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1 MASCULINO E FEMININO: ALGUMAS LAPIDAÇÕES

1.2 A busca do equilíbrio entre o feminino e o masculino

1.2.2 O feminismo

O traço marcante do movimento feminista, estava centrado na reivindicação da igualdade, para que as mulheres pudessem também participar da vida pública. Seu principal foco estava no questionamento da oposição binária homem/mulher, refletida numa sociedade dominada pela figura masculina, considerada o princípio fundamental, enquanto a mulher era relegada à posição de oposto desse sistema.

Betty Friedan, uma das primeiras lideranças do movimento, recolhe nos Estados Unidos depoimentos de mulheres de classe média que corresponderiam ao ideal da ―rainha do lar‖. Sua intenção era rever o papel tradicional a que a mulher estava sujeita. Em 1966, Friedan fundou o NOW (National Organization of Women), que, em 1971, já reunia 10 mil mulheres, em sua maioria grande parte casadas e com filhos. Este grupo, através da pressão política, almejava emprego, igualdade de salários, direitos na família e abolição da publicidade sexista.

Em 1967, as mais jovens e as solteiras se separaram no NOW para criarem um Women Liberation Movement (WLM), movimento mais radical e que não se caracterizava como organização. Uma das grandes vitórias de ambos os movimentos foi a obtenção do ressarcimento de muitos milhões de dólares a operárias e empregadas de grandes companhias, que recebiam seus salários abaixo do que recebiam os homens.

Mesmo considerando-se sua complexidade de definição, o feminismo busca repensar a identidade de sexo, em que tanto o homem como a mulher, tidos como indivíduos, não tenham que se adaptar a modelos hierarquizados, para que o ser humano possa então ser concebido em sua globalidade, não diferenciados os atributos masculinos ou femininos. Nesse sentido, a afetividade, a emoção e a ternura poderiam aflorar sem constrangimentos nos homens e, nas mulheres, seriam atributos não

desvalorizados. Assim, as diferenças sexuais não se manifestariam nas relações de poder que norteiam a vida humana em todas as suas esferas.

Essas questões foram disseminadas praticamente em todo o mundo, apesar de alguns lugares e culturas ainda não darem um mínimo de espaço à figura feminina. No período fervoroso da década de 1960, marco inicial das reivindicações feministas, percebe-se que também o Brasil não ignorou a problemática questão da mulher na sociedade, seja relacionada à esfera político-econômica, seja relacionada à esfera moral. Em meados dessa década, a mulher constituía, nas grandes cidades, menos de 20% da força de trabalho remunerada. Ela tinha em média seis filhos e só saia da casa paterna para se casar. Além disso, a mulher era reprimida sob os fundamentos conservadores daquela época, visto que o prazer sexual era condenado e consequentemente o casamento tido como indissolúvel. Pelo fato de o divórcio ainda não existir, as mulheres separadas eram estigmatizadas e o grande pavor de qualquer mulher era cair na boca do povo, pois sua reputação colocaria em risco sua carreira ou a guarda dos filhos.

Aos poucos, o movimento organizado das mulheres foi sendo reprimido e desarticulado pelo governo militar, fechadas as federações, assim como outras organizações populares. Como consequência disso, a luta passou para a clandestinidade e muitas mulheres foram atingidas. Algumas foram perseguidas, torturadas, estupradas e mortas; outras lamentaram por seus filhos e companheiros ―desaparecidos‖.

Mas na década de 70, o processo de (re)organização do movimento feminista no Brasil, foi retomado, período em que teve sua maior expressão e inegável força política. É, na primeira metade dessa década, no chamado ―milagre brasileiro‖, que a sociedade passa por transformações profundas, tanto de ordem econômica quanto comportamentais. Acerca desse período, Rose Maria Muraro, assim esclarece:

Foi nesse contexto que, pois, explodiu no Brasil, em termos de opinião pública, o problema da mulher em inícios de 1971. Todos os media: televisão, revistas, jornais, a grande imprensa, envolvem-se no debate do feminismo, geralmente, assumindo as posições conservadoras importadas dos países dominantes, o que gera grande polêmica, especialmente entre a juventude. A partir daí, até quando surgem os primeiros grupos organizados, os meios de comunicação não mais deixaram de trazer contínua e surpreendentemente os vários problemas de sexualidade e comportamento da mulher em suas manchetes.76

Diversas organizações passaram a desenvolver atividades permanentes de debates, pesquisas, cursos, publicações sobre o feminismo, além de participarem de campanhas de massa em conjunto com outras minorias sociais. Toda essa mobilização fez com que, a partir daquela época, fosse se formando uma consciência a respeito da condição das mulheres, ampliando seu espaço em nível político e social.

