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1 MASCULINO E FEMININO: ALGUMAS LAPIDAÇÕES

1.1 Memórias, sonhos, reflexões: o mundo de Jung

1.1.2 Os Arquétipos

1.1.2.1 Os arquétipos da Anima e do Animus

1.1.2.1.3 A Anima e o Animus e sua complexidade

A complexidade em torno da assimilação anima / animus, como já mencionado, nunca foi negada por Jung. De fato, ele não foi muito claro em relação aos papéis correspondentes ao ―masculino‖ e ao ―feminino‖, pois bem percebia a complexidade que girava em torno dessa temática. Para os pós-junguianos, em virtude de todas as dificuldades de se mover entre esses dois arquétipos, também não foi (e não é) diferente. Com o passar do tempo, críticas e ou reformulações em torno dos conceitos acerca da anima e do animus foram (e estão) sendo feitas. Vera Paiva, por exemplo, nos diz:

Entendo a anima e o animus menos como o feminino e o masculino e mais como um arquétipo cuja função preside a individuação, que leva as pessoas a procurarem a contraparte de sua consciência, buscando desenvolver o que até então não desenvolveram e a sua identidade profunda.53

A crítica de Paiva – e de tantas outras mulheres psicanalistas -, reside no fato de Jung ter atribuído ―qualidades‖ femininas para a anima e ―qualidades‖ masculinas para o animus. Mas, ao mesmo tempo, ela compreende essa postura de Jung, devido às condições ainda muito rígidas de tipificação sexual na época do estudioso suíço. Naquele contexto, tão marcadamente ocidental, os aspectos da persona estavam muito ligados aos papéis sexuais definidos socialmente e cristalizados num padrão oficial de masculino (do homem) e feminino (da mulher). Para a psicóloga, o crescimento pessoal se dará se as forças arquetípicas anima/animus forem conscientizadas e não apenas

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vividas como projeções apaixonantes e descontroladas. Para Paiva, tanto Jung, quanto sua mulher, Emma Jung, ao escreverem sobre o assunto, provavelmente fixaram os conteúdos da anima e do animus em qualidades já fixadas como sendo femininas e masculinas respectivamente.

Clarissa Pinkola Estés, outra pós-junguiana, segue uma linha semelhante de pensamento. Em sua obra Mulheres que correm com os lobos: mitos e arquétipos da mulher selvagem ela interpreta lendas e histórias antigas, identificando o arquétipo da Mulher Selvagem, ou aquilo que seria a essência da alma feminina, sua psique instintiva mais profunda. Nesse livro, ela assim se refere ao animus:

Muitas psicanalistas, entre as quais me incluo, através de suas próprias observações, chegaram a uma conclusão contrária ao ponto de vista clássico e afirmam, em vez disso, que a fonte de revitalização da mulher não é masculina e alheia a ela, mas feminina e bem conhecida. Seja como for, creio que o conceito masculino do animus tenha ampla aplicação. (...) O

animus pode ser compreendido melhor como uma força que ajuda as

mulheres a agir em sua própria defesa do mundo objetivo. O animus ajuda a mulher a expor seus pensamentos e sentimentos íntimos e específicos de um modo concreto – em termos emocionais, sexuais, financeiros, criativos e outros – em vez de expô-los numa imagem que se modele de acordo com um desenvolvimento masculino padronizado numa determinada cultura.54

A psiquiatra Jean Shinoda Bolen elaborou em seu livro As deusas e a mulher: nova psicologia das mulheres, uma teoria baseada nos padrões arquetípicos de Jung. Nela é estabelecida uma analogia entre mitologia e psicologia. Bolen busca nas antigas deusas gregas, relacionar aos padrões de comportamentos (arquétipos) constantes na psique da mulher os quais moldam a sua existência. A analista considera como sendo sete as deusas inspiradoras, e que podem ser divididas em três grupos: deusas virgens, vulneráveis e alquímicas. Como parâmetros, ela usou os modos de consciência, os papéis preferidos, os fatores motivadores, as atitudes em relação aos outros e a necessidade de afetos como características distintas de cada grupo. As deusas virgens

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ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 388.

são representadas por Ártemis, Atenas e Héstia. Essas deusas representam as qualidades de independência e de autossuficiência das mulheres. Afetos emocionais não as desviam daquilo que consideram importante. Como arquétipos, representam meta direcionada e pensamento lógico. As deusas vulneráveis, representadas por Hera, Deméter e Perséfone representam os papéis tradicionais de esposa, mãe e filha. São deusas- arquetípicas orientadas para o relacionamento, expressando necessidades que as mulheres têm de estabelecer vínculos. Além disso, são sintonizadas com os outros e a eles se mostrando muito sensíveis. A categoria de deusa alquímica é para Afrodite, a deusa do amor e da beleza. Está mais relacionada à atração erótica e à sexualidade. Em relação à questão do animus, Bolen considera que quando as deusas vulneráveis são os arquétipos dominantes nas mulheres, elas teriam a necessidade de desenvolvê-lo, ao passo que quando as deusas virgens são predominantes, a ―virilidade‖ é inerente a essas mulheres, mas não estaria necessariamente ligada à ação do animus.

