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1 MASCULINO E FEMININO: ALGUMAS LAPIDAÇÕES

1.2 A busca do equilíbrio entre o feminino e o masculino

1.2.1 O patriarcalismo

O poder imposto pelo patriarcalismo fez dividir a vida em polaridades altamente desiguais, e exclusivamente opostas, como as noções de certo ou errado, forte e fraco, sucesso e fracasso, bonito e feio, reunidas em sistemas lógicos e racionais.

Foi este dinamismo que codificou os papéis sociais rígidos do homem e da mulher, atribuindo à ela uma condição inferior junto com a maioria das funções matriarcais. Seus deuses, deusas e ideais são conquistadores e legisladores. Este dinamismo é característico das guerras de conquista, das sociedades de classe com acentuada hierarquia social e rígida codificação ideológica da conduta.70

É inegável, historicamente, que nos últimos milênios o mundo pertenceu ao varão. Mas é difícil determinar causas exatas que levaram o varão ao domínio da natureza e, com ela, da mulher. Revoluções ecológicas, econômicas, ideológicas ou científicas podem constituir pontos marcantes de referência para que esse contexto fosse instaurado e mantido por longo tempo. Mas ainda assim, estão encobertos outros fatos imponderáveis que nos escapam à razão, tais como os desejos que não podem mais ser analisados, ou então os múltiplos não-ditos, que continuarão para sempre obscuros.

70 BYNGTON, Carlos. O martelo das feiticeiras.

– malleus maleficarum à luz de uma teoria simbólica da História (prefácio). In: KRAMER, H.; SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras. São Paulo: Rosa dos Tempos, 1991. p. 24.

Através do patriarcado, poder, competitividade, conhecimento, controle, manipulação, abstração e violência vêm juntos e agregados à esfera masculina. Por sua vez, o amor, a integração com o meio ambiente e com as próprias emoções, características essas associadas às mulheres passariam a ser os elementos mais desestabilizadores e perigosos para a manutenção da ordem vigente.

Para o resto da sua vida, conhecimento e prazer, emoção e inteligência são mais integrados na mulher do que no homem e, por isso, são perigosos e desestabilizadores de um sistema que repousa inteiramente no controle, no poder e, portanto, no conhecimento dissociado da emoção e, por isso mesmo, abstrato.71

Como consequência desse contexto, durante toda a efetivação das sociedades patriarcais, essa lógica dos contrários frequentemente se transformou em lógica da exclusão, colocando aos extremos as hierarquias.

Ela dava a vida e Ele a protegia. Ela cuidava das crianças e do lar, Ele partia para a conquista do mundo e guerreava quando necessário. Essa divisão das tarefas tinha o mérito de desenvolver em cada um características diferentes, que contribuíam, com muita força, para formar o sentimento de identidade.72

Essa oposição tornou-se tão radical e cheia de tensões que a ideia de comunidade gregária, de semelhança dos gêneros ficou profundamente ameaçada. Segundo Badinter, esse privilégio biológico permitiu aos homens se afirmarem como seres superiores, levando o patriarcado ao seu triunfo. Para a teórica, o patriarcado não diz respeito somente a uma forma de família baseada no poder paterno, mas também a toda uma estrutura social que nasce de um poder do pai. Em razão disso, surgirão os traços estereotipados masculinos e femininos. Numa pesquisa realizada em 1964, portanto num tempo não tão distante, verificou-se que a presença de estereótipos ainda era bem marcante na lógica dos contrários: quanto à estabilidade emocional, o homem é

71 BYNGTON, Carlos. O martelo das feiticeiras. – malleus maleficarum à luz de uma teoria simbólica da

História (prefácio). In: KRAMER, H.; SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras. São Paulo: Rosa dos Tempos, 1991. p. 11.

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BADINTER, Elisabeth. O um é o outro: relações entre homens e mulheres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 13.

decidido e firme; a mulher caprichosa, emotiva, e pueril. Nos mecanismos de controle o homem é disciplinado e organizado; a mulher é tagarela, incoerente. No que diz respeito à autonomia, o homem é independente; a mulher submissa. Quanto à afetividade e sexo, o homem é obsceno e a mulher tem necessidade de amor e de filhos.

Para que essa dialética explorador / explorado pudesse ser mantida, foi necessário que o poderio masculino introjetasse na mulher uma ideologia que a convencesse de sua própria inferioridade em relação ao homem, o que de certa forma foi relativamente bem aceito por ela. Para que isso perdurasse, o absolutismo patriarcal fez impor um certo número de condições ideológicas que tinham por finalidade estabelecer o poder masculino. A partir daí, o estrito controle da sexualidade feminina passou a ser a característica mais marcante da sociedade patriarcal em sua forma mais absoluta, pois para o marido, a mulher teve triplamente, o status de objeto. ―Ao mesmo tempo, é um instrumento de promoção social, eventualmente um objeto de distração, e um ventre do qual se toma posse.‖73

A mulher foi a grande vítima de toda essa atitude egoísta do homem que, durante séculos, não soube vê-la como um ser complementar a ele e de recíproca totalidade enquanto ser humano. Ela, na relação com ele, foi a grande oprimida.

