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2 ELEMENTOS POÉTICOS DO DRAMA E DA POESIA

2.2 Lotman e a semiótica da poesia

De linhagem estruturalista russa e tcheca, Iuri Lotman analisa a função poética da linguagem no texto artístico. Partindo de R. Jakobson, segundo o qual a estrutura do verso está ligada, dentre outros, com os elementos fonológicos, Lotman procura dar um sentido mais original e aprofundado ao estudo da poesia.

Para o teórico, o verso é que distingue o poema do texto não artístico. Na sua organização há uma tendência constante para a colisão, para o conflito entre os seus diferentes princípios constitutivos. Assim, os limites da palavra podem ter função desorganizadora na construção do ritmo do verso, bem como a sintaxe pode entrar em

conflito com movimento rítmico do poema. O texto poético, segundo Lotman, pode ser analisado a partir da consideração de que qualquer parte sua se correlaciona (por similaridade ou oposição) com as outras partes e com o próprio texto como um todo. Além disso, o texto o artístico não depende exclusivamente do verso, e sim das relações que estabelece com peculiaridades do meio social, da época em que se encontra inserido, das leis do gênero e com os hábitos de leitura de um determinado período.

Lotman explicita que determinado texto é considerado artístico através de um sistema de ―transcodificação‖. Através desse processo, fundamentado em sua obra A estrutura do texto artístico, determinados elementos do texto podem interagir interna e externamente, nesse caso com o contexto social e histórico, fazendo com que novas possibilidades de entendimento venham a surgir. Segundo essa teoria, por exemplo, a sonoridade musical de um texto pode também transmitir informação e efetuar a transferência semântica da estrutura do texto poético para a realidade externa ali retratada. Nesse processo de transcodificação é que se permite interpretações de caráter social e psicológico, salientadas através dos componentes sensoriais e conceituais do texto, associando-os ao prazer estético e à informação do leitor.

De acordo com Lotman, codificam-se os elementos de um poema por meio de:

1) Transcodificação interna: ocorre no plano interno da obra. Elementos do próprio texto são compreendidos pelas semelhanças e também diferenças entre eles. Destaca-se também a significação do aspecto gráfico no poema, que, além de reforçar o texto internamente, sugere possibilidades de compreensão extratextuais.

2) Transcodificação externa: advêm da relação de elementos internos da obra com outros de nível externo, como aspectos do meio social, pois ―a parte extratextual da

estrutura artística constitui um componente perfeitamente real (por vezes muito significativo) do todo artístico‖28.

Quanto mais transcodificações proporcionar um texto, tanto mais artístico e complexo ele o é. Na Ilíada, por exemplo, precisa-se de transcodificações várias para que se possa compreender a obra, como o entendimento de aspectos da cultura e da mitologia gregas.

A estrutura do texto poético se constitui por ―equivalências‖, sendo o texto compreendido segundo a relação mútua das semelhanças e também das diferenças entre as partes componentes. Como todo texto é formado da combinação de um número limitado de elementos, a presença de ―repetições‖ é aí inevitável. Na construção do texto artístico essas organizações têm significância incontestável. Nenhuma repetição é vista como mera causalidade e sua presença torna-se uma das características determinantes da estrutura do texto. Nessa perspectiva, Lotman considera basicamente três níveis de fundamentação para a análise correlativa das partes constituintes do poema: nível fonológico, nível gramatical e nível léxico-semântico.

1º Nível: Fonológico

Os fonemas pertencentes à determinada palavra adquirem o semantismo dessa expressão, mas a significação dos sons não pode ser compreendida independente da acepção da própria palavra formada por esses sons. Sendo assim, de forma separada,

nenhum som no discurso poético tem significação independente, e por isso a sua interpretação não deriva de sua particularidade, e sim por um processo relacional. Mesmo sendo ―palavras vazias‖ ou ―ocasionais‖, os fonemas constituem particularidade importante no texto artístico, tornando-se uma estrutura de conteúdo.

Abarcando o nível fonológico, pode-se encontrar as seguintes características tópicas:

O ritmo

O ritmo do poema se agrega à sonoridade do texto para produzir semantismo. A divisão rítmica faz com que o verso se correlacione com outros versos, as estrofes com outras estrofes. É na repetição dos segmentos rítmicos que se cria a equivalência recíproca de todos os elementos do poema, constituindo fator de percepção do texto como sendo poético. Mesmo quando separadas por pausas rítmicas, as palavras continuam sendo palavras. São elas em seu léxico a integridade do texto poético. Será o verso então ―simultaneamente uma sequência de unidades fonológicas percebidas como divididas, existindo distintamente, e uma sequência de palavras, compreendidas enquanto unidades soldadas de combinações fonemáticas‖29.

Mesmo não sendo portador de significação autônoma, o ritmo do verso pode ser portador de uma informação determinada que se relacione à temática do poema. Para a percepção do ritmo, pode-se substituir a entoação semântica (utilizada no discurso

vulgar) por uma entoação rítmica que lhe seja correlativa e evidenciada com igual destaque, pois uma leitura monótona, em poesia, destaca apenas a semântica.

