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Uma crítica à atuação das psychai no Hades em B98

Capítulo 2: A psychê

2.4. Grupo 3: A alma após a morte em B24 e B98

2.4.1. Uma crítica à atuação das psychai no Hades em B98

Em B98 três informações e suas relações são importantes para a presente investigação. Primeiro, é o uso do plural psychai, que, como se viu, indicaria tratar-se de um grupo com alguma individualização, podendo ser entendido como 'as almas'. Além disso, estas almas são localizadas no Hades, tradicionalmente visto como o lugar para o qual elas vão após a morte dos humanos. Por fim, às almas no Hades é atribuída a capacidade de 'farejar'. Que o uso destes termos remetem a uma concepção tradicional parece ser comprovado por uma passagem da Odisseia, na qual recorrem vários elementos comuns.

Quando Odisseu desce ao Hades em Od. 11.55 e seq145., ele se encontra com

algumas psychai. Sua primeira conversa é com seu companheiro Elpenor que reclama do destino da sua alma no Hades ser ainda mais infeliz, por seu corpo não ter recebido os ritos fúnebres tradicionais. Antes de pedir por um enterro e funeral que lhe tornarão digno de ser lembrado pelos homens que ainda nascerão, ele narra o motivo de sua

145 Mesmo que não se trate de uma crítica intencional especificamente dirigida a essa passagem, certo é que o trecho da Odisseia serve como testemunho de uma tradição que Heráclito parece criticar. Referências a Homero acontecem repetidamente em Heráclito, que chega a criticar o poeta e a tradição que ele representa, nominalmente em B42 e B56 (analisado no capítulo 3). O fato de esta passagem da

Odisseia ser vista como uma adição posterior não retira sua condição de apresentar uma concepção

tradicional, pois seria um acréscimo amplamente aceito. Em suas notas Merry, Riddell e Monro dizem ser “provavelmente uma adição posterior pertencente a um período quando a 'nekuia' era recitada como uma rapsódia separada.” (MERRY; RIDDELL; MONRO, 1886, 11.53)

morte. Elpenor teria sido acometido pelo desvario divino (ate) provocado pela desmesura no consumo de vinho, motivo pelo qual ele sofreu uma queda fatal da escada. Foi visto que em Heráclito o vinho umedece a alma impedindo o homem de encontrar o caminho de casa, o que caracteriza alguma semelhança nas situações durante a vida. Porém, se após a morte a visão tradicional utilizada na Odisseia prescrevia a importância do enterro e do funeral do corpo, em Heráclito, não só o cadáver146 mas também vários rituais religiosos são desprezados por seu despropósito,

quando analisados sob um olhar objetivo147. Pode-se inferir então que o enterro e o

funeral seriam também alvo da crítica heraclitiana de modo que a glória posterior à morte não dependeria de nenhum deles, ficando assim restrita ao comportamento em vida148.

Se a posição do filósofo em relação à condição do corpo após a morte é feita a partir da crítica à tradição, nada impede que sua postura em relação à alma após a morte repita o mesmo procedimento. Esta possibilidade é reforçada ainda pela declaração que se encontra em B27, segundo a qual resta aos humanos mortos aquilo que não esperam. Se for assim a concepção de Heráclito do destino das almas após a morte deve ser diferente da tradicional representada na referida passagem da Odisseia e em B98. O

146 Como em B96, no qual cadáveres são ditos serem mais dispensáveis do que esterco.

147 Como em B5, quando os rituais de purificação com sangue e as rogas às estátuas são criticadas pela comparação com lavar-se em lama e conversar com uma casa. Assim Heráclito adota uma posição segundo a qual os comportamentos religiosos deveriam ser analisados sem considerar seu teor ritualístico para verificar-se sua pertinência. Também em B15 o tratamento tradicional dado ao Hades e a Dioníso são criticados. A interpretação mais geral é aquela que vê na unificação de Dioniso e Hades a unificação entre vida e morte, como Guthrie que diz “Hades e Dioniso, o deus da morte e o deus da vida são o mesmo.” (GUTHRIE, 1962, p.476) Mas existem leituras mais específicas que associam Dioniso com o vinho, justificando a condenação do rito pela condenação de B117. Neste caso o vinho do ritual que celebra a vida traria a morte da alma. Desviando a perspectiva da análise de Dioniso para o Hades, e lendo Hades a partir de B98 relativo à etimologia tradicional a-idês (in-visível) surgiria ainda uma outra possibilidade de oposição unificante. Se Hades é o invisível, Dios-nysos é o brilhante, pois tem a raiz

