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II. O SISTEMA DE REFERÊNCIA EM AÇÃO

III.5 A concretização dos valores sociais do trabalho: crítica à jurisprudência do TST

III. 5.1 A tibieza da concretização numa jurisprudência marcada pelo positivismo

A jurisprudência, se quer permitir o controle e a segurança ínsitos ao Estado Democrático de Direito, está obrigada a fornecer representações dos seus processos decisórios. A análise referente à jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho sobre os valores sociais do trabalho deveria, desse modo, possibilitar a conferência dos métodos de trabalho utilizados e até mesmo a compreensão do sentido constitucional concretizante desse princípio. As oscilações da jurisprudência, aliadas à pouco expressiva exposição dos fundamentos revela que o TST, muitas vezes, se ateve à utilização de elementos de interpretação sem considerar outros aspectos para além dos textos das normas.

A exemplo do que constatou Müller, ao examinar a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da República Federal da Alemanha, o TST “professa na jurisprudência constantemente o credo da teoria tradicional da interpretação, segundo a qual um caso jurídico prático deve ser solucionado de modo que os fatos da vida decidendos sejam ‘subsumidos’ à norma” (MÜLLER, 2005, p. 5-6). Nessa vertente, deve-se “identificar” o conteúdo da norma para que possa ser “aplicada”, mediante o silogismo.

No interesse da segurança jurídica, teria sido bom que o tribunal tivesse feito e fizesse sempre indicações sobre os métodos ou elementos hermenêuticos que o levaram a seguir caminhos diferentes em casos semelhantes. Em vez disso, o que se vê é uma variação de interpretações que leva em conta precipuamente o texto normativo e depende mais da composição do órgão julgador (por exemplo, SDI ou SDC) do que propriamente das técnicas utilizadas para interpretação e aplicação da lei.

Apesar de buscarmos regularidades discursivas, conforme examinado na primeira parte deste trabalho, no aspecto hermenêutico as regularidades deixam a desejar, já que não se pode, a partir da análise das decisões da Corte, afirmar que há elementos objetivos e transparentes de

validação da norma. No aspecto exegético, paira grande tendência para uma prática menos objetiva59 do que subjetiva.

Tem-se, assim, a realização do Direito apresentada como problema cognitivo, o processo de decisão, como procedimento de decisão aparentemente lógica, mas, na verdade, com fortes traços de subjetividade.

Quando a jurisprudência, ainda que de forma não expressa, trata direitos como valores, deixa de concretizar o direito, negando o caráter de norma aos direitos previstos na Constituição.

Tome-se um exemplo: a Constituição da República assegura “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho” (art. 7º, XIII). A lei garante que o número de horas extras não pode exceder de duas diárias (CLT, art. 59).

Ainda assim, em processos nos quais se discutia a validade de negociação coletiva, que fixava jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas de folga60, o TST, sem considerar os valores sociais do trabalho, evocados pelo MPT, considerou válidos os acordos coletivos, ao argumento de que os acordos coletivos de trabalho devem ser reconhecidos e respeitados e que os limites à negociação coletiva são definidos pela disponibilidade ou pelo despojamento de direitos.

Ao mesmo tempo em que não considerou os valores sociais do trabalho como norma (já que sobre eles não se pronunciou), reconheceu como norma aquilo que era, na realidade, apenas o enunciado ou programa da norma (reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho).

Nessa perspectiva, a Constituição acabou sendo tratada como um mero catálogo formal, sem nexo com a sociedade e, por conseguinte, sem materialização concreta, como se a efetividade não fosse elemento necessário do ordenamento jurídico.

Isso revela, no fundo, uma posição política de manutenção do status quo, contrário à efetivação da Constituição.

O problema está em afastar o direito da realidade e considerar que naquele está concentrada toda a positividade:

59 “O postulado da objetividade jurídica não pode ser formulado no sentido de um conceito ideal ‘absoluto’; pode, no entanto, ser perfeitamente formulado como postulado de uma racionalidade verificável da aplicação do direito, suscetível de discussão, e como postulado da sua adequação material no sentido de caracterização material de prescrições jurídicas e da inclusão dos elementos materiais de normatividade na concretização” (MÜLLER, 2005, p. 52).

60 Na época não havia qualquer previsão legal para esse tipo de contratação, cuja possibilidade somente foi incluída pela Lei n. 13.467/2017, a qual permite a fixação de jornadas de 12 x 36, por meio de negociação coletiva.

[...] O direito é compreendido [no positivismo] equivocadamente como um ser que repousa em si, que só deve ser relacionado ex post facto com as relações da realidade histórica. A norma jurídica é compreendida equivocadamente como ordem, como juízo hipotético, como premissa maior formalizada segundo os princípios da lógica formal, como vontade materialmente vazia. Direito e realidade, norma e recorte normatizado da realidade estão justapostos ‘em si’ sem se relacionar, são compostos reciprocamente com o rigorismo da separação neokantiana de ‘ser’ e ‘dever ser’, não necessitam um do outro e só se encontram no caminho de uma subsunção da hipótese legal a uma premissa maior normativa (MÜLLER, 2005, p. 25-26).

A dificuldade é ainda maior quando se pretende a “aplicação” de normas jurídicas de âmbito mais aberto e mais complexo, como é o caso do princípio dos valores sociais do trabalho, os quais não comportam uma representação que faça subsumir os fatos ao seu conteúdo, por meio de uma inferência silogística.

Nesse aspecto, os métodos auxiliares, ou, no dizer de Müller, “os pontos de vista auxiliares em questão de método” ou “cânones savignyanos” (MÜLLER, 2005) são incompletos e inconclusos, servem não para aplicação, mas para mediação das normas, considerados diversos outros aspectos de concretização em meio a um processo complexo.

O ponto crucial está em compreender que a norma jurídica não é previamente dada, de modo que a interpretação não se separa do desenvolvimento do Direito (retoma-se aqui a ideia de referências e espaço-tempo explicitada no capítulo I), ao contrário, a concretização é criativa e móvel.