Descobrir a cadência ou condicionar o contorno rítmico de um poema tem sido um dos problemas mais discutidos e controvertidos da teoria do verso. O pulsar rítmico de um poema é dos elementos estruturais mais flutuantes que a análise tenta fixar, pois a verdade é que ele depende mais do fator psicológico existente no leitor que propriamente do seccionamento formal da frase poética. É como se fosse literalmente um imã que atrai o leitor. As pausas de um poema podem ser alteradas e diferentes leituras rítmicas podem ser feitas. Sem dúvida, é essa possibilidade que torna o ritmo poético um dos elementos estruturais mais subjetivos e mais fluídos do poema. A despeito, porém, dessa fluidez e dessa dificuldade em ser determinado, o ritmo é o elemento-chave do fenômeno poético.

Geralmente, as palavras finais dos versos de um poema são as mais importantes, as mais acentuadas. Através da métrica, onde é verificado o acento de intensidade das sílabas, pode-se perceber muito de seu aspecto rítmico. Importante valor expressivo tem o acento no verso, como fator rítmico, marcando as tônicas poéticas, e também dando relevo às palavras em que recai.

A rima

A rima, basicamente, possui duas qualidades: a da organização rítmica, pois marca o fim dos versos, e a da consonância. É caracterizada, portanto, como repetição fonética que desempenha um papel rítmico. São as repetições sonoras fatores determinantes para o envolvimento do leitor com o texto. Contudo, a sonoridade musical da rima é criada não só pela fonética, mas também pelo semantismo da palavra.

Gramaticalmente, a maioria das rimas pode ser classificada como ―rimas pobres‖, que são as mais usadas, as mais corriqueiras, pois surgem do relacionamento de palavras com terminações comuns ou da mesma categoria morfológica. Mas existe a presença de uma ―rima rica‖, que é a mais rara de ser encontrada nos poemas, pois ela ocorre entre palavras de diferentes categorias gramaticais.

A consonância do discurso poético difere do discurso em prosa ou do discurso da conversação. O poema é melodioso e em consequência facilmente declamável. E é pela existência de sistemas entoacionais próprios do verso que é possível tratar da melodia do discurso poético. Nesse sentido, tem-se a impressão de que dois elementos independentes estão presentes no verso: o semântico e o melódico. O primeiro deles estaria identificado com uma causa racional, o outro com uma causa emocional. Lotman, porém, considera impossível a distinção entre o som e o sentido:

A sonoridade musical do discurso poético é também um modo de

transmissão da informação, ou seja, do conteúdo, e neste sentido não pode

ser oposta a todos os outros modos de transmissão da informação que são próprios da linguagem enquanto sistema semiótico. Este modo – a musicalidade – não surgiu senão quando da grande coordenação da estrutura verbal, em poesia. 30

A melodia

Outro aspecto relacionado ao nível fônico é a melodia. A linha melódica da frase resulta das variações de altura do tom laríngeo que incidem sobre uma sequência de sílabas – palavra ou sequência de palavras. É só na frase que a entoação tem seu valor próprio, não na palavra isolada, pois esta possui o acento de intensidade. Entende-se como a curva melódica aquilo que a voz descreve ao pronunciar palavras, frases, orações. Resulta da variação da altura musical dos sons, dependendo essa altura do

número de vibrações das cordas vocais por segundo. Os movimentos da entoação constituem fenômeno de extrema delicadeza e complexidade, correspondendo às mais variadas emoções.

Para a obtenção da melodia do verso, a repetição dos fonemas é que deve ser observada. Por não terem na linguagem uma significação própria (lexical e gramatical) é que eles são reserva fundamental para a pré-regulação semântica do texto:

As repetições fônicas possuem também um outro sentido semântico que permite uma maior análise objetiva. As repetições fônicas podem estabelecer ligações complementares entre as palavras, introduzindo na organização semântica do texto composições menos claramente expressas ou geralmente ausentes ao nível da língua natural.31

Em português a extensão predominante de uma unidade melódica está por volta de sete sílabas. As frases simples, de sete, oito sílabas constituem uma só unidade, a menos que se faça uma pausa expressiva ou enfática. Se num poema, uma única unidade melódica for a predominante, isso significa que cada segmento melódico termina por uma inflexão de voz, que pode ser de tom mais ou menos elevado ou mais ou menos grave. Isso porque as unidades melódicas podem ser marcadas por pausas lógicas, respiratórias ou expressivas.

2º Nível: Gramatical

O valor representativo das classes de palavras é um dos elementos constitutivos do fenômeno poético. É preciso ser conhecido esse valor a fim de que se possa explorar todas as virtualidades do texto. Usa-se o rótulo ―valor representativo‖ para designar a natureza das realidades do universo humano, representadas no universo da linguagem pelas palavras correspondentes.

