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A alma após a morte a partir do grupo 3

Capítulo 2: A psychê

2.4. Grupo 3: A alma após a morte em B24 e B98

2.4.4. A alma após a morte a partir do grupo 3

Um tratamento da alma que perde a individualidade após a morte, mas é imortal enquanto massa, explicaria ainda uma lacuna no pensamento de Heráclito, aquela de como se dá a interação entre o macro e microcosmo. Como, por exemplo, a psychê- vapor viraria psychê-alma animando um corpo, constituindo um microcosmo, e como ela o deixaria voltando ao macrocosmo. Isso não poderia acontecer como num contexto órfico-pitagórico pela transmigração de almas, pois, em Heráclito, com a morte as almas perderiam para sempre qualquer individualidade. A resposta estaria descrita no fato de o

macrocosmo viver a morte do microcosmo e vice-versa (B62). Nas mudanças restritas a cada âmbito, o macrocosmo perde em proporção de vapor medidas que tornam-se fogo ou terra (grupo 1 do capítulo 2), e o microcosmo perde ou ganha umidade ou secura de acordo com o estado predominante do seu vapor (grupo 2 do capítulo 2). O mesmo ocorreria na relação entre macro e microcosmo; o vapor que formar um microcosmo é subtraído da massa do componente no macrocosmo, e, quando este microcosmo perder a alma, sua mesma proporção reforçará o vapor na guerra macrocósmica entre extremos. Pode-se ainda inferir que, se uma alma morre úmida, ela reforça o vapor mudando em direção a água, e, se morre seca, em direção ao fogo. Como foi visto, esta 'pureza' não implica em um destino melhor ou pior para a individualidade da alma que acaba completamente, o movimento é recíproco mas não retem nada de seus estados anteriores (B24, B136b). A memória do homem morto em batalha tem que ser mantida pelos vivos, pois a individualidade de sua alma pereceu para sempre assim como os traços particulares de seu cadáver foram decompostos para sempre. A volta de uma porção de vapor na constituição de um outro humano não implica no retorno da individualidade que essa porção pode ter vivido anteriormente.

Neste esquema B62 trataria do caminho descrito em B36 no qual as almas retornam ao ciclo cósmico do qual participam a água, a terra, o fogo e o vapor161, todos

esses sendo, segundo B30-31, formações de fogo. Esse caminho de B36 teria sua intrincada relação de continuidade então explicada em B62 o que ainda permite entender porque a psychê não tem limites. Ela é vapor no macrocosmo e, ainda mais,

161 “Um cético teimoso (die-hard) poderia discutir que 'o viver vem da morte' significa apenas que as criaturas são formadas do que previamente era matéria inanimada, mas não é tão fácil explicar 'o velho muda e se torna novo'” (GUTHRIE, 1962 p.479). A leitura de B62 aqui não é tão simples mas vai de acordo com o 'cético-teimoso'. No caso de B88 que iguala além de vivo/ morto, acordado/ adormecido também jovem/ velho a resposta seria parecida. Do mesmo jeito que o vivo não precisa (nem pode) ser a mesma porção individual da alma saída da massa vapor que transmigraria a segunda vez para um novo corpo, o jovem também não precisa ser o velho rejuvenescido. Pode-se tratar da procriação confirmada pela crença de que o neto teria alguma equivalência ao avô (sem implicar que seja a mesma alma).

em absoluto ela é fogo, o constituinte elementar do cosmos. Além disso a psychê possui uma medida que aumenta a si mesma pois participa das mudanças no macrocosmo e encerra mudanças similares no microcosmo. Essa relação torna possível que ela sirva de medida (logos-medida) para que a razão de um humano (logos-razão), um microcosmo, possa conhecer aquilo cujos limites não encontrará em vida. Uma vez morto ele pode até encontrá-los pois fará parte do macrocosmos, mas terá perdido a individualidade, a razão humana e os sentidos, e como o conhecimento depende destas capacidades fica impossível à sua alma enquanto vapor ou ao seu corpo enquanto terra conhecer estes limites. Por outro lado, ao humano que busca em si mesmo com a alma interpretando corretamente a informação dos sentidos, é dada a razão de encontrar por proporção estes limites dos quais jamais terá experiência sensível.

