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II. O SISTEMA DE REFERÊNCIA EM AÇÃO

II.4 A ancoragem

II.4.1 Os lugares fixos das narrativas

Os estudos feitos até aqui revelaram que a jurisprudência tem uma dinâmica: as noções são móveis e, lentamente, se vão deslocando. Os sujeitos enunciantes interferem, ainda que não necessariamente por força de uma ação voluntária, nos resultados dos julgamentos; as instituições são partícipes do movimento e há uma correlação entre as mudanças econômicas,

históricas, sociais e as decisões, as quais não são indiferentes aos litígios, mas contém elas próprias disputas argumentativas, hermenêuticas, de aplicação jurídica.

A abordagem feita nos itens anteriores é suficiente para conduzir a uma resposta positiva para a pergunta: nos conflitos trabalhistas trazidos à cena, dentre as diversas posições de decidir, seria possível visualizar algum entrecruzamento argumentativo? Há, de fato, pontos em relação aos quais as narrativas se identificam.

Constatou-se que as decisões expressam os valores sociais do trabalho como princípio constitucional e fundamento da República.

De modo semelhante, embora não mencionado nos enunciados, é perceptível que a jurisprudência analisada toma esse princípio como base do Direito do Trabalho e instrumento de justiça social, já que os valores sociais do trabalho são evocados para fundamentar a salvaguarda de direitos mínimos e a proteção que garante aos trabalhadores certos direitos, ainda que não expressos em lei.

Na análise do confronto entre os princípios da moralidade e dos valores sociais do trabalho (contrato nulo celebrado com a administração pública), ou dos valores sociais do trabalho versus iniciativa privada (dispensas coletivas, dano moral em terceirização), ainda que não tenham necessariamente prevalecido os valores sociais do trabalho, estes tiveram, ao menos, precedência prima facie, já que exigiram argumentação adicional para afastar, em certa medida, os valores sociais do trabalho. A análise dos casos revelou que a Corte utilizou certo sopesamento para justificar a acomodação de ambos os princípios, com recíprocas concessões, sem que o procedimento fosse propriamente explicitado.

É questão estável, também, embora não necessariamente fundamentada satisfatoriamente, a eficácia direta dos princípios, já que é lugar-comum nas decisões a referência a um sistema protetivo que estende direitos aos trabalhadores e, de outra banda, um sistema jurídico que desautoriza o enriquecimento sem causa do empregador, ainda que o contrato de trabalho celebrado seja nulo. Quando, a partir de 2008, se reconhece a inconstitucionalidade de norma do tipo regra (CLT, art. 453, § 1º) por incompatibilidade com os princípios do valor social do trabalho e da dignidade humana, a normatividade dos princípios é definitivamente assumida.

Mas, se por um lado as subseções de dissídios individuais chegam a esse ponto, a seção de dissídios coletivos rejeita os valores sociais do trabalho como fundamento para anular cláusulas de negociação coletiva.

O argumento de que os acordos coletivos de trabalho devem ser reconhecidos e respeitados, e que os limites à negociação coletiva são definidos pela disponibilidade ou o

despojamento de direitos apontam, nesse caso, para uma precedência da autonomia privada coletiva em relação à proteção.

É interessante destacar que, do mesmo modo como a autonomia coletiva é prestigiada, são de grande relevo, para a SDC, as lesões coletivas, as quais tendem a ser vistas de modo diferenciado em relação às lesões individuais.

É uniforme, ao longo do tempo, o entendimento de que valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa são princípios.

O principal ponto de entrecruzamento do pensamento das subseções e do tribunal pleno a respeito dos valores sociais do trabalho e que, ao longo do espaço-tempo, pareceu inabalável é a inter-relação entre os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Resta saber quais são as implicações disso.

II.4.2 Os silêncios e seus reflexos

Além daquilo que é expresso, as decisões analisadas revelaram se interseccionar também em pontos de pacífica reticência ou mudez.

Se, de um lado, é corriqueiro o reconhecimento dos valores sociais do trabalho como princípio, e se firmou o entendimento de que, nessa qualidade, eles podem impor certos limites às regras, no controle de sua constitucionalidade, de outro lado, o tema é cercado de bastante imprecisão.

Não está claro qual é o âmbito de proteção do princípio dos valores sociais do trabalho. Por outro lado, as ponderações que levaram à prevalência dos valores sociais do trabalho em alguns casos não apresentaram fundamentos capazes de permitir a controlabilidade das decisões, limitando-se a utilizar afirmações genéricas, como a de que é preciso assegurar um mínimo para a sobrevivência do trabalhador.

A omissão da extensão e alcance dos princípios evocados, assim como de seus efeitos, como, por exemplo, os critérios de eleição dos direitos mínimos assegurados aos trabalhadores contratados pela administração pública sem concurso público prévio, parece revelar um ethos autoritário, já que não é necessário esmiuçar os fundamentos, bastando a autoridade institucional do órgão que toma a decisão.