O sentido do poema se constitui pelas diferenças que apresenta em relação ao uso comum das formações gramaticais, e que se mostram basicamente pelas repetições. É na tendência ao conflito linguístico que se dá a força do verso. O poeta pode, nesse nível, manipular as expectativas do nível gramatical.

Nesse nível, as repetições ocorrentes no texto podem ser de duplo entendimento. Primeiro, em função da organização visível complementar do poema, no qual as posições inseridas são equivalentes ou antitéticas. Segundo, os elementos gramaticais do texto começam a chamar atenção, pois ―subtraem determinados elementos gramaticais do texto do estado de automatização da língua.‖.32 Há, portanto,

inevitavelmente, uma semantização dos elementos postos em evidência no texto, já que tudo o que é nele manifesto é percebido como portador de um sentido. Então,

o semantismo que lhes é atribuído pode ser portador de uma informação sobre determinadas relações, próximas das ligações relacionais da gramática. Assim, o sistema dos tempos verbais organiza frequentemente o lado temporal da imagem artística do mundo; as categorias do número são incluídas nas oposições do tipo ―singular, único-plural‖, etc.33

As categorias gramaticais, na poesia, sugerem significações relacionais. São essas categorias, que criam uma identificação com uma visão poética do mundo: ―vê-se

claramente como é errôneo reduzir a especificidade da poesia à ‗imagem‘, rejeitando aquilo a partir do qual o poeta constrói seu modelo do mundo.‖34. São, portanto, as

relações gramaticais um nível importante da estrutura poética e remetem a toda a construção do texto, não podendo ser compreendidas de maneira isolada ou fora dela.

32 LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978. p. 270. 33 Ibid., p. 270-271.

3º Nível: Léxico-Semântico

A palavra é a unidade básica do texto poético, mesmo destacada a importância de cada nível (fonológico e gramatical) que se evidencia no texto artístico. Ela pode ser examinada em seus segmentos internos: prefixos, sufixos e outros, ou na relação com outras palavras, mas é no nível léxico que a estrutura do texto artístico é fundamentada, nele é construída sua base semântica.

No texto poético, a palavra é ligada pelo fato de encontrar-se em correlação com outras palavras, colocada numa posição paralela a elas, pois ―se as ligações contextuais da língua natural são determinadas pelo mecanismo da reunião gramatical das palavras em sintagmas, então o mecanismo de base da língua poética será o paralelismo.‖35

Devido a esses paralelismos estruturais, qualquer palavra, a princípio, pode ser sinônimo ou antônimo de qualquer outra.

Palavras diferentes podem estar em posição de equivalência, pois entre elas existe uma correlatividade semântica complexa, devido a um núcleo semântico comum e um par contrastado de marcas semânticas diferenciais. Assim também a mesma palavra pode, em posições estruturalmente diferentes, ser diferente de si própria. É essa dúbia situação entre estes dois sistemas semânticos que determina a riqueza e complexidade de um texto poético.

A poesia cria aproximações semânticas, analogias, oposições, que não coincidem com o sistema semântico da língua natural, pois com ele entram em conflito e lutam:

O efeito artístico é criado precisamente na realidade da luta. A vitória total desta ou daquela tendência, a intangibilidade das significações que existe no sistema antes do aparecimento do texto dado e a sua total destruição permitindo, sem qualquer resistência, criar algumas combinações textuais são, de igual modo, contraindicadas para a arte. 36

35 LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978. p. 282. 36 Ibid., p. 323-324.

É no nível léxico-semântico, portanto, que se configura o mundo do texto poético. Um poema pode ser criado sem o destaque para as rimas ou para a métrica, mas não se manifestar sem aquele aspecto mágico que brota do interior de uma alma inspirada e treinada no fazer poético. E isso geralmente se dará sob a forma de imagens ou de metáforas, pois é no nível léxico-semântico que surgem as figuras de linguagem. Mas isso não significa que devem ser desconsiderados os níveis fonológicos e gramaticais. É na interação de todos entre si e com o que está fora do texto, pelo princípio da transcodificação, que o poema adquire estatuto artístico e pode ser pensado como forma de expressão social e ao mesmo tempo individual. Nesse processo de transcodificação é que ele permite interpretações de caráter social e psicológico, salientadas através de seus componentes sensoriais e conceituais, associando-os ao prazer estético e à informação do leitor.

Os processos transfiguradores da realidade jogam sempre com dois elementos – um termo real e outro ideal. O primeiro, aquele do mundo real que toca o espírito do poeta; o segundo, aquele elemento que ele vai buscar em sua imaginação criadora para expressar a emoção sentida e combiná-la em palavras. Por isso, um dos recursos estilísticos mais importantes é o que decorre da transfiguração da realidade em arte, ou melhor, do elemento real em figura ou imagem. É uma área extremamente complexa e controvertida, devido à multiplicidade de interpretações e terminologias registradas pelas várias poéticas; mas nem por isso deixa de ser fascinante e aprazível essa tarefa.