Conclusão do capítulo 2

A psychê em Heráclito pode ser divida em dois estágios diferentes de um mesmo processo de mudança, ela pode ser vapor, uma massa indistinta que é um dos componentes do cosmos, ou a alma, o constituinte do corpo humano (B36), que é individualizável por garantir-lhe as capacidades de sentir e de pensar (B85, B118). Outra base para a associação entre eles é o fato de o humano, além de participar do processo de mudança do mundo, também constituir um microcosmo que funcionaria de maneira análoga ao macrocosmo onde está inserido. Apesar de seus constituintes serem diferentes, o vapor no micro e o fogo no macrocosmo, os dois âmbitos seriam compostos pelos mesmos componentes, água, terra, vapor e fogo, todos em quantidades variáveis de acordo com a constante mudança recíproca à qual estão submetidos (B30- 31, B76abc e B36). Esta mudança explicaria as variações de estado tanto do mundo, períodos secos, quentes, chuvosos e frios, quanto da alma nos humanos que poderia estar seca, quente, úmida e fria (B126). No caso da alma esta variação física estaria

relacionada às suas capacidades intelectuais e sensoriais explicando a sabedoria e a estupidez do humano onde ela se encontra (B117-118).

Além de explicar estas variações o processo de mudança recíproca seria necessário para a sustentação do mundo e do humano (B84a). O predomínio absoluto de seus respectivos constituintes provocariam um estado de repouso temporário que provocaria o fim do mundo em fogo (ekpyrosis) e a morte do humano na qual a alma se tornaria vapor puro e perderia qualquer individualidade. Neste caso o vapor predominante poderia ser úmido ou seco, de acordo com o estado da alma no momento da morte, sendo que o seco, por estar mais próximo ao constituinte do cosmos, o fogo, seria mais desejável (B118, B24, B136b). Ambos os processos seriam reversíveis pois com o tempo o fogo predominante comporia novas formações dos outros componentes, e uma porção do vapor formaria um novo humano, sem que isso implique numa transmigração de almas, já que a individualidade perdida na morte estaria extinta para sempre (B27, B98).

Segundo este esquema as mudanças físicas no mundo são todas formações de fogo, logo, seus componentes, de alguma forma, se reduzem ao fogo, motivo pelo qual água, fogo, terra e vapor são ditos componentes do constituinte básico, o fogo. Desta maneira o fogo seria tanto a matéria original da qual toda pluralidade se origina, quanto o elemento que serve de substrato a essa pluralidade e, além disso, (pelo menos enquanto fulguração) ainda participaria como um componente desse processo em condição de igualdade com os outros, água, terra e vapor. Fogo seria então a origem, o substrato e um componente do processo. Por causa da analogia entre macro e microcosmo, também o constituinte da alma, o vapor, deve agregar as funções de ser a origem, o substrato e um componente do processo. Além disso, por fazer parte do cosmos, a alma cujo constituinte é o vapor, seria também redutível ao constituinte

básico de todas as coisas, o fogo.

Numa investigação sobre a antropologia a concepção de psychê como alma é a mais relevante. É justamente disso que trata a maior parte dos fragmentos que restaram de Heráclito. Se não há garantia de que esta proporção reflita uma maior atenção dada ao tema por parte do autor, pode-se, pelo menos, verificar que foi esta concepção que despertou maior interesse dos antigos. Uma explicação deste interesse pode ser o fato de essa nova concepção de alma agrupar funções que tradicionalmente eram divididas entre diferentes órgãos como nous, thymos e psychê responsáveis por diversas capacidades humanas como o intelecto, a emoção e a vida. Em Heráclito, a alma seria cognitiva-emotiva encerrando uma variação entre estes estados de acordo a variação do seu estado físico entre o seco e o úmido (B117-118). Ela abarca a capacidade cognitiva porque influencia na sabedoria que interpreta as informações dos sentidos, e é emotiva pois a perda de sabedoria parece estar aliada a uma predominância da emoção que se rende ao uso das informações sensoriais sem interpretação.

