre sentimento e expressão. A expressão se utiliza da causalidade psicofísica para se realizar em um individuo psicofísico. Na percepção do corpo vivente próprio, decompõe-se a unidade, vivenciada por mim, de vivência e expressão, sendo a expressão separada como um fenômeno relativamente autônomo. Como consequência disso a expressão se torna, ao mesmo tempo, produzível por si mesma259.

Constata-se aqui um traço que deixa de ser característico do âmbito psicofísico, mas aponta já para o âmbito espiritual: os seres humanos possuem, além da possibilidade de produzir arbitrariamente expressões dos sentimentos, possibilidade essa que se encontra também nos animais, a capacidade de tornar as expressões apreendidas por meio do seu corpo vivente próprio um “objeto intencional em sentido próprio” (intentionalen Objekt

im prägnanten Sinne)260. Edith Stein constata que essa atitude intencional é o que existe de mais próprio no ser humano, visto que mesmo uma expressão sentida de modo atual necessita de um voltar-se para ela a fim de que se torne um objeto apreendido. E isso se dá de modo concomitante e não como se passássemos de uma atualidade da expressão para uma não-atualidade (Inaktualität) de apreensão dela como objeto261. Logo, os atos teoréticos

259 „Es konstituiert sich also neben der erlebten Sinneinheit ein Kausalzusammenhang

zwischen Gefühl und Ausdruck. Der Ausdruck bedient sich der psychophysischen Kausalitât, um sich an einen psychophysischen Individuum zu realisieren. In der Leibwahrnehmung wird die erlebte Einheit von Erlebnis und Ausdruck auseinandergenommen, der Ausdruck als ein relativ selbständiges Phänomen abgetrennt. Er wird damit zugleich für sich erzeugbar.“ (Idem, ib., p. 71 [Parte III, §4.d]). Edith Stein diz, por exemplo, que eu posso corar por estar com raiva, com

vergonha ou por um esforço. Em todos os casos se verifica a mesma expressão, isto é, o fluir mais intenso do sangue no rosto.

260 Idem, ib. Um objeto intencional é aquele que faz parte dos atos teoréticos, típicos

dos seres humanos, pois são capazes de se voltar para si mesmos, capturando o objeto percebido diante de si para “dentro” de sua consciência. Em suma, implica em reflexão.

261 Idem, ib. Nesse ponto do argumento Edith Stein remete-se ao § 37 de Ideias I, que

intencionais e os atos não-teoréticos possuem uma estreita vinculação no ser humano, visto que tudo o que lhe vem à consciência, vem sob a forma intencional ou, como diz Husserl, na forma do cogito. Mas a possibilidade de uma íntima ligação “causal” atual entre atos não-teoréticos e atos teoréticos não nos possibilita afirmar que eles possuem uma mesma forma: a diferença entre eles se dá no modo intencional dos atos teoréticos e no modo não intencional dos atos não-teoréticos262.