dios cujo sentido primeiro é o de brilho, claridade (cf: BAILLY, 1963, p.2224-2226, s. v. “Zeus”: “Seu

nome, que figura sobre as tabuletas micênicas, repousa sobre a raiz indo-europeia que significa ‘brilhar’ (*dyeus, skr. dyauh, di=oj, dies)”). Tornando significativas estas três possibilidades, Heráclito estaria unificando não só vida e morte, sua relação com o estado úmido ou seco da alma, mas também as qualidades a eles associadas, claridade e escuridão.

movimento recíproco descrito em B36 no qual a alma participa como vapor do macrocosmo quando deixa o microcosmo, ou seja, quando o humano morre, satisfaz essa condição. Seguindo essa leitura B98, seria mais uma crítica à maioria que acreditaria na individualização da alma após a morte149. Neste caso, o plural

individualizante de psychê, sua capacidade de farejar e sua ida ao Hades, seriam elementos tradicionais atribuídos à alma após sua morte, que figurariam em Heráclito apenas para serem refutados. De modo que a psychê vapor, condição à qual a alma retornaria após a morte do humano, não seria passível de individualização (psychai), não seria senciente (farejar), nem desceria a um espaço reservado a ela (o Hades). A apresentação destes elementos em B98 seguiria o padrão de crítica aos rituais religiosos mostrando ser a existência de um Hades no qual almas individuais farejassem150 tão

insensata como a purificação através da lavagem com sangue, ou da conversa com uma estátua (B5).

Como no caso das críticas aos ritos de purificação de crimes de sangue lavados com sangue e das orações dirigidas às estatuas, os humanos aceitariam sem problematizar que seu destino após a morte do corpo fosse um depósito de almas no qual eles distinguiriam sua individualidade através das sensações, mesmo tendo perdido seus órgãos perceptivos151. Porém, ao contrário dessa esperança fantástica compartilhada

149 Posição próxima a de Pradeau quando diz que Heráclito “contesta, do mesmo jeito que as representações antropomórficas do divino, que nós pudéssemos supor a busca de uma vida de felicidade, ou, até, além da corrupção física (…) Se a alma é um ar quente e seco, é necessário que, como todas as coisas, ela seja contida em um processo de transformação elementar cósmica. Como fogo, sob este ponto de vista, ele subsiste e se transforma em outra coisa que ela mesma; enquanto alma individual ela morre.” (PRADEAU, 2002, p.292) A diferença é que aqui o tratamento crítico que legitima uma interpretação negativa não só de B98 mas também de B7 e B27 é sua postura em relação ao comportamento dos humanos frente aos rituais religiosos. Para Heráclito, então, não faria sentido esclarecer uma concepção do pós-morte de uma alma individual porque ela seria conjecturada através dos sentidos e cognições humanas gerando opiniões e esperanças humanas que não fariam sentido nenhum após a morte. Portanto lhe resta apenas mostrar que todas as concepções das crenças populares são insensatas.

150 A crítica mostraria a impossibilidade para as almas de terem qualquer tipo de sensação. O uso do cheirar nesse caso específico se justificaria pelo fato de as almas serem vapor e também porque, segundo a crença popular, a visão não funciona no Hades como mostram sua adjetivação por melas (negro) feita por Odisseu na referida passagem, e a etimologia popular citada no Crátilo de Platão (403a) de Hades como invisível (a- (alfa privativo) + ides (visível)).

pela maioria, segundo Heráclito, o que restaria aos humanos após a morte seria bem mais trivial. O corpo-cadáver se tornaria esterco e a psychê voltaria a compor a massa vapor. Nesse esquema, o corpo e a alma depois da morte retornam à mudança recíproca macrocósmica, a diferença é que o corpo voltaria como terra e a alma como vapor. A única coisa que restaria de particular do humano após a morte seria a fama ou glória, não como garantia de alguma recompensa para sua alma, mas como lembrança do seu nome. Para alcançá-la cada um dependeria somente de seus atos em vida seguirem o comum, independentemente de qualquer ritual fúnebre.