O oprimido tem um privilégio histórico e epistemológico pelo fato de possuir uma percepção mais alta que inclui o opressor enquanto ser humano. O opressor exclui o oprimido, pois o considera uma coisa ou um ser humano menor, subordinado e dependente. A libertação deve começar no oprimido para terminar no opressor. Só então ambos se encontram sobre o mesmo chão comum, como humanos, construindo juntos, em igualdade e na diferença, a sociedade e a história.74

Está na mulher, portanto, mais do que no homem, uma maior atenção no que diz respeito a uma eventual busca de novos paradigmas para uma nova realidade. Deve-se

73 BADINTER, Elisabeth. O um é o outro: relações entre homens e mulheres. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1986. p. 125.

74 CARDOSO, Heloísa. O homem: sua alma, sua ―Anima‖. In: BOECHAT, Walter (Org.). O masculino

avaliar nela o seu feminino que lhe é característico, que provem de um inconsciente coletivo longínquo. Mas por outro lado, precisa-se aceitar que também ela possui uma faceta que lhe pertence e que lhe acrescenta muito, que é dito ―masculino‖, ou também chamado de ―animus‖. Seja qual for a denominação, está na análise da mulher e de sua subjetividade o grande desafio proposto nos dias de hoje para uma possível mudança.

O fato de o feminino ter sido colocado em segundo plano durante a sociedade patriarcal faz com que se debruce sobre ele com mais interesse. Não nos resta dúvida de que a mulher concreta historifica principalmente o feminino. É com ele que a mulher mais se identifica, pois para ela a racionalidade e o masculino constituem o inconsciente. O grande equívoco do patriarcalismo é que ele deturpou esse feminino, relegando-o somente à mulher, quando na verdade tudo o que possui caráter elementar, tudo quanto evoca natureza, vitalidade lasciva é vivenciado como feminino na mulher, mas também no homem. O varão, por sua vez, tematiza de modo mais intenso o masculino; já que seu inconsciente possui caráter feminino. Em consequência disso, tudo o que é vivenciado como desenvolvimento, ordenação, racionalização, divisão vem expresso pelo masculino no varão, características essas, porém, que podem adequadamente ser desenvolvidas na mulher. O ideal humano deve ser concebido a partir da integração do feminino com o masculino, na busca de um equilíbrio próprio ao varão e à mulher.

A duração do sistema patriarcal pode ter prevalecido por três ou quatro milênios. E basta a condenação à morte de um sistema de poder, ainda que numa única região do globo, para se constatar a sua fragilidade. A agonia do patriarcado durou praticamente dois séculos, mas foi preciso esperar até o século XX para que a igualdade dos gêneros fosse realmente colocada na ordem do dia. Somente a partir dos últimos quarenta anos é que foi, em muitas de suas facetas, extinto esse sistema que permitia aos homens sobre a

mulher um poder milenar. A partir do momento em que essas certezas começaram a ser abaladas, inúmeras tentativas de re-aproximação entre homem/mulher foi buscada.

A mais importante alavanca para a nova concepção da mulher se deu nos anos 1960 através do movimento feminista, ocorrido principalmente na Europa e nos Estados Unidos, o qual propugnou a libertação e emancipação da mulher. Emancipar era proporcionar a ela uma equiparação em direitos políticos, econômicos e jurídicos. Libertar-se, por sua vez, era procurar marcar a diferença, realçar as condições que regem a alteridade nas relações de gênero, de modo a reconhecer a mulher como um sujeito também autônomo dotado de plenitude humana tanto quanto o homem.

Ainda que num primeiro momento possa parecer contraditória a relação entre as feministas mais radicais e a teoria junguiana dos arquétipos, fato esse atestado por várias delas, deve-se considerar também uma outra perspectiva possivelmente conciliatória. É o que nos salienta Andrew Samuels, que, mesmo divergindo (atualizando) alguns conceitos junguianos, reconhece nos estudos primordiais de Jung uma importância na contemporaneidade no que diz respeito às questões do feminismo e do gênero. Os arquétipos anima e animus podem ser considerados sim, uma das ideias precursoras daquilo que viria a compor os estudos dessas referidas instâncias:

Uma outra área em que o discurso contemporâneo está tomando o caminho ―junguiano‖ é no que se refere ao papel desempenhado pelos gêneros. Por um lado, Jung era um tanto conservador no que diz respeito ao que ele considerava comportamentos apropriados para mulheres e homens. Por outro lado, com a sua teoria de animus e anima (algo que veio a ele durante seu relacionamento com Sabina Spielrein), ele nos oferece um caminho para expandir o que é possível para ambos os sexos. Para uma mulher, seu

animus não é um mero homem em sua memória, mas um sinal da

capacidade dela em ser e fazer cada vez mais coisas além das que comumente eram pensadas para uma mulher. Para o homem, a confrontação com a anima pode levar à mesma expansão de papéis. Como muitas escritoras feministas apontam - a exemplo da crítica literária Susan Rowland - animus e anima, podem ser ideias anti-culturais e profundamente radicais.75