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1 MASCULINO E FEMININO: ALGUMAS LAPIDAÇÕES

1.1 Memórias, sonhos, reflexões: o mundo de Jung

1.1.2 Os Arquétipos

1.1.2.1 Os arquétipos da Anima e do Animus

1.1.2.1.1 A Anima

―Viajar nessa procura toda de me lapidar neste momento agora de meu recriar de me gratificar‖

Anima – José Renato e Milton Nascimento

A anima é definida por Jung como sendo o arquétipo do feminino no homem, ou seja, a figura interior de mulher nele contida e que, sendo feminina, compensa a consciência masculina.30 Compõem esse arquétipo as experiências fundamentais que o homem teve com a mulher através dos milênios, num aglomerado hereditário inconsciente de origem muito remota. São conhecimentos de linha ancestral com o ente feminino, fornecidos durante os longínquos e nebulosos tempos.

Mas que fator projetante és este? O Oriente dá-lhe o nome de ―tecedeira‖ ou maia, isto é, a dançarina geradora de ilusões. Se não soubéssemos disto há bastante tempo mediante os sonhos, esta interpretação nos colocaria na pista certa: aquilo que encobre, que enlaça e absorve, aponta inelutavelmente para a mãe, isto é para a relação do filho com a mãe real, com a imagem desta, e com a mulher que deve tornar-se mãe para ele. Seu eros é passivo, como o é de uma criança: ele espera ser captado, sugado, velado e tragado.31

A anima se apresenta personificada, nos sonhos, nos contos de fada, no folclore de todos os povos, nos mitos, e também nas produções artísticas. As formas, ―belas ou horríveis, de que se reveste são numerosíssimas: sereia, mãe-d'água, feiticeira, fada,

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Jung teria revelado que sua formulação a respeito do arquétipo da anima seria procedente de sua experiência médica junto às muitas mulheres que o procuravam para consultas, sendo que o número de pacientes mulheres que o requisitavam era muito maior que o de homens. Tornou-se notória e ―lendária‖ essa aproximação de Jung com suas pacientes que, segundo ele, vieram a lhe despertar uma sensibilidade que até então ele não vislumbrara, fato esse que fez com visse suas pacientes de maneira extremamente receptiva e sensível. Maggy Anthony assim nos elucida: ―Carl Jung foi um homem sedutor. Sua própria esposa, numa carta escrita a Freud, admitiu: ‗Todas as mulheres são naturalmente apaixonadas por ele‘. Para Jung, as mulheres realizavam um trabalho importante e criativo junto a ele. Não eram apenas ajuda, e sim ampliação do conhecimento e compreensão da psicologia. Jung disse: ‗O que se pode fazer? Afinal a psicologia é a ciência da alma e não é culpa minha que a alma seja uma mulher.‘ Menciona-se que ele era um perito em ajudar as pacientes mulheres a se encontrarem a si mesmas e às suas ‗personalidades maiores‘. (...) Uma de suas mulheres teria dito: ‗Com Jung você não precisava ser alguém famoso, especial ou incomum. Ele a tratava como se você fosse especial‘. Numa época em que se franzia o cenho diante de mulheres ambiciosas e elas se sentiam de algum modo fora do normal, Jung percebia que precisavam de saídas intelectuais.‖ 46 ANTHONY, Maggy. As mulheres na vida de Jung. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 35, 46.

31 JUNG, Carl Gustav. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. v. IX/2. Petrópolis: Vozes, 1988.

ninfa, animal, súcubo, deusa, mulher. 0 princípio feminino no homem poderá desenvolver-se, diferenciar-se, transpor estágios evolutivos‖.32

De acordo com Jung, a anima apresenta quatro estágios no seu desenvolvimento. A antiguidade, conforme o médico, já mencionava a escola erótica das quatro mulheres: Chawwa (Eva), Helena (de Tróia), Maria, Sofia. Na primeira figura encontra-se uma personificação puramente instintiva; em Helena, percebe-se a figura da anima através do romântico, do estético e dos elementos sexuais; em Maria, está a personificação de uma relação celestial (religiosa e cristã) em que o amor e a espiritualidade são destacados; e em Sofia depara-se com o Eterno-Feminino marcado pela sabedoria, aqui já numa espiritualização de Eros. Esses quatro estágios correspondem ao Eros heterossexual, ou seja, à própria imagem da anima, e, que, consequentemente, referem- se aos quatro estágios culturais do Eros. Jung nos esclarece:

