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Capítulo 2: A psychê

2.4. Grupo 3: A alma após a morte em B24 e B98

2.4.2. A morte em B24 e B136b

Para confirmar a hipótese de que a glória após morte se restringiria à fama do nome do morto entre os vivos é preciso investigar os fragmentos que tratam especificamente desta situação. Entre eles estão o duvidoso B136b e o unanimemente aceito B24, motivo pelo qual, como vem sendo feito, B24 deverá fundamentar a interpretação enquanto B136b será examinado em busca de alguma nova informação desde que coerente com B24.

A morte figura em B24 no termo arêiphatos, literalmente, quem é morto por Ares, o deus do combate. O sujeito parece ser uma expressão polar positiva (Cf. MARCOVICH, 2001, p.510) que repete aquela negativa de B30. Para dizer que 'ninguém' criou a ordem do mundo Heráclito diz que nenhum dos deuses ou homens a fez (B30), por outro lado, para dizer 'todos' ele diz deuses e homens em B24. A essa totalidade cabe o papel de atribuir um valor (timaô: atribuir o devido valor, apreçar, honrar) aos mortos em combate. A questão que fica, então, é sobre o tipo desta honra. Segundo Marcovich, o fato de os deuses honrarem implicaria em alguma recompensa

o fragmento seja bastante naife na implicação: simplesmente que a alma é (de acordo com uma visão popular) respiração, que o cheiro é inalado com a respiração, e portanto que o cheiro é o sentido usado pela alma quando os outros órgãos pereceram com o corpo. Se é assim, então o fragmento poderia ser irônico, ou um ataque à ideia da alma-respiração.” (KIRK-RAVEN, 1971, p.211 n.3) Tratando, então, de uma crítica à ingenuidade da concepção popular aceita sem ser submetida à análise da razão.

após a morte, que, por sua vez, implicaria em algum tipo de sobrevivência individual após a morte. Porém como ele mesmo notara, tanto em B30 quanto em B24 o uso desse sujeito que aglomera a totalidade, ao citar homens e deuses, é justamente o de não fazer distinção entre eles. De modo que o tipo de honra, de valor, que todos atribuem aos mortos em guerra deveria ser também indistinto. Nesse ponto, surge um problema, já que, diferentemente dos deuses, os humanos não têm poder suficiente para dar recompensas às almas que lhes garantiriam fortuna após a morte. Aos humanos sobreviventes restava dedicar aos cadáveres ritos fúnebres ou honrar o nome dos mortos através da memória152. Como a opção do rito fúnebre já foi refutada, restaria aos deuses

e humanos compartilharem uma valoração memorial da fama dos mortos. Em acordo com a interpretação proposta aqui, quem morre na guerra conquistaria a glória de uma bela memória para o seu nome, mas o destino do que resta, o cadáver que vira esterco e a alma que vira vapor, é muito diferente, e menos surpreendente do que ele imagina, pois ambos apenas seguem seu caminho na mudança cosmológica recíproca.

B136b geralmente não é aceito como genuíno, ele informa que: “almas mortas em combate são mais puras do que em doenças153”. O fragmento encerra três

informações básicas às quais já se fez referência em alguns fragmentos analisados. Outra vez o uso do plural psychai é usado para referir-se às almas individuais nos humanos. A morte na batalha, por sua vez, deveria valer ao morto uma boa memória entre os sobreviventes, mas não garantiria nada de especial à sua alma após a morte, que

152 Como diz Guthrie “(B24) não precisa dizer mais do quê que a morte em batalha é pensada gloriosa, e a memória do morto respeitada pelos deuses assim como é indubitavelmente pelos seus companheiros mortais.” (GUTHRIE, 1962, p.477) A única individualidade que resta a um morto é aquela da lembrança de seu nome pelos que não morreram, podendo ela ser boa ou ruim, de acordo com o que ele fez em vida. Há de se destacar também a associação entre o comum (com julgamento) e as leis da cidades em B114 que justificaria o fato de uma morte em batalha, ou seja, defendendo as leis da cidade, ser louvável por seguir o comum.