Como se percebe, Bolen vai além da psicologia feminina que Jung introduziu, a qual insere a presença ―masculina‖ do arquétipo do animus na mulher, e que daria a ela mais ―virilidade‖. Para algumas mulheres, a psiquiatra considera adequada essa hipótese. Para outras, porém, ela afirma que força e determinação podem ser

aspectos bem desenvolvidos de sua personalidade, a mulher pode ser naturalmente positiva, raciocinar bem, saber o que almeja alcançar ou competir confortavelmente. Essas qualidades, longe de serem estranhas, são sentidas como expressões inerentes de quem ela é enquanto mulher e não se tem a impressão de serem qualidades de um animus masculino que age ‗por ela‘.55

June Singer, também pós-junguiana, até que concorda que existiam as diferenças de papéis - masculino e feminino -, e que eram bem acentuadas na época de Jung. Mas ela destaca que hoje as diferenças são muito mais díspares do que naquele período em que vivia o psiquiatra. Para ela, essas diferenças estão dinâmicas, fluidas e em contínua

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BOLEN, Jean Shinoda. As deusas e a mulher: nova psicologia das mulheres. São Paulo: Paulus, 1990. p. 75.

mudança. Além disso, vão se realinhando conforme o organismo humano cresce, se desenvolve e se modifica, tudo de acordo com determinada cultura e época.

O que me incomodou ainda mais, hoje eu percebo, foi a visão que Jung tinha do Feminino. (...) Mas pensando bem, de que outra perspectiva Jung poderia escrever? Todos os ensaios e palestras que constituem as suas Obras

Completas foram escritos entre 1902 e 1956. Jung morreu em 1961. Foi um

homem numa sociedade centrada nos homens (...) O que Jung tinha a dizer sobre o sexo feminino nascia exclusivamente de um ponto de vista masculino. (...) Mas, assim como tantos outros em seu tempo, ele considerava muitos aspectos do inconsciente em homens e mulheres como essencialmente diferentes.56

Nesse sentido, as críticas maiores sobre Jung diziam respeito a sua concepção sobre o feminino. As contestações, partidas de alguns teóricos da psicanálise e, nos últimos anos, das feministas, retratavam a não conformidade por verem a psicologia da mulher ser inferida a partir de analogias em relação à dos homens, ou seja, viam no médico suíço um certo conservadorismo. Com o advento do feminismo moderno, e dos estudos de gênero, teoria e política passaram por transformações nas duas últimas décadas. Essas teorias, tão em voga nas últimas décadas, tentaram, e ainda tentam à sua maneira responder intrigantes e seculares temas que dizem respeito à relação homem- mulher. Foi o que Jung fez na sua época, quando buscou através da psicologia analítica, sanar algumas lacunas e angústias encontradas naquele meio e contexto. Algumas respostas foram dadas a contento, outras não. O mesmo ocorre com as teorias feministas, que talvez ainda não conseguiram os esclarecimentos suficientes para parte de suas indagações. Novas perguntas, a partir de respostas dadas, talvez continuem por muito tempo à espera de conclusões.

0 ―masculino‖ e ―feminino‖ são dos conceitos mais confusos em ciência. Mesmo quando definidos através da atividade ou passividade, através de postulações biológicas ou através de conceitos sociológicos, mostram delimitações muitas vezes pouco precisas.57

56 SINGER, June. A mulher moderna em busca da alma: guia junguiano do mundo visível e do mundo

invisível. São Paulo: Paulus, 2002. p. 13.

57 ULSON, Glauco. Ser homem nos dias atuais. In: BOECHAT, Walter (Org.). O masculino em questão.

Essas (in)definições acerca do que pode ser ―feminino‖ ou ―masculino‖, e que corresponderiam respectivamente aos conteúdos de anima e animus podem, portanto, provocar uma justa discussão entre os junguianos, os pós-junguianos, as feministas e também entre outros ramos do saber. A questão fundamental é (e sempre foi) saber se os atributos da psique do homem e da mulher são resultados de comportamentos culturalmente condicionados ou se estão relacionados a causas hereditárias.