Em 1975, declarado pela ONU como Ano Internacional da Mulher, ocorreu no México o Congresso Internacional da Mulher, evento esse de que o Brasil também participou. Em nosso país, foi organizada a Semana de Pesquisa Sobre o Papel e Comportamento da Mulher Brasileira. Como resultado desse movimento criou-se, em setembro de 1975, o Centro da Mulher Brasileira, um órgão institucionalizado que era responsável pela articulação dos objetivos feministas em torno de uma linha de ação coletiva. Além disso, o CMB propôs um centro de estudos que promoveu importantes seminários e pesquisas sobre a condição da mulher, resultando daí várias publicações em jornais e revistas, além da produção de livros.

Toda essa mobilização revigorou o movimento das mulheres e expôs questões até aquele momento abafadas: a sexualidade, os direitos reprodutivos e a família. Além dessas, outras problemáticas como a igualdade salarial, o acesso profissional e a representação política foram também discutidas e reivindicadas pelas organizações feministas.

76 MURARO, Rose Marie. Sexualidade da mulher brasileira: corpo e classe social no Brasil. Petrópolis:

Vozes, 1983. p. 14.

Mas a luta das mulheres não se limitou somente à questão da reivindicação de direitos. Embora uma confluência de fatores tenha contribuído para uma retomada mais intensa do movimento feminista brasileiro — como o impacto do feminismo internacional e mudanças efetivas na situação da mulher, que punham em discussão a tradicional hierarquia de gênero –, o movimento militante da década de 1970 no Brasil surge também como consequência da oposição das mulheres à ditadura militar. Paralelo a ela, alguns países da América Latina também estavam sob comando amargo de governos ditatoriais, que calavam, implacáveis, as vozes discordantes.

Os anos setenta foram marcados como sendo os piores anos da repressão que havia se instaurado no governo brasileiro desde 1964, ocasionando a partir daí um duro controle em relação às lutas da esquerda contra o regime. A tortura e algumas vezes a morte de militantes ou simpatizantes dos militantes eram uma presença constante na vida cotidiana. Diante desse quadro, o movimento feminista aparece ligado à luta pelas liberdades democráticas e inicia, em 1975, em São Paulo, a campanha nacional pela anistia através do Movimento Feminino pela Anistia, com organizações semelhantes em todos os Estados. Tal movimento representou, no auge da ditadura militar, uma referência para a redemocratização do país. A atitude das feministas, nos meados dos anos setenta, foi uma das grandes forças progressistas de oposição à ditadura militar e de defesa dos direitos humanos.Sobre a postura ―guerreira‖ e participativa, Cynthia A. Sarti nos diz que

A presença das mulheres na luta armada, no Brasil dos anos 60 e 70, implicava não apenas se insurgir contra a ordem política vigente, mas representou uma profunda transgressão ao que era designado à época como próprio às mulheres. Sem uma proposta feminista deliberada, as militantes negavam o lugar tradicionalmente atribuído à mulher ao assumirem um comportamento sexual que punha em questão a virgindade e a instituição do casamento, "comportando-se como homens", pegando em armas e tendo êxito neste comportamento.77

77 SARTI, Cynthia A. Feminismo e contexto. Cadernos Pagu (16). Revista semestral do Núcleo de

Devido às restrições impostas pela ditadura militar ao direito de organização política e sindical, a oposição viu-se obrigada a limitar seus objetivos a questões locais, como os movimentos contra o custo de vida, os clubes de mães, movimentos por creches e postos de saúde. Dentro desse contexto todo, o movimento libertário das mulheres somou-se às lutas por melhores condições de trabalho e igualdade sexual, e à luta pela redemocratização do país. Esse movimento esteve, de acordo com Cynthia Sarti

intimamente articulado com outros movimentos sociais da época: movimentos populares — que iam desde a luta por moradia, passando por melhores condições de vida (água encanada, luz, transporte), até a luta pela criação de creches nas fábricas e universidades (o que era uma lei antiga, mas não cumprida); movimentos políticos — aí incluídos os movimentos pela anistia aos presos políticos, pela luta contra o racismo, pelos direitos à terra dos grupos indígenas do país. 78

