• Nenhum resultado encontrado

O logos como medida racionável no grupo 3

Capítulo 1: O logos

1.4. Grupo 3: o logos como medida em B31, B45 e B115

1.4.4. O logos como medida racionável no grupo 3

O grupo 3 parece ser o mais complexo tanto de se agrupar em relação aos seus fragmentos quanto de se confrontar aos outros grupos. Ele apresenta um sentido de logos devedor do âmbito matemático, identificado na etimologia do termo, que poderia ser denominado uma medida racionável. Esse logos, como medida racionável, seria móvel (sempre em mudança) e fixo (seguindo uma mesma proporção), ou seja, uma progressão regular. Especificamente em B31, a mudança aconteceria através da adição regular de metades. Já nos outros dois fragmentos a medida, não mais restrita ao quociente de ½, encontra-se relacionada à alma. Em B45, a medida da alma parece ser fixa, delimitada por limites, enquanto em B115 ela parece ser móvel, em constante expansão. Essa tensão móvel mas delimitada poderia ser resolvida exatamente com o conceito de medida racionável apresentado pela progressão proporcional em B31.

Ao ser relacionado à noção geral de logos como razão/ raciocínio e discurso racional o sentido de medida racionável adicionaria uma característica importante: A possibilidade de se conhecer aquilo do que não se tem experiência dos limites através da proporção experienciada em um estágio intermediário.

A epistemologia de Heráclito mostra que ao humano é preciso conhecer um extremo para se conhecer o outro. Para conhecer as coisas justas o humano precisa das

80 Além de logos, peras e metra também devem ser melhor determinados. Os peirata (B45, 103) indicariam os limites no sentido de início e fim de alguma coisa. Esses limites extremos, aplicados ao modelo de movimento em B60 (cima e baixo/ início e fim) e à mudança material em B31 (mar → terra → fulguração) e em B36 (é morte para água terra gerar), comportariam um sentido tanto espacial (começo e final) quanto temporal (origem e fim). Eles seriam delimitadores fixos do movimento de mudança que perpassa todas as coisas existentes. Já a noção de metra aparece em B30, onde o fogo se acende e se apaga em medidas (metra), e em B94, onde se diz que o sol não pode ultrapassar suas medidas ( metra). De modo que em B30 metra parece se aproximar do sentido de logos como proporção, justamente o que ocorre no subsequente B31 que explica as formações do fogo. Já em B94, metra parece se aproximar do sentido delimitador de peras (temporal e espacial).

injustas (B23) assim como é a doença que faz a saúde bela (B111). O que a introdução da medida racionável permite é o conhecimento daquilo com o que não se tem contato direto, como alguns dos opostos extremos, mas apenas com situações intermediárias. Assim o contato com a ordem do cosmos permite conhecer sua geração de modo que a cosmologia leva à cosmogonia. Da mesma maneira que o contato com a alma no microcosmo (o humano) permite conhecer o macrocosmo (o mundo).

Conclusão do capítulo 1

O exame da noção de logos abrangendo os três sentidos examinados conduz às seguintes conclusões. Do exame do grupo 1 se depreende a acepção de logos enquanto razão comum, razão que funciona sempre e em acordo com a qual (mas não por causa da qual) todas as coisas vêm a ser (B1). Ela é comum e deve ser seguida (B2). Seguindo-a se compreende que tudo é um (B50). Dizer que "é comum" equivale a dizer que ela é compartilhada por todo humano, conjugada em cada um, e que todo humano deve compartilhar a compreensão que comunga tudo, que torna tudo unido.

Além disso, o grupo 1 fornece ainda informações sobre essa capacidade aplicada, ou seja, enquanto raciocínio e discurso racional. Heráclito afirma discorrer em acordo com a natureza e explanar o que cada coisa tem (B1). Mas este discurso correto, que distingue, quando confrontado com a razão comum que une, impediria que a distinção fosse racional. Uma solução possível para o problema consiste em embasar a distinção nas informações adquiridas pelos sentidos (cf. Capítulo 3). Desta forma a distinção assumiria um papel prévio de condição necessária, embora insuficiente, para o conhecimento que culmina na união. Caso ela seja o primeiro passo rumo ao conhecimento, sua relação com a razão estaria resolvida.

ela dispõe para se conhecer a si mesma. Ela seria distinguida em palavras e fatos (B1) de modo que a partir da compreensão e união de distintas informações sensitivas, palavras seriam ouvidas e fatos seriam vistos, a razão os interpretaria. Isto permitiria ao seu portador produzir palavras e ações que seriam corretas, uma vez que tenha ultrapassado a etapa da distinção e tenha compreendido a união. Neste esquema, todo humano, independente de receber um raciocínio pessoal através de um discurso racional (ainda que seja esse correto como o de Heráclito) ou de ter sensações particulares, poderia concordar que tudo é um (B50).

A amplitude mais pessoal da razão comum, realizada no raciocínio e expressada no discurso racional, quando não se refere ao próprio Heráclito, é tratada no grupo 2. Um exemplo é o de Bias, portador de um raciocínio completo (B39), mesmo que ele não seja exposto num discurso racional. A prova de que ele é correto é sua citação por Heráclito ao tratar justamente do problema dos raciocínios incompletos dos humanos: muitos são ruins e poucos são bons (B104). O questionamento da sua forma de expressão discursiva surge da comparação entre as versões de Heráclito e Bias para este dito que seriam diferentes. Ainda relacionado a este tema da crítica aos discursos da maioria, tem-se a alusão àqueles que se assustam a cada discurso, os quais seriam considerados indolentes (B87). As causas disso seriam falhas tanto do emissor quanto do receptor. Um emite um raciocínio incompleto pois não compreendeu as informações recebidas pelos sentidos com sua razão (só deu o primeiro passo), o outro recebe esse discurso de maneira incompleta, pois não o submete ao exame da razão. A incompletude os torna incapazes de perceber a união, e assim seguem separados, defendendo a separação (B108), incapazes de compreenderem a união.

outra solução. Se antes a distinção era percebida, mas a compreensão da união ignorada, agora sequer a distinção será feita. Em um âmbito cosmológico o humano seria incapaz de perceber os limites distintos, como a origem e o fim do cosmos em fogo, o que impossibilitaria também sua união. A solução apresentada também depende da razão comum, porém, para compreender a união entre estas coisas ela a medida racionável. Pela proporção, o humano conseguiria, a partir do intermediário percebido, compreender os limites que não percebe. Assim os processos cosmológicos entre o constituinte e os componentes no cosmos, o fogo, a água, a terra e o vapor seriam compreendidos na sua amplitude pela aplicação das mesmas medidas racionáveis (B30- 31).

Para que um tal conhecimento seja aplicável seria preciso que pelo menos as medidas racionáveis intermediárias fossem perceptíveis. A solução para isso seria a atribuição de um duplo estatuto à psychê, como alma no humano (microcosmo) e como vapor no macrocosmo (como se verá no próximo capitulo). O contato do humano com sua alma, um componente que aumenta sua própria medida racionável (B115), lhe permitiria perceber um estágio intermediário que lhe forneceria uma medida racionável para alcançar os limites cosmológicos e cosmogônicos inalcançáveis através de uma busca física interior (B45).

A noção antropo-epistemológica de logos seria então determinável a partir de pelo menos três amplitudes que ela abarca: 1) a razão como faculdade comum a todo ser humano; 2) o raciocínio que permite a cada humano compreender os divergentes e, em seu uso linguístico, vem expresso em um discurso racional; e, 3) a medida racionável como seu uso matemático que permite a cada humano partir de um intermediário para raciocinar acerca dos limites com os quais não tem contato.

Porém, como já foi antes aludido, essa leitura depende da solução de dois problemas identificados no processo racional de conhecimento humano. O primeiro é relativo ao papel da alma como componente que funciona como intermediário participando do micro e macrocosmo. É ela que permitira ao humano compreender aquilo cujos limites lhe são inalcançáveis. O segundo é relativo à necessidade do humano de compreender que o que ele percebe como divergente é unido. Para que isso possa ocorrer é necessário, antes de mais nada, que possa percebê-los como divergentes e separados. É então que entra em cena o apelo ao papel dos órgãos sensitivos no processo de percepção humana.

Serão, então, estes, a alma e os sentidos, os objetos a serem examinados nos capítulos seguintes. No segundo capitulo se buscará determinar o estatuto da alma no âmbito do pensamento de Heráclito, e, no terceiro, aquele das percepções sensíveis, sempre com ênfase no seu papel relativo ao conhecimento humano.