Alguns problemas que se levantam é saber até que ponto tais atributos são puramente adquiridos, isto é, condicionados por fatores ambientais e culturais; ou se a base arquetípica lhes garante um estatuto hereditário. E nesse caso, admitindo-se que estejam adequadamente distribuídos entre os dois sexos, a questão é: podem eles ser derivados exclusivamente das diferenças biológicas entre os sexos?58

Nesse sentido, muitos dos teóricos pós-junguianos, passaram a re-avaliar esse assunto, tentando atualizar algumas considerações de Jung sobre a ideia de ―masculino‖ e de ―feminino‖ que, consequentemente, está relacionada aos aspectos da anima e do animus. Seguindo essa linha de abordagem, esses arquétipos podem ser analisados com dois pesos bem equivalentes em sua composição: o biológico e o cultural.

(...) segundo nosso entendimento, as características comportamentais do que Jung eventualmente entendia por ―feminino‖ e por ―masculino‖, por assim dizer, não fazem parte apenas da natureza biológica e das diferenças fisiológicas entre os sexos, embora as incluam. Estão, também, até certo ponto, condicionadas culturalmente e, portanto, não submetidas ao determinismo da natureza, mas à liberdade e variabilidade das formas culturais que vêm marcando a presença do Homem no planeta Terra.59

Arquetipicamente, a anima, por exemplo, pode se deixar abater pelas influências externas, já que uma de suas funções é possibilitar ao ego interagir com os outros

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CARDOSO, Heloísa. O homem: sua alma, sua ―Anima‖. In: BOECHAT, Walter (Org.). O masculino

em questão. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 55.

complexos que se encontram autônomos na totalidade do seu ser.60 O homem, sendo composto biológica e psicologicamente de aspectos masculinos e femininos, deve, para um desenvolvimento pleno, passar por fases: infância, adolescência, idade madura e velhice. É durante toda essa caminhada que ele necessita integrar partes essenciais de sua personalidade, como o seu lado guerreiro, seu lado sensível, seu lado legislador e líder. Ou seja, esse é o processo de individuação concebido por Jung, cuja principal tarefa é a assimilação e diferenciação de aspectos masculinos e femininos. Mas se a integração for apreendida como boa ou má, positiva ou negativa, isto dependerá tanto dos preconceitos sociais como dos valores morais vivenciados pelo indivíduo durante o processo. Nesse sentido, Heloísa Cardoso nos diz que ―a anima, como o arquétipo da mulher na mente do homem, e o animus, como o arquétipo do homem na mente da mulher, serão preenchidos com os conteúdos simbólicos e variáveis da cultura, para formar as respectivas imagens arquetípicas‖.61

A relação masculino / feminino e anima / animus, pode, portanto, apresentar semelhantes, complementares ou até mesmo alternantes perspectivas de interpretação e de críticas. A ótica de Carl Gustav Jung e de seus seguidores, que consideraram de maneira um tanto quanto ―limitada‖ àquilo que corresponderia ao masculino / feminino e anima/animus não deve ser esquecida nem desprezada, pois ali nasceu a ideia-fonte.

Os pós-junguianos e as outras linhas de pensamento, que concebem, por exemplo, o animus, não como um lado masculino da mulher, e sim como uma contraparte ainda não desenvolvida de uma personalidade, também não deve ser desconsiderada. O mais importante dessas diversas visões é que, quando entrelaçadas,

60 Jung considera o ego, ou o complexo do ego, como também costumava chamá-lo, como o centro da consciência. Diz respeito àquela parte da nossa personalidade com a qual mais nos identificamos, sendo ele, portanto, quem nos dá nossa identidade consciente. Nesse sentido, o ego não corresponde a nossa personalidade total. Ao arquétipo com essa característica Jung denominou self, que vem a ser o somatório de nossos componentes conscientes e inconscientes.

61 CARDOSO, Heloísa. O homem: sua alma, sua ―Anima‖. In: BOECHAT, Walter (Org.). O masculino

possam demonstrar uma menor rigidez quanto às tipificações sexuais, ou seja, quanto aos papéis do ―masculino‖ e do ―feminino‖, para que se enxerguem melhor as polaridades de cada lado. As motivações psicológicas são de extrema importância para que se possa compreender o comportamento do homem e da mulher. É necessário, porém, para que se alcance uma compreensão mais ampla, que se acrescente e articule também aspectos sociais, culturais e biológicos, dentre outros. Tudo isso, buscando apreender o possível equilíbrio entre o ―princípio feminino‖ e o ―princípio masculino‖, ainda que muitas vezes isso possa se apresentar sob um manto nebuloso e incerto.