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Capítulo III – As colorações da alma sob nova luz

2.1. A alma no reino do Espírito

Edith Stein falará da estrutura da alma, partindo do seu conceito mais geral, visto aqui como substância espiritual549, que se encontra tanto nos seres

humanos quanto nos espíritos puros criados (anjos bons e maus). Em Deus a dimensão espiritual identifica-se com a sua essência e por isso só ele pode ser

Amado da Alma – e contando com a Graça, chegará com ele à gloria da ressurreição,

relatada por São João da Cruz nos poemas “Nas chamas do amor divino” e “Cântico espiritual”. Esse modo de tratar o caminho da relação mística pode ser interpretado no

âmbito eidético, colocando entre parênteses as particularidades do percurso intelectual e do místico, como semelhante às duas reduções propostas por Husserl. Para se alcançar a essência ou o sentido das coisas nelas mesmas precisamos das duas reduções: a redução eidética corresponderia à noite dos sentidos e nos permite identificar a dimensão noemática da alma, o seu lado objetivo, e a noite do espírito seria a redução ao sujeito transcendental que nos coloca diante de sua dimensão subjetiva ou noética. É por essa dimensão subjetiva interior que a alma pode penetrar no seu núcleo e aí encontrar-se com Deus.

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„Die Seele im Reich des Geistes und der Geister.“ (STEIN, Ciência da Cruz, p. 126-155). Mais adiante no texto Edith Stein justifica a expressão “reino do espírito” dado a dimensão espiritual incluir sempre a possibilidade da relação das partes – os espíritos criados – com o todo – Deus, espírito puro. A na dimensão comunitária, vista aqui de modo transcendente, faz parte da essência do espírito. Isso aparece explícito no final da

Estrutura, quando Edith Stein trata da dimensão social da pessoa. O mesmo tema é

desenvolvido em O problema da empatia, quando a relação intersubjetiva entre dois indivíduos psicofísicos revela que existe uma outra dimensão da natureza humana a ser identificada, a espiritual. Essa visão de pessoa espiritual coincide com a visão do idealismo alemão que, infelizmente, para enfatizá-la se vê obrigada a descartar a dimensão individual.

549 Edith Stein parte na análise da A estrutura da pessoa humana do ponto em que havia

chegado, e apenas esboçado, no final de O problema da empatia: a alma humana como substância, analisada fenomenologicamente nas relações intersubjetivas e na individualidade humana, manifesta-se também como a forma do espírito propriamente dita, tanto individual quanto universal. Ao redigir Ciência da cruz ela já tinha explorado ao máximo a análise da dimensão espiritual da pessoa humana, especialmente na sua obra

Ser finito e ser eterno. Ela parte, pois, da alma não apenas como “forma do espírito”, mas

também como sua “matéria”, ou seja, sua “substância”. Falta-lhe agora falar da “força da alma”, o terceiro elemento que ela identificara na estrutura essencial do conceito aristotélico-tomista de alma. A força da alma havia aparecido em sua análise da estrutura da pessoa humana apenas de modo apenas geral, sob a forma de uma energia vital próprio, o estado de ânimo.

chamado em um sentido próprio de espírito, ou ainda, espírito puro. Deus é espírito puro, em sentido próprio como tal, pois ele é o protótipo (Urbild) de todo ser espiritual550.

Partindo do que Deus é podemos entender, em sentido próprio, o que significa espírito. Trata-se de um mistério que nos envolve constantemente, pois diz respeito ao nosso próprio ser551. Mas nós podemos ter uma relativa penetração no mistério de Deus, o que ocorre de duas maneiras: (1) como o nosso próprio ser também é espiritual, ao nos conhecermos também conheceremos, em parte, o que ele é552; (2) também conseguimos fazê-lo, de modo relativo, na relação com os outros seres, porque todos eles, sendo portadores de sentido e espiritualmente compreensíveis, têm uma parcela de ser espiritual553. Podemos também tentar aumentar o nosso conhecimento de Deus por meio de nosso conhecimento, confrontando o modo de ser das criaturas com o que podemos compreender do criador554:

À medida que aumenta nosso conhecimento de Deus, esse mistério vai-se desvendando em nível mais profundo; mas nunca é completamente desvendado, ou seja, jamais deixa de constituir um mistério555.

550 Idem, ibidem. Nesse ponto do texto Edith Stein coloca uma nota remetendo-se ao que foi

desenvolvido sobre esse tema em Ser finito e ser eterno. Essa obra, embora tenha sido indicada aqui, foi publicada apenas postumamente em 1950, acabada a perseguição nazista.

551 Ou seja, quando dizemos que o ser humano é espírito, não estamos usando essa palavra

em sentido próprio, pois até onde conseguimos identificar, espírito é uma dimensão do ser humano, coexistindo com as dimensões corpórea e anímica. O sentido realmente próprio é o do espírito divino, no qual não há inhabitação da matéria corpórea nem de algo como uma dimensão vegetativa e psíquica (alma).

552 Esse conhecimento foi desenvolvido até o seu limite possível nas lições sobre a estrutura

da pessoa humana.

553 Esse foi o tema desenvolvido em O problema da empatia, que ao final instigou Edith Stein a

se questionar sobre a possibilidade do relacionamento espiritual não apenas entre seres humano, mas também entre esses e os espíritos.

554 Esse foi o intuito de escrever uma ontologia fundamental na forma que aparece em Ser

finito e ser eterno, cujo subtítulo é: “ensaio de uma ascensão ao sentido do ser”.

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„Aber es entschleiert sich tiefer im Maß unserer Gotteserkenntnis, ohne sich jemals ganz zu entschleiern, d.h. ohne daß es aufhörte, geheimnis zu sein.“ (STEIN, Ciência da Cruz, p.127).

Edith Stein coloca aqui, em poucas palavras, as conclusões a que chegou em Ser finito e ser eterno: o espírito de Deus é perfeitamente transparente para si próprio; dispõe de si com absoluta liberdade de existir por si próprio; exterioriza-se livremente e, não obstante permanece em si; é o fundamento de qualquer ser exterior a si, pois atinge, penetra e domina todo e qualquer ser. O espírito criado é uma imagem limitada (Abbild) de Deus, pois: sendo imagem, é semelhante a Deus; sendo limitado, é o contrário dele (Widerspiel); possui maior ou menor capacidade de receber a Deus e, por fim, encontra a sua mais sublime forma (Form) na união com Deus 556. Quando o

espírito se une a Deus se torna possível a entrega mútua, livre e pessoal. Desse ponto Edith Stein diz que é possível explicitar o que se entende quando falamos de um reino do espírito e do reino dos espíritos: em sentido geral, o termo “espírito” tal como está sendo tratado aqui, abrange mais do que a totalidade dos espíritos, pois inclui tudo quanto é elemento espiritual, ou seja, em certo sentido, todos os seres. Mas quando falamos do reino dos espíritos, no plural, estamos tratando de uma certa “hierarquia” ou forma de organização da substância espiritual557: os seres espirituais (os espíritos) pessoais têm importância de primeira ordem, mas é Deus quem ocupa o primeiro lugar, excedendo infinitamente a todo ser espiritual e a todos os espíritos. Deus é o fundamento que sustenta todo o ser, dando-lhe existência e conservando-o. Consequentemente, um espírito criado só pode elevar-se até ele (Deus) erguendo-se acima de si mesmo e aquele que a ele subir encontra nele, simultaneamente, seu apoio seguro.