A mesma autoridade institucional parece nortear o silêncio a respeito do princípio, quando evocado pelas partes ou mencionado pelo TRT de origem e omitido pelo TST. Assim,

por exemplo, na hipótese de acolhimento da escala de revezamento de 12 x 36, o tribunal, por sua seção de dissídios coletivos, prestigiou a negociação coletiva, mas silenciou sobre os princípios da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, na perspectiva da saúde e segurança, aspectos frequentemente relacionados à dignidade da pessoa humana em julgados das subseções de dissídios individuais.

O Estado Democrático de Direito necessita, no dizer de Müller – jurista alemão que leciona Direito Constitucional e teoria do Direito – de racionalidade e determinidade do

trabalho jurídico, “no sentido da possibilidade de recapitulação, da transparência, da

honestidade nos métodos” (MÜLLER, 2008, p. 12).

O silêncio a respeito da abrangência da mencionada categoria mínima de direitos, ou a omissão sobre fundamento evocado pela parte é desproporcionada para decisões jurídicas das quais se exigiria racionalidade, pois deixa a mercê dos sujeitos julgadores a definição imponderada do conteúdo das decisões, dos argumentos que devem ou não ser respondidos, do que pode ou não ser considerado mínimo.

Abre-se, desse modo, um campo de possibilidades, de expectativas incertas, sem uma racionalização que seja independente. Restam apenas expressões generalizantes, que não se coadunam com a certeza do direito, que são perfeitamente manipuláveis e relacionáveis a argumentos ideológicos ou a posições subjetivas.

Por esse modo de operar, a Corte, assim como fixou o salário e o FGTS (quando não havia regra determinando o seu pagamento em contratos nulos) como direitos mínimos exigíveis nos contratos nulos, como efeito do reconhecimento dos valores sociais do trabalho e da dignidade humana, poderia, por exemplo, ter excluído o FGTS e incluído as horas extraordinárias, cuja natureza, a rigor, é de salário, na medida em que é contraprestação pelo sobrelabor prestado.

Nesse particular, tão abstrata quanto os valores sociais do trabalho é a dignidade humana, nunca explicitada objetivamente.

Outro silêncio ruidoso é perceptível quando a Corte decide filtrar a constitucionalidade de normas do tipo regra utilizando os valores sociais do trabalho.

Embora se possa vislumbrar a adoção da vertente principiológica que reconhece força normativa própria aos princípios, não há nem mesmo uma justificação que possa permitir alguma controlabilidade da decisão.

Como sucedâneo, tem-se a impressão de que a Justiça do Trabalho é paternalista e de que suas decisões são arbitrárias.

II.4.3 Interface circular entre a narrativa jurisprudencial e a realidade

Já foi demonstrado alhures57 que uma decisão do STF a respeito da inconstitucionalidade do artigo 453, § 1º da CLT repercutiu em julgamentos posteriores a cargo do TST, que mais de uma vez se valeu dos argumentos utilizados naquele acórdão para atribuir precedência aos valores sociais do trabalho.

De modo semelhante, o acórdão do STF apresenta, em seus fundamentos, o voto do Ministro Eros Grau, cujo texto coincide com aquele que ele mesmo havia publicado em texto jurídico, segundo o qual o trabalho tem potencialidades transformadoras e expressam prevalência dos valores do trabalho na conformação da ordem econômica (GRAU, 2003, P. 179).

Esse é um exemplo claro de que os textos percorrem trilhas multidirecionais, dando e recebendo influências.

Mais do que isso, o que se verifica da análise da jurisprudência é que os valores sociais do trabalho, uma vez reconhecidos como princípio, produzem resultados práticos, como o de possibilitar o recebimento do FGTS ao trabalhador contratado mediante contrato nulo. A norma jurídica que exige uma forma específica de contratação do empregado público cede lugar, em alguma medida, aos valores sociais do trabalho.

Em sentido contrário, a ausência de norma que autorizasse a contratação de trabalhador por empresa interposta, para o desenvolvimento de atividade fim não foi suficiente para que esse tipo de contrato fosse considerado regular. Nesse caso, os valores sociais do trabalho desencadearam a invalidade da contratação.

As relações sociais que se estabeleceram na realidade prática, entre patrão e empregado, foram permeadas por essas decisões, que, por seu turno, repercutiram nos resultados das decisões seguintes, uma vez acomodados os sentidos atribuíveis ao princípio em questão, ainda que não necessariamente estivessem claros.

Outra influência de grande relevo é determinada pelas teses jurídicas, nem sempre mencionadas nas decisões, mas partícipes do movimento multidimensional que as constroem.

No próximo capítulo discutiremos, dessa maneira, o tratamento dado ao tema pela doutrina nacional para, em seguida, examinar as nuances do reconhecimento dos valores sociais do trabalho como princípio constitucional.

III – PARA UMA CRÍTICA À CONSTRUÇÃO ARGUMENTATIVA DO TST