O primeiro grau de Chawwa, Eva, Terra é apenas biológico, em que a mulher-mãe não passa daquilo que pode ser fecundado. O segundo grau ainda diz respeito a um Eros predominantemente sexual, mas em nível estético e romântico, em que a mulher já possui certos valores individuais. O terceiro grau eleva o Eros ao respeito máximo e à devoção religiosa, espiritualizando-o. Contrariamente a Chawwa, trata-se da maternidade espiritual. O quarto grau explicita algo que contraria as expectativas e ainda supera esse terceiro grau dificílimo de ser ultrapassado: é a ―sapientia‖.33

Além do caráter inato e primordial da anima, compõem esse arquétipo as experiências concretas do homem com a mulher. Nas primeiras manifestações individuais, é a figura da mãe que determina o caráter da anima de um homem. Se a intervenção materna teve uma influência negativa, sua anima pode manifestar-se muitas vezes de maneira irritada, incerta, depressiva, susceptível e insegura. Nesse sentido, os aspectos negativos da anima masculina estão relacionados com a insegurança, com as

32 SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p. 83-84.

incertezas, as variações de humor, as irritações e emoções incontroláveis. É, portanto, a mãe o primeiro receptáculo da anima.

Após a ênfase na projeção materna, a imagem é transferida, por exemplo, para a estrela de cinema, ou a cantora de rádio, mas, sobretudo, para aquela mulher que o homem venha a se relacionar amorosamente pela vida afora. De maneira normal, é através da projeção que o homem chega a aproximar-se de sua anima. É através dela que o homem forma suas imagens sobre a mulher e que o auxilia a escolher a parceira mais adequada para se relacionar. É a presença da anima que faz com que um homem, ao avistar pela primeira vez uma pessoa, venha a se apaixonar subitamente, tendo a sensação de conhecê-la já há tempos. A partir disso, e, naturalmente, infinitos equívocos farão parte das experiências dos homens com as mulheres, pois a maioria deles não se apercebe de que projeta a sua imagem interior de mulher em alguém muito diferente de si mesmo. Explica-se com isso, a maior parte dos conflitos relacionais:

A retirada da imagem da anima de seu primeiro receptáculo constitui uma etapa muito importante na evolução psíquica do homem. Se não se realiza, a

anima é transposta, sob a forma da imagem da mãe, para a namorada, a

esposa ou a amante. 0 homem esperará que: a mulher amada assuma o papel protetor de mãe, o que o leva a modos de comportamento e à exigências pueris gravemente perturbadoras das relações entre os dois.34

Mas a anima não deve ser projetada somente num fator externo, ou seja, numa mulher real, até mesmo porque, não se pode controlar racionalmente uma projeção, pois ela não é feita pelo homem, ela simplesmente acontece. É também, - e talvez principalmente, - através da introspecção psicológica que o homem pode perceber que carrega alguma coisa dentro de si mesmo, uma imagem interior de um ser feminino verdadeiro ideal e que lhe pode servir como guia da alma. Quando ―a anima procura unir e juntar,‖35 ela personifica a natureza feminina na personalidade masculina. E é

34 SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p. 83.

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exatamente quando não é projetada sobre a mulher, mas vive em seu próprio lugar na alma, que a anima é para o homem a intermediária dos conteúdos do inconsciente.

O mais importante disso tudo, porém, é que a anima precisa ser percebida como uma realidade em si mesma. Se ela gosta de vir do exterior, deve ser aceita dessa forma. Se porventura, ela gosta de vir de dentro, é aí que deve ser aceita:

o erro está em fazer qualquer diferença artificial e desajeitada entre esses dois domínios: a anima é um fenômeno único, o fenômeno da vida. Ela representa o fluxo da vida na psique masculina e ele deve seguir os seus caminhos tortuosos que se movem, de maneira bem específica, entre as duas margens, a do ―interior‖ e a do ―exterior‖.36

