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A alma imortal-mortal em B62 e B77b

Capítulo 2: A psychê

2.4. Grupo 3: A alma após a morte em B24 e B98

2.4.3. A alma imortal-mortal em B62 e B77b

B62 e B77b é mais uma dupla de fragmentos de sentido próximo; da qual a genuinidade de um deles é contestada, outra vez, o mais aceito como genuíno, B62, servirá como base da análise. Seus quatro primeiros termos são duas palavras ordenadas em quiasma: imortais, mortais, mortais, imortais (athanatoi thnêtoi thnêtoi athanatoi)155.

Geralmente, a partir do uso de 'imortais' como sinônimo de 'deuses' em grego, lê-se nesse fragmento uma referência à relação entre humanos-mortais (thnetoi) e deuses- imortais (athanathoi)156. O que se viu até agora é que o uso de humanos e deuses

serviria como uma fórmula para abarcar a totalidade dos seres capazes de alguma criação ou valoração, capacidades provavelmente relacionadas com a posse de uma alma157. Mas no caso de B62 deve haver alguma diferenciação entre eles, pois uns

vivem a morte dos outros e vice-versa. Essa relação parece indicar uma união de estados extremos, segundo a qual ocorrem as mudanças em Heráclito. Neste caso, ao se ler mortais e imortais como humanos e deuses, seria preciso supor uma transformação de

155 Segundo Kahn: “este é, na questão formal, a obra prima de Heráclito, o mais perfeitamente simétrico de todos os fragmentos. As primeiras duas frases de duas palavras cada uma (com a copula não expressa no grego) são imagens de espelho, idênticas mas com uma ordem de palavras diferente: a-b-b-a. A terceira e a quarta frases envolvem inversões mais complexas: ao particípio 'vivendo' na terceira frase corresponde o nome 'vida' na quarta; e conversivelmente para 'morte' na anterior e 'morto' na última. A simetria é outra vez reforçada pela ordem quiásmica, particípio, frase nominal, frase nominal, particípio. A estruturação dois-a-dois, quatro-a-quatro destas doze palavras aponta para algum padrão fechado de união entre vida e morte do qual o conteúdo exato não é fácil de ser extraído” (KAHN, 2001, p.216-217). Uma tentativa de interpretação filosoficamente significativa desta estrutura será apresentada na sequência. 156 Heráclito como personagem de Luciano no Victarum Auctio 14.17-20 responde à pergunta 'o que são os humanos?' com 'deuses mortais' enquanto que os deuses seriam 'homens imortais'.

157 Em B30 nenhum dos deuses ou homens criou a ordem do mundo, em B24 homens e deuses valorizam os que morrem em combate. Isso não implica que para Heráclito os deuses tenham alma, mas sim que, usando uma fórmula tradicional, ele abarca a totalidade de seres que seriam vistos como capazes de desempenhar funções intelectuais, no caso dos humanos, dependentes da posse de uma alma.

uns nos outros e vice-versa, situação que não é consistente com a crítica a um destino afortunado aos humanos após sua morte. Uma alternativa de leitura pertinente surge ao se aceitar a sugestão de associar esta mudança à psychê a partir de B77b158.

Como uma sequência da B77a, em B77b é dito que “nós vivemos a morte daquelas, e aquelas vivem a nossa morte” de modo que 'aquelas' seriam as almas tratadas em B77a. A relação descrita em B77b é semelhante à de B67 onde se lê “vivendo daqueles a morte, e daqueles morrendo a vida”, mas nesse caso o que precede a relação é o quiasma “imortais mortais e mortais imortais”. Se a relação descrita é entre dois termos, uns vivem a morte dos outros e vice-versa, parece ser o caso de ler-se nesse quiasma de quatro termos apenas dois referentes que seriam os imortais-mortais e os mortais-imortais159. Agora, se uma comparação entre B62 e B77 pode levar a uma

compreensão geral o 'nossa' de B77 remeteria aos mortais (que seriam imortais) de B62, enquanto a 'psychê' remeteria aos imortais (que seriam mortais)160. Esta leitura faz da

descrição aparentemente paradoxal destes fragmentos uma descrição precisa do estatuto ambíguo da alma como vem sendo investigado.

A psychê seria o imortal adjetivado mortal pois, enquanto vapor, ela participa da ordenação eterna do cosmos, em mudanças medidas do fogo eterno. Por outro lado, esse

158 Porém isso não implicaria em aceitar, além da referência à alma, também as concepções órfico- pitagóricas, segundo as quais o corpo é o túmulo da alma como fazem, por exemplo, Bollack-Wismann: “Os intérpretes modernos se sentiram tentados a ligar o fragmento à história das religiões, achando nos imortais mortais tanto a morte do deus Dioníso, quanto sua encarnação em uma forma humana, por queda ou metamorfose, e nos mortais imortais os seres humanos divinizados. Mas, como evitamos atribuir a Heráclito a justificação do conteúdo dos mitos, preferimos ver aqui a descrição, velada pelo estilo oracular, de crenças “órficas” e “pitagóricas” na migração de almas e na sua passagem alternada do reino divino ao reino humano” (BOLLACK-WISMANN, 1972, p.210). Como, além de atribuir a Heráclito uma justificação do conteúdo dos mitos, também se evita atribuir a ele crenças órficas e pitagóricas, a leitura subsequente tentará uma outra via.

159 Mouraviev apresenta a leitura de Vaulius que opta por não determinar um sentido: “Ele propõe oito interpretações para o começo do fragmento F62 (athanatoi thnêtoi thnêtoí athanatoi) que pode ser uma ou duas proposições, ou a ordem sujeito-predicado, ou predicado-sujeito, ou todos adjetivos, ou nomes ou os dois cada um (…) Esta ambiguidade consciente é plena de sentido e torna impossível uma escolha.” (MOURAVIEV, 2002, p. 87). Mas a determinação de mais uma união entre opostos, mortal-imortal e imortal-mortal parece mais satisfatória.

160 Como a maioria dos adjetivos compostos pelo alfa privativo, athanatos (imortal) é normalmente biforme (uma forma para o masculino e feminino, outra para o neutro), de modo que pode-se referir ao feminino psychai (almas), apesar de haverem também ocorrências em que o feminino é marcado. Cf. LSJ.

componente eterno pode ser adjetivado mortal na medida em que, quando deixa o corpo humano, seu microcosmo perece e ela perde qualquer individualidade. Já o humano seria um mortal pois perde a vida quando perde a alma, mas que poderia ser adjetivável de imortal, uma vez que após a morte seu cadáver como terra e sua alma como vapor continuam a participar da mudança no cosmos.

Além disso, como também foi visto, parece ocorrer no cosmos uma conflagração que reduz todos os componentes, água, terra, vapor e fogo, ao seu constituinte, o fogo. Neste sentido, também o vapor e a terra seriam mortais, pois poderiam ser reduzidos ao fogo, mas seria outra vez uma mortalidade imortal, pois, em última instância eles já eram constituídos pelo fogo.

A morte seria então a perda da individualidade do homem ou do componente e a imortalidade viria da constatação de que esta perda não implica em extinção absoluta e definitiva. Seria dessa duplicidade entre mortalidade e imortalidade, assim como a participação na mudança do mortal (micro) ao imortal (macro) e do imortal (macro) ao mortal (micro) que o fragmento trataria. Pode-se ler imortais-mortais e mortais-imortais como um par de extremos, o que faz do quiasma de B62 uma composição em arco na qual os extremos unificados são também opostos.