153 Além de tardio trata-se de um hexâmetro ao qual a maioria das obras de referência consultadas negam uma genuinidade. Diels (1906, p.81) assim como Kahn (2001, p.286 seq.) o colocam no apêndice de citações dúbias. Marcovich (2001, p.509) diz B136 ser apenas uma reminiscência de B24.

apenas voltaria a participar da mudança recíproca macrocósmica. Por fim, a relação comparativa entre este tipo de morte e aquela por doença parece afirmar alguma diferença entre seus processos.

Normalmente estes tipos de morte são lidos como opostos154, mas neste caso a

diferença entre eles, devido ao comparativo que indica uma maior pureza, parece ser mais de grau. Foi visto que a doença sagrada umedeceria a alma; se essa referência é pertinente, a morte em batalha, ao ser dita mais pura, seria ainda mais úmida ou mais seca do que aquela em doença, dependendo do que Heráclito entendesse por pureza. A partir de uma leitura física do tratamento da alma após a morte do humano, pode-se inferir que uma maior pureza seria a predominância da secura, o que agilizaria o seu processo de re-entrada na mudança macrocósmica ao aproximá-la do constituinte básico, o fogo.

Heráclito provavelmente não criticaria a tradição em relação ao costume de louvar-se aqueles que morreram em batalha, como provaria a já citada comparação entre seguir o comum e as leis da cidade (B114); porém, B136b não fornece evidências suficientes para garantir que ele endossaria uma recompensa para o destino da alma do morto na guerra além da fama de seu nome. Como o interesse da presente pesquisa é no

154 Kirk e Raven, apesar de negarem a originalidade de B136, arriscam desenvolver uma interpretação: “como podem as almas daqueles mortos em batalha (…) serem 'mais puras' do que as almas daqueles mortos de doença? A resposta, eu sugiro, é que as últimas são úmidas e ineficientes, e quem as possui está em uma condição semi-consciente e similar-ao-sono (sleep-like); aqueles mortos em batalha, ao contrário, são separados no auge de sua atividade, quando suas almas estão ígneas pela atividade virtuosa e corajosa” (KIRK; RAVEN, 1971, p.210). O problema é que a crítica ao thymos motivou a interpretação de que ele aconteceria num estado úmido da alma, e, sendo o thymos um estado típico da batalha, se essa tornasse a alma ígnea por si, o thymos deveria seguir o mesmo. Kirk e Raven estão cientes dessa possível contradição e citam em nota a posição de Verdenius relativa a B85: “(em B85) é difícil controlar a raiva (thymos) porque a alma-fogo (que presumivelmente controla) foi diminuída pela raiva. Isto é provavelmente correto: mas na raiva virtuosa ou emoção (como na concepção heroica da batalha) esta perda pode ser mais do que feita por um aumento do fogo.” (KIRK; RAVEN, 1971, p.210-211 n.2) A solução que apresentam então é dividir em raiva ruim, que abaixaria o fogo, e raiva virtuosa no contexto de batalha, que aumentaria o fogo. Mas parece mais satisfatório assumir que em qualquer contexto, inclusive na batalha, o domínio do thymos retira a capacidade racional do humano, o que é condenável. Ele o faria aumentando sua umidade, portanto fazendo um dos seus componentes, a água, prevalecer. Assim, a morte na batalha louvável seria apenas aquela de quem combate seguindo a razão, já que quem morre na batalha por ter seguido o thymos cegamente sequer mereceria ser louvado em memória pelos sobreviventes.

estatuto da psychê, não serão aprofundados os tratamentos nem da morte do humano enquanto indivíduo, nem da fama que ele deixa. Por agora, convém explicitar como a ambiguidade da qualificação de um mortal-imortal e de um imortal-mortal se encaixa no tratamento duplo da psychê como alma e como vapor.