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II. O SISTEMA DE REFERÊNCIA EM AÇÃO

II.3 Os movimentos da jurisprudência em sua relação com o mundo fático

Embora o TST seja, do ponto de vista da organização judiciária, o órgão responsável por dar a última palavra na seara trabalhista, excetuada apenas a competência extraordinária do Supremo Tribunal Federal, é certo que seu discurso não é autônomo, no sentido de independer das interações sociais. Pelo contrário, não há como desvincular o discurso do TST dos acontecimentos sociais, políticos, históricos e culturais.

Se é fato que ao longo de todo o período estudado, os valores sociais do trabalho vão aparecer como fundamento da República e como princípio constitucional, certo é também que isso não significa que haja clareza sobre o seu conteúdo.

Isso porque, embora fique evidente, no discurso, sua aceitação como um mandamento jurídico, seus efeitos podem ser modalizados ou manipulados em diversos sentidos, já que eles tanto podem atuar como justificação moral quanto como fundamento normativo para o reconhecimento de direitos trabalhistas.

Apesar do grande número de processos examinados, são basicamente oito os assuntos nos quais o princípio estudado veio à tona: efeitos do contrato nulo por ausência de formalidade legal, celebrado entre o trabalhador e um ente da administração pública; efeitos da aposentadoria espontânea sobre o contrato de trabalho; dispensa de empregado admitido mediante concurso público por sociedade de economia mista ou empresa pública; pedido de demissão do ébrio habitual; dispensa coletiva; compensação de jornada por meio de negociação coletiva; redução negociada da indenização devida sobre o FGTS e terceirização de atividades (incluído o dano moral coletivo por terceirização de atividade fim).

O fato de o TST haver firmado, ao longo dos anos, o reconhecimento dos valores sociais do trabalho como princípio jurídico constitucional tem implicações, já que o princípio tem um papel específico no âmbito jurídico: além de orientar o comportamento e assumir a natureza de norma, irradia efeitos para outras normas, condicionando seu sentido e validade.

Segundo os casos analisados, os valores sociais do trabalho, enquanto mandamento jurídico, impõem interpretações que salvaguardem direitos mínimos, os quais são afirmados pela própria Corte: o TST assume a posição de hierarquia que detém como tribunal de jurisdição especial para decidir que o salário, em sentido estrito, e o FGTS são suficientes, em contratos nulos, para assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho. Quando, em 2008, é sugerido que a análise da constitucionalidade de normas do tipo regra seja submetida ao crivo do respeito aos valores sociais do trabalho, não é oferecida nenhuma especificação dos critérios utilizados para tanto, ficando em aberto se a tão-só autoridade hierárquica seria a chave para a validação de uma norma do tipo regra quando confrontada com o princípio.

O TST deixa subentendido, ainda, que o exame associado dos princípios da dignidade da pessoa humana e valorização do trabalho com os princípios da legalidade e da moralidade resulta, no caso de contrato de emprego nulo (com a administração pública sem prévio concurso público), na não-indenização pelo trabalho contratado.

O discurso assume, desse modo, uma ambiguidade estrutural que permite a variação de sentidos dos princípios de acordo com o caso analisado.

Em março de 2008, outra decisão, apoiada em acórdão do Supremo Tribunal Federal, assevera que os valores sociais do trabalho, enquanto fundamento da República impedem a dedução de que a concessão da aposentadoria voluntária ao trabalhador deva extinguir, instantânea e automaticamente, a relação empregatícia.

Os valores sociais do trabalho transitam, desse modo, por um caminho em que, primeiro, impõem a conclusão de que direitos mínimos têm de ser concedidos para garantir ao trabalhador

o equivalente à força de trabalho empregada em contrato nulo; depois, considerando o exame associado dos princípios da dignidade da pessoa humana e valorização do trabalho com os princípios da legalidade e da moralidade, no caso de contrato de emprego nulo (com a administração pública sem prévio concurso público), não é devida indenização pelo trabalho contratado; em outra vertente, os valores sociais do trabalho impedem a conclusão de que a aposentadoria voluntária extinga automaticamente a relação de emprego quando há continuidade da prestação de serviços; impedem, ainda, que se reduza a indenização incidente sobre o FGTS em caso de dispensa sem justa causa, ainda que a redução seja negociada em acordo ou convenção coletiva de trabalho, e, por fim, impedem a terceirização indiscriminada e fazem concluir que a terceirização em atividade fim, salvo na hipótese de trabalho temporário, tem conteúdo aviltante à pessoa humana e ao valor social do trabalho.

A necessidade de reconhecer efeitos concretos para o princípio da moralidade na administração pública na segunda década pós-democratização era um balizador importante para impedir que contratos nulos com a administração pública originassem direitos que excedessem ao estritamente necessário para remunerar a força do trabalho já despendida e impossível de ser devolvida.

É como solução de uma suposta colisão entre os princípios da moralidade e dos valores sociais do trabalho que são estabelecidos os parâmetros de fixação das verbas devidas em contratos nulos.

A partir do fim da primeira década dos anos 2000, especialmente depois da crise de 2008, que atingiu fortemente os empregos, o TST se defronta com as dispensas em massa e se vê levado a avaliar os princípios da liberdade econômica em confronto com princípios de valorização do trabalho e outros que dão relevância à justiça social e à existência digna.

A jurisprudência já vinha se sedimentando pela rejeição dos valores sociais do trabalho como fundamento para anular cláusulas de negociação coletiva, por considerar que os acordos coletivos de trabalho devem ser reconhecidos e respeitados, e que os limites à negociação coletiva são definidos (apenas) pela disponibilidade ou o despojamento de direitos.

Na mesma trilha, a seção de dissídios coletivos do Tribunal Superior do Trabalho, no período histórico estudado, demarcou uma diferença estrutural em lesões coletivas e passou a considerar que as questões que envolvem lesões coletivas devem receber tratamento diferenciado em relação às lesões individuais.

Com efeito, as dispensas em massa afetavam comunidades inteiras, já que deixavam grande número de famílias desamparadas.

Conferir validade a essas dispensas a propósito de reconhecer o direito potestativo do empregador, parecia ser inconciliável com os princípios de proteção trabalhista vinculados a diversos preceitos constitucionais.

Adotando uma posição que considera as dispensas coletivas como uma situação extraordinária, o TST conseguiu, no mundo fático, frear dispensas em massa, ao mesmo tempo em que manteve firme o reconhecimento das negociações coletivas.

Por outro lado, ao exigir negociação prévia a esse tipo de dispensa, prestigiou as negociações coletivas, deixando incólume a posição já firmada de prevalência ordinária dos acordos e convenções coletivas.

De todo modo, assim como não delimitou os valores sociais do trabalho, não estabeleceu que tipo de conduta poderia ser considerada contrária ou em desalinho com esses valores.

Deixou bem assentado, entretanto, que há necessidade da irrestrita vinculação do

exercício da atividade econômica aos demais princípios enumerados na Constituição; que a

ordem econômica tem de necessariamente estar – fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, e tem de necessariamente ter por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social; e que qualquer prática econômica incompatível com a valorização do trabalho humano e com a livre iniciativa, ou que conflite com a existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social, será inconstitucional; que são inadmissíveis quaisquer condutas adversas ao disposto no artigo 170 da Constituição.

Embora não necessariamente seja intencional a ambiguidade do discurso, pois é própria da linguagem a multiplicidade de sentidos, é fato perceptível que os valores sociais do trabalho, uma vez que seu sentido é genericamente atribuído a cada julgamento, podem ser usados para reconhecer e ampliar direitos, como podem também ser entendidos como balizas de um limite mínimo que não deve ser ultrapassado.

Esse caráter multiforme do princípio em estudo permite que o enunciador vá moldando seu alcance, de modo mais ou menos extenso ou abrangente: quando se atribui pelo menos um sentido nuclear para o princípio, esse sentido produz certos efeitos práticos (por exemplo, atribuir um mínimo de direitos em contrato nulo, ainda que não previstos em lei, como o FGTS antes da edição da MP n. 2.164-41/2001). Aumentando o leque de sentidos atribuídos, é possível controlar a constitucionalidade de uma regra (por exemplo, a inconstitucionalidade do artigo 453, da CLT, que considerava rompido automaticamente o contrato de trabalho pelo simples fato da aposentadoria espontânea). Quanto mais exato for o sentido atribuído, menor será a possibilidade de ampliar sua abrangência, sendo necessário um uso maior de argumentos, o que pode tornar a alterar por outras vias, os sentidos atribuídos ao princípio.

Conformar o sentido do princípio a cada caso não é problemático, do ponto de vista da racionalidade, numa sociedade plural e democrática, em que não há como estabelecer sentidos absolutos; problemático é não justificar as escolhas de modo racional e equânime:

Numa sociedade linguisticamente estruturada, plural e sem a possibilidade de fundamentos absolutos, a única certeza pela qual podemos lutar é a de que os melhores argumentos, em uma situação de participação em simétrica paridade entre as partes que serão afetadas pelo provimento jurisdicional, sejam levados corretamente em consideração, ao longo do processo jurisdicional e no momento da decisão, por um juiz que demonstre a sua imparcialidade (CATTONI DE OLIVEIRA, 2013, p. 235).

De todo modo, do ponto de vista das abordagens dadas pelo TST, seria possível atribuir algum sentido objetivo para os valores sociais do trabalho?

À medida que o TST incorpora em seu discurso os valores sociais do trabalho como princípio constitucional com eficácia para produzir direitos, interditar comportamentos e solucionar lacunas normativas, assume também o papel de protagonista na análise e determinação de seu conteúdo.

O estudo das decisões não mostra, no entanto, uma demarcação abrangente e detalhada dos valores sociais do trabalho, mas, ao contrário, revela a sua plasticidade.

Ainda assim, com base no que foi exposto nos enunciados examinados, parece possível delinear alguns elementos que os caracterizam. Antes de realizar essa tarefa, contudo, é necessário verificar os lugares fixos e os silêncios do discurso, exercício que nos propomos a realizar no capítulo seguinte.