Portanto, concomitante à resistência das mulheres à ditadura militar, outras mudanças somaram-se para que a mulher adquirisse uma nova postura perante ela mesma e perante o homem e à sociedade. A expansão do mercado de trabalho e do sistema educacional que estava se instaurando num país que se modernizava, ocasionou, ainda que de maneira excludente, novas oportunidades para as mulheres. Além disso, novas experiências cotidianas entraram em conflito com o modelo tradicional de valores nas relações familiares. Relacionado a isso, os comportamentos afetivos e sexuais oriundos do acesso a métodos anticoncepcionais e ao recurso às terapias psicológicas e à psicanálise, influenciaram decisivamente a relação entre o homem e a mulher.

Tudo isso fez com que novos parâmetros fossem adotados para se conceituar a nova mulher que estava surgindo. Nesse sentido, se nos reportarmos ao terreno

78 CORRÊA, Mariza. Do feminismo aos estudos de gênero no Brasil: um exemplo pessoal. Cadernos

arquetípico, percebe-se que ele também passou por significativas mudanças perante essa nova situação. O inconsciente coletivo (sua parte maleável), bem como os arquétipos do masculino e do feminino, que durante muitos anos ficou praticamente imutável nas psiques de homens e de mulheres durante o patriarcalismo, passam a partir da década de 70, por uma profunda transformação.

O conceito de arquétipo abre uma perspectiva de análise, tanto no plano psicológico quanto no plano sociológico, em épocas e culturas diversas. Neste sentido poderíamos dizer que o arquétipo do masculino e do feminino contém em si algo de atemporal e universal, ao mesmo tempo em que sua expressão no aqui-e-agora varia segundo o local e a época em que se manifesta. Enquanto no plano biológico os instintos se desenvolvem de uma forma automática, desencadeada, tão-somente, por processos orgânicos, geneticamente determinados, no plano psicológico o arquétipo precisa de estímulos específicos para que possa ser constelado.79

A transformação da mulher, que passou inicialmente por uma experiência subjetiva, possibilitada pelo feminismo, gerou um processo necessariamente coletivo. Isso fez com que

esta experiência tivesse uma existência e um significado social e, assim, configurasse uma nova referência de ser mulher. Este é o sentido radical do movimento feminista como manifestação coletiva das mulheres, formulado como politização do mundo privado.80

Toda essa reviravolta política, econômica e social, na qual o movimento das mulheres estava inserido, se manifestou também no meio cultural em nosso país. A contrapartida à violenta ditadura militar foi a explosão de uma vigorosa cultura da resistência, que se expressou na crítica política ao regime. Assim, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se vivia aqui uma violenta repressão política e cultural, que

79 ULSON, Glauco. Ser homem nos dias atuais. In: BOECHAT, Walter (Org.). O masculino em questão. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 73.

80 SARTI, Cynthia A. Feminismo e contexto. Cadernos Pagu (16). Revista semestral do Núcleo de

afetava radicalmente a vida pública, rompendo com os antigos espaços de sociabilidade, assistia-se à emergência de novas formas de produção cultural. Isto se deu tanto nos setores ligados às lutas da resistência, quanto entre os mais indiferentes, ou mesmo ligados à ditadura militar.

Inicialmente dirigida ao regime militar, a revolução cultural iniciada na década de 60 e estendida pela década de 70 em nosso país, se deu principalmente através da música e do teatro, sendo o último bastante influenciado pela temática crítico-social do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. As vertentes musicais e teatrais, direcionadas a diversas intenções, focalizaram com destaque a questão dos indivíduos oprimidos resultantes daquele sistema político, dentre eles, a mulher, que estava emergindo com bastante força e intensidade.