O problema realmente resulta, portanto, da incompreensão das manifestações da anima, ou o estabelecimento de uma anima negativa, que resultará em dissabores na relação com o gênero feminino. A intensidade do complexo da anima, como compensação de carga emocional, será determinada pelo grau de repressão dos sentimentos do homem, que será medida pela sua própria subjetividade e intimidade, geralmente rejeitadas por ele. E isso ―é ainda mais verdadeiro na nossa cultura extrovertida e orientada para o masculino, com sua repressão coletiva do sentimento.‖37

O temor que o homem tem de que suas necessidades afetivas lhe tragam inconvenientes faz com que ele mais e mais se esquive delas. Isso diz respeito ao amor, o dom de si mesmo, a fidelidade, a confiança, a dependência afetiva, enfim, tudo aquilo que está subordinado às exigências de sua alma. Dominar a si mesmo é um ideal tipicamente masculino a ser alcançado, em troca de uma repressão e desconhecimento da sensibilidade, pois sentir ainda é tido como uma virtude eminentemente feminina. Devido a essas prerrogativas sociais, o homem, para atingir seu ideal de virilidade, reprime todos os traços femininos que possui, acumulando em seu inconsciente essa feminilidade que, ao eclodir, acaba atraiçoando nele a coexistência de um ser feminino.

36 FRANZ, Marie-Louise von. O feminino nos contos de fadas. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 32. 37 FRANZ, Marie-Louise von. A tipologia de Jung. São Paulo: Cultrix, 2002. p. 175.

Se esse lado for reprimido em favor de sua masculinidade, a anima então se manifesta em caprichos, humores irracionais devido a seu desenvolvimento emocional imaturo.

É até compreensível que um homem oponha resistência a sua anima, pois ela representa o inconsciente com todos os seus conteúdos excluídos da vida consciente. Essas tendências recalcadas

não são necessariamente antissociais, mas também não são aquilo que se chamaria de convencional e ajustado às normas sociais. Igualmente duvidosa é a razão pela qual são reprimidas. Algumas pessoas o fazem por mera covardia, outras por uma moral convencional, e outras para resguardar sua reputação.38

Passar para o território ―inimigo‖ dominado pela anima é, portanto, realmente complexo e difícil. Mas ao se reconhecer ―a dançarina geradora de ilusões‖ como um poder interior, ela poderá servir para fortalecer a masculinidade de um homem:

Esta função positiva ocorre quando o homem leva a sério os sentimentos, os humores, as expectativas e as fantasias enviadas por sua anima e quando ele os fixa de alguma forma, por exemplo, na literatura, pintura, escultura, música ou dança. Quando trabalha calma e demoradamente todas estas sugestões, outros materiais ainda mais profundos surgem do seu inconsciente, entrando em conexão com o material primitivo.39

Atingido esse objetivo, a recompensa será grande a valerá muito a pena a empreitada. Marie-Louise Von Fraz, que é uma das principais, senão a principal discípula e estudiosa da obra de Jung, considera a anima, quando em estágio evoluído,

a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem – os humores e sentimentos instáveis, intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por fim, e por isso nem menos importante, o relacionamento com o inconsciente.40

O homem que evoca em si e integra sua dimensão de anima irá emergir mais humano, relacional e liberto. Junto ao seu vigor será incorporada a ternura, lado a lado

38 JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. Obras Completas. v. XI/1. Petrópolis: Vozes, 1999.p. 79-80. 39 FRANZ, Marie-Louise von. O processo de individuação. Carl Gustav Jung e Marie Louise von

Franz ...[et al.] O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. p. 186.

com a razão estará a emoção, juntamente com o trabalho será criado um espaço para a gratuidade, e acompanhando o logos estará o phatos e o eros. Será, enfim um homem livre das malhas que desumanizou a si mesmo, a mulher e a natureza.

Não é fácil compreender e nem aceitar a companhia dessa ―tecedeira‖ que vez e outra está a manobrar no interior da psique do homem. Jung afirma que estar numa situação que não tem saída, ou estar num conflito em que aparentemente não há solução é o começo clássico do processo de individuação. Um provável caminho a uma possível solução é procurar ser leais à realidade da psique, para que possa compreender e decifrar as intenções de sua anima. Procedendo dessa forma, muito mais fácil será também para que a mulher, através do outro arquétipo, o animus, possa também individuar-se e melhor relacionar-se com ela e com o homem.