Além disso, a alma também seria vital pois sem ela o corpo seria apenas um cadáver que retornaria à mudança macrocósmica como terra, e assim, seria incapaz de ter qualquer percepção (B96). Por outro lado é preciso distinguir, em alguma medida, entre a vitalidade-moribundez da alma e a do homem, pois apesar de este não poder viver sem alma, ele pode trazer uma alma moribunda (B77a). Isto ocorreria quando a umidade anímica predominasse a ponto de impedir seu portador de interpretar suas sensações utilizando suas capacidades cognitivas. A partir desta relação é possível extrair-se dos fragmentos uma abordagem moral dos estados e capacidades da alma.

Uma alma úmida onde predomina a emoção seria condenada como concupiscente pois o humano que a traz encontra-se incapacitado de utilizar a razão para interpretar as informações sensórias. Desta maneira ele agiria como um animal

entregando-se sem medida aos prazeres corpóreos (B4, B9, B13). Uma tal atitude é condenável porque neste estado ele dependeria dos outros para realizar tarefas que lhe são próprias, o que pode culminar até mesmo na sua morte. O exemplo de alguém com alma úmida fornecido nos fragmentos é o do embriagado que não consegue encontrar o caminho de volta para sua própria casa, dependendo assim da boa vontade de uma criança para retornar ao lar (B117). Numa situação mais extrema, externa aos fragmentos, mas cuja referência pode ter ocorrido por tratar-se de uma passagem da Odisseia (11.55), o embriagado chega a morrer por não ter quem o guiasse. Para não se submeter a este estado, o humano deve ser austero o suficiente para manter sua alma seca. Desta forma ele terá plenas condições de utilizar a razão na interpretação de suas sensações, tendo assim, por si só, a experiência correta da realidade.

Como esta experiência depende de uma interpretação correta das informações sensórias, a simples satisfação da condição física da alma estar seca não é suficiente. O humano precisa alfabetizar sua alma para que ela passe a compreender sua própria linguagem (B107). Sendo a capacidade de interpretação da linguagem da alma comum a todos os humanos, verifica-se uma mesma totalidade determinada daquela atribuída ao logos comum, o que indicaria uma relação entre eles. Como no caso da prescrição de se escutar o logos (B50), o funcionamento da alma estaria restrito àqueles que, além de possuí-la, aprenderam a compreendê-la, e assim, não agem como surdos ou analfabetos. Por outro lado, para quem não usa o logos e tem a alma bárbara (analfabeta), não adiantam nem sua secura, nem a recepção de informações sensórias. A relação com o logos permite ainda uma determinação do que deveria ser aprendido pela alma a partir das conclusões do capítulo anterior. Em poucas palavras, seria preciso que o humano aprendesse a utilizar a razão comum para comungar na alma as coisas que percebe como opostas.

Como se viu, a noção de logos varia entre razão, o raciocínio e sua expressão num discurso racional, e ainda a medida racionável. A alma seria o lugar pelo menos da razão e do raciocínio, mas talvez também do discurso racional devido à sua adjetivação como bárbara, que a relaciona com a linguagem. Também a acepção de logos como medida racionável tem ligação com a alma já que é ela que ocorre nos dois fragmentos em que logos e psychê são relacionados (B45, B115). Esta associação é importante para mostrar como, em Heráclito, o conhecimento do mundo parte do auto-conhecimento (B101). O humano está em contato com sua alma e, apesar de não alcançar seus limites já que a alma como vapor participaria também da mudança macrocósmica, ele pode usar o contato que tem com suas medidas intermediárias no microcosmo, uma vez que elas são racionáveis, para vislumbrar os processos macrocósmicos e compreender a ordem do mundo. De modo que a razão na alma extrapola os sentidos ao interpretá-los, mas necessita das suas informações. Isso se mostra claro também na diferenciação do uso dos sentidos pelos animais que, por não possuírem uma alma com capacidade interpretativa, seria pior que o uso dos humanos. Assim a alma parece ser um intermediário material entre a razão e as sensações captadas pelos sentidos. Para entender essa relação falta um exame mais cuidadoso do tratamento dado